quarta-feira, 23 de março de 2011

O ocidente bombardeia, a Liga Árabe gagueja


Pepe Escobar

23/3/2011, Pepe Escobar, Asia Times Online -
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

A história com certeza anotará a ironia de a nova doutrina de guerra do presidente Barack Obama ter tomado forma a bordo do Air Force One a caminho do profundamente pacifista Brasil; e, em seguida, numa mensagem enviada de Brasília para os EUA (sim, a Operação Alvorada da Odisséia foi disparada dos trópicos, não do Mediterrâneo); em resumo, num War Room montado na sexy e solar Rio de Janeiro. 

Eis os parâmetros da nova doutrina: 

1. O Pentágono deve conduzir “operação limitada” sem qualquer tropa de ocupação por terra (lembrem Bill Clinton, nos anos 1990s, abordando a Bósnia e o Kosovo).

2. Os EUA são parte de uma “coalizão” (de vontades), mas não lideram a “coalizão” (pensem no contrário de George W Bush no Iraque).

3. A operação visa a “proteger civis” e nada tem a ver com “mudança de regime” (mais uma vez, Clinton supera Bush).

4. Tudo se baseia em “sólida legitimidade internacional” – conferida pela Resolução n. 1.973 do Conselho de Segurança da ONU, mais explícita que a resolução que autorizou a OTAN a agir no Kosovo (para nem falar da resolução que não existiu para que Bush bombardeasse o Iraque). 

Contudo, imediatamente depois de os Tomahawks decolarem, começaram os problemas para a Casa Branca. 

A “operação limitada” – bombardear as defesas aéreas e instalações militares de Muammar Gaddafi – já pode ser dada por concluída, e os americanos estão doidos para serem dispensados do trabalho mais pesado. Mas quem assumirá o posto? O general Carter Ham, chefe do comando dos EUA na África - AFRICOM e atual comandante da Operação Alvorada da Odisséia, resumiu tudo: “A primeira coisa que terá de acontecer é a identificação da organização”. 

Vocês lutam, nós ficamos olhando

A Liga Árabe não assumirá coisa alguma. O voto (da LA) a favor de uma zona aérea de exclusão na Líbia foi declarada, por todos os diplomatas ocidentais, sem faltar um, base e fundamento da resolução da ONU. Imediatamente depois, o secretário-geral da LA, Amr Moussa, deu marcha a ré: disse que o ataque já ultrapassara o objetivo inicial de proteger, não de matar, civis. Mas então o mesmo Moussa, demagogo e oportunista, recebeu ordens da Casa de Saud (que pressionou muito fortemente a favor da zona aérea de exclusão), desdisse o dito e disse que a resolução foi ótima. 

O que a mídia-empresa ocidental jamais diz é que, entre os 22 membros da Liga Árabe está a Arábia Saudita – líder dos seis que constituem o Conselho de Cooperação do Golfo [orig. Gulf Cooperation Council (GCC)] – que fez lobby obsessivo a favor da “no-fly zone” (por causa de rixa visceral que há entre o rei Abdullah e Gaddafi – ver “Alvoradas da Odisséia: as 10 mais”, 22/3, redecastorphoto); e que só o Qatar enviará um máximo de 4 dos seus jatos Mirage (mas ninguém sabe quando). Apesar de Obama ter telefonado pessoalmente ao Sheikh Khalifa, os Emirados Árabes já voltaram atrás e não enviarão jatos: só trabalharão no que tenha a ver com assistência “humanitária”. 

O presidente do Conselho de Cooperação do Golfo, Abdul Rahman bin Hamad al-Attiyah, insistiu em Abu Dhabi que o Qatar e os Emirados Árabes Unidos integrariam a “coalizão” – só não disse como. Quanto ao rei do Bahrain, Hamad al-Khalifa, preferiu elogiar a eficácia de seu minúsculo reino, que conseguiu vencer “complô externo” que ameaçava sua segurança e estabilidade. E agradeceu enfaticamente pela invasão de soldados sauditas, que hoje o ajudam a reprimir qualquer protesto pacífico. 

A espantosa gagueira e a hipocrisia do GCC e da Liga Árabe acompanham a ostensiva hostilidade da União Africana contra a “coalizão”, que se manifestou em comunicado emitido de Nouakchott, Mauritânia, exigindo “fim imediato de todos os ataques”. A União Africana exige apenas que Gaddafi assegure que a “ajuda humanitária” chegue aos que precisam dela. 

Assim, já voou pelos ares o mito de que haveria alguma “comunidade internacional” por trás da Operação Alvorada da Odisséia. As ditaduras árabes – que mais uma vez autorizaram ataque contra país muçulmano – temem, em pânico, a resposta-vingança que venha das suas próprias ruas, se os “danos colaterais” continuarem a aumentar. 

A blogosfera árabe está saturada de acusações contra a ONU e a Liga Árabe por terem patrocinado um escandaloso assalto em busca do petróleo líbio. Os países africanos, praticamente todos, estão contra o ataque. As principais potências emergentes – Brasil, Índia, Indonésia, Turquia – nada têm a ver com o assalto. Os quatro principais BRICSs (Brasil, Rússia, Índia e China) abstiveram-se de votar na decisão do CSONU. 

A China sempre prestou atenção à evidência de que na África e na América Latina – onde hoje a China disputa com os EUA por interesses comerciais – o apoio à “coalizão” era mínimo. E a Rússia deu ainda um passo a mais: segundo o primeiro-ministro Vladimir Putin, “A resolução está cheia de falhas e defeitos. Permite praticamente qualquer coisa. É uma convocação medieval a uma nova Cruzada”. É verdade: a Rússia tem contratos para fornecimento de armas à Líbia que chegam aos 4 bilhões de dólares, metade deles ainda pendentes. Não surpreende que Robert “O Supremo” Gates, do Pentágono nada tenha feito para convencer a Rússia a apoiar a “coalizão”. 

Rinha de gatos
Isso tudo significa que essa “coalizão” é assunto só da Organização do Tratado do Atlântico Norte, OTAN. O que não é pouco.  

A OTAN é cenário, hoje, de autêntica rinha de gatos. Ninguém sabe como interpretar aquela resolução que “autoriza tudo”. Na Grã-Bretanha, o ministro da Defesa juta que ninguém recebeu autorização da ONU para derrubar Gaddafi (opinião partilhada por Gates, para quem derrubar Gaddafi seria “pouco inteligente”). Mas o governo de David Cameron entende que se trata só de mudança de regime. Como se trata, na prática, para o governo Obama – vejam o que todos dizem, do presidente Obama à secretária de Estado Hillary Clinton, que insistem que “Gaddafi tem de sair”. 

A França – por causa da síndrome de Napoleão de Nicolas Sarkozy – não quer entregar o comando à OTAN. Outros membros da OTAN lamentam publicamente que EUA e o duo anglo-francês monopolizam todas as decisões. 

A Turquia, extremamente preocupada com o alto número de mortes de civis, e, sobretudo, preocupada com preservar a boa figura que tem hoje no mundo árabe, é decididamente contra qualquer intervenção da OTAN – e insiste em que se analisem outras estratégias, inclusive, até, que o ocidente declare imediato cessar-fogo. O primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan disse que “qualquer intervenção militar pela OTAN na Líbia ou em qualquer outro país, será totalmente contraproducente”. 

Nesse contexto, é absurdo esperar – como esperam os proverbiais suspeitos dos think-tanks – que uma intervenção pela OTAN semelhante à que houve no Kossovo poderia ser “um sucesso”. Em 1999, a OTAN bombardeou a Iugoslávia durante 78 dias; lançou nada menos que 20 mil toneladas de bombas; e produziu milhares de “danos colaterais” – tudo em nome de dar “proteção” humanitária aos albaneses no Kosovo. O massacre de Srebrenica, por falar nisso, aconteceu imediatamente depois de a OTAN ter imposto uma zona aérea de exclusão sobre a Bósnia. 

Liga de gângsteres 

O consórcio anglo-franco-norte-americano que lidera a Aurora da Odisséia foi vítima de sua própria propaganda: autoconvenceu-se de que a Liga Árabe estaria solidária. Mas mesmo que a Liga Árabe estivesse a bordo, só significaria que a Aurora da Odisséia estaria sendo apoiada por exatamente os mesmos ditadores e gângsteres dos quais a Grande Revolta Árabe de 2011 luta empenhadamente para ver-se livre. 

A posição da Liga Árabe baseia-se em dois motivos, ambos muito obscuros. Um, a obsessão do rei e da Casa de Saud, de derrubar Gaddafi. O outro, a campanha de Moussa, que quer ser o próximo presidente do Egito. Moussa recebe ordens da Casa de Saud e, ao mesmo tempo, tenta agradar Washington que até aqui apóia sua candidatura à presidência do Egito. 

A resolução da ONU nada tem a ver com cessar-fogo. Os próprios “rebeldes” declararam que nada lhes interessa, exceto a troca de regime. A resolução aponta na direção de troca de regime – digam o que digam os militares britânicos e norte-americanos. Só se podem esperar mais mísseis cruzadores sobre o complexo de Gaddafi em Bab al-Aziziya. 

Se Gaddafi aguentar, as coisas ficarão piores a cada dia. Nos termos da lei internacional, seu regime continua tão legítimo quanto antes, quando era recebido e tratado como chefe de Estado. Gaddafi pode até invocar seu direito de combater uma insurreição armada que visa a derrubá-lo do poder – de fato, tem muito mais direito de invocar esse direito, que os ditadores no Iêmen e Bahrain, que atiram contra manifestantes desarmados.

O verdadeiro teste para a nova doutrina Obama de guerra – partilhada por seus asseclas europeus – será como ganhar a troca de regime, sem invasão, guerra e ocupação por terra. A história talvez lhes sugira a via da Georgia, de Chipre, de Nagorno-Karabakh, do Kosovo ou das Coréias Norte e Sul. Nesse caso, é hora de dar adeus à unidade da Líbia.

Intervenção militar. E lá vai, outra vez, a Inglaterra...


Deputado Rory Stewart discursando;
Câmara dos Comuns, Londres, UK

Rory Stewart, 18/3/2011,
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu

Até ontem, eu acreditava que a era das intervenções militares estivesse chegando ao fim. O consenso que se viu depois do colapso da União Soviética foi destroçado pelas guerras dos Balcãs; depois do desespero, viram-se ainda intervenções na Bósnia, depois no Kosovo; em seguida, um orgulho triunfalista arrastou a Inglaterra para o desastre, no Iraque e no Afeganistão. A meio caminho, nesse período, em 2000, foi como se a Inglaterra pudesse intervir em qualquer lugar. 

Mas em 2010, já parecia que a Inglaterra nunca mais se aventuraria a intervir militarmente em lugar algum. O que começou como irresistível vitória da democracia, do livre mercado e dos EUA, termina agora com ocupação, crise financeira e impotência dos EUA.

Parecia duplamente improvável que a Inglaterra algum dia interviria militarmente em país como a Líbia. Embora pobre em petróleo, o Afeganistão, na Ásia Central, foi visto por muitos muçulmanos como objeto de ocupação por cruzados infiéis, comandados por Israel e com o objetivo ou de implantar bases militares ou de arranjar petróleo barato. Qualquer movimento contra a Líbia – país árabe, muçulmano, obcecado numa luta sem tréguas contra o colonialismo e suando petróleo – dava a impressão de que seria visto como movimento extremamente hostil e sinistro, primeiro pelos seus próprios vizinhos árabes; mas também pelo mundo desenvolvido e até pelos próprios líbios.

A Líbia não atende, sequer, aos critérios da lei internacional, como alvo de intervenção militar. Gaddafi é o poder soberano, não os rebeldes; não praticava nem genocídio nem limpeza étnica. Na Bósnia, a situação era diferente: em algumas semanas haviam morrido 100 mil pessoas. E a própria Bósnia – estado soberano não reconhecido pela ONU – pediu formalmente a intervenção. O caso do Kosovo foi menos claro, mas a intervenção visou Milosevic e veio depois das guerras dos Bálcãs, iniciadas por ele, e do deslocamento forçado de 200 mil pessoas, com evidências abundantes de atrocidades movidas por preconceitos étnicos. Esse tipo de concepção do que seja uma intervenção militar legal, e que em 1999 parecia ser a quintessência da governança e do consenso global, deixou de ser a concepção dominante no ocidente. 

Em 2011, Brasil, Índia e a África do Sul, além de China, estão presentes no Conselho de Segurança da ONU e nenhum desses países apoiou a intervenção militar na Líbia.

Por isso, na 5ª-feira, falei na Casa dos Comuns, para dizer que, embora a Inglaterra tenha o dever e o direito moral de proteger os líbios, de Gaddafi, seria errado agir sem  plena autorização que viesse de uma Resolução do CSONU. A Grã-Bretanha deve usar o apoio à zona aérea de exclusão para dar sinal claro de que se opõe a Gaddafi e apóia os movimentos progressistas no Oriente Médio. Naquele momento, ainda cabia esperar que a Rússia vetaria a Resolução, o que excluiria definitivamente, de todos os cenários, o uso de jatos bombardeiros.

Mas a Rússia não vetou a resolução. E desde a noite passada, 17 de março, franceses, britânicos e norte-americanos estão autorizados a intervir no Oriente Médio, mediante “todas as medidas necessárias”. Nesse instante, ultimam-se os planos e os jatos bombardeiros preparam-se para decolar. Ministros de Relações Exteriores dos estados árabes menores recebem telefonemas, nos celulares privados, de políticos ocidentais. Por todo o mundo, explodem Twitters com a hashtag Líbia. E imagino que nos gabinetes oficiais, iluminados por telas de televisão gigantes, generais, conselherios especiais, diplomatas, assessores de imprensa, jornalistas e políticos tentam decidir o que fazer.

A primeira resposta de Gaddafi foi ativa. Menos de uma hora depois de aprovada a Resolução, seu porta-voz já falava em inglês da ONU sobre “aspectos técnicos do cessar-fogo”, “algumas preocupações sobre a redação do texto”. Usou tradutor para devolver ao árabe o que dizia em inglês – preocupado talvez com que seu público estivesse no Golfo, e queria que ouvissem o árabe mais formal. Mas o tradutor, mais seguro nas frases autoritárias sobre ‘as intenções pacíficas das forças de segurança nacional da Líbia’, brigou tanto contra o jargão da ONU, que teve de ser corrigido algumas vezes pelo chefe. Na 6ª-feira pela manhã, o ministro das Relações Exteriores da Líbia já dominava perfeitamente a nova persona de participante construtivo e neutro. Falou em árabe, referindo-se tão cerimoniosamente ao ‘Majlis al-Aman’ (‘Assembéia de Segurança’) que demorei a entender que se referia ao Conselho de Segurança da ONU, não a alguma unidade do aparelho de segurança de Gaddafi.

E quanto à resposta da Inglaterra? Se as crises da Bosnia, Kosovo, Iraque e Afeganistão, que consumiram mais de 100 mil vidas, 4 trilhões de dólares e absorveram um milhão de soldados de 60 países, não ensinaram a Inglaterra a ser mais prudente, poderiam, pelo menos, ter-nos ensinado a ser menos tolos. 

Por duas décadas, as políticas inglesas nesses países foram descritas, explicadas e criticadas por especialistas em filosofia política, funcionários públicos, ativistas de direitos humanos, jornalistas, trabalhadores, cineastas e mais de 10 mil consultores privados.

Em todo o mundo, políticos falam privadamente sobre “resoluções do Capítulo 7”, “no-fly zones”, “a experiência dos curdos” e “a responsabilidade de proteger”. Mas ninguém discute as questões relevantes da intervenção militar, como se fossem tão óbvias quanto sem qualquer importância. Ninguém precisa nem saber dizer os nomes de quatro cidades líbias, para encontrar quatro argumentos seja a favor, seja contra, o que a Inglaterra já está fazendo na Líbia. Basta requentar os mesmos argumentos que se usaram na Inglaterra em 1960s no caso do Vietnã; em 1920s, no caso da Síria; e em 1860s no caso do Afeganistão.

Os argumentos contra a intervenção foram itemizados por Albert Hirschman como “perversidade”, “futilidade/hipocrisia” e “temeridade”: intervenções são sempre perigosas (para a Inglaterra ou para a Líbia); podem dar em nada; e podem dar resultado exatamente contrário ao que se buscava. O mesmo se pode dizer também em linguagem médica e comercial: “primeiro, cuide de não piorar o que encontrar”; “não é assunto da sua conta”; e “estamos quebrados, temos de cuidar primeiro da nossa vida”. E há até argumentos racistas que dizem a mesma coisa, contra intervenção militar. Por exemplo, Conor Cruise O’Brien, em 1992: “Há lugares no mundo onde muita gente prefere a guerra e os saques e estupros e a dominação que sempre acompanham a guerra, a qualquer tipo de ocupação militar pró paz. O Afeganistão é um desses lugares. Outro, a Iugoslávia, depois do colapso do regime comunista que centralizava as ações”. 

Contra esses, há os quatro argumentos da segurança nacional da Inglaterra a favor da intervenção: medo de um estado-bandido; medo de um estado fracassado; medo pelos vizinhos; e medo pela própria Inglaterra. Primeiro, os ingleses declaramos que o Iraque seria estado-bandido – com armas de destruição em massa que poderiam ser detonadas em 45 minutos. Depois, os ingleses declaramos que o Afeganistão de 2002 seria estado fracassado – com o vácuo ocupado por narcotraficantes e terroristas. Depois, em 2009, a Inglaterra assumiu o medo em nome do Paquistão, vizinho do Afeganistão: “se o Afeganistão cair, em seguida o Paquistão cairá e os mulás-malucos porão as mãos nas bombas atômicas do Paquistão”. (Em tempos do Vietnã, chamava-se a isso “teoria do dominó”.) Depois, a Inglaterra temeu que sua reputação fosse ferida. De Kissinger no Vietnã aos britânicos no Afeganistão, há sempre a eterna ansiedade de não aparecer frente ao mundo como derrotado, ou como otário, por ter confiado no inimigo, ou como nação “sem credibilidade”. 

Na Líbia, todos esses argumentos centram-se em medo de Gaddafi; medo da al-Qaeda num estado fracassado post-Gaddafi; medo de instabilidade na região (guerra civil na Líbia, que agite o norte da África e empurre milhões de refugiados pelo Mediterrâneo em direção à Europa); e medo de a Inglaterra perder a “credibilidade” (e se Gaddafi sobreviver às nossas ameaças e bravatas?).

Em seguida, há os argumentos morais. Há argumentos contra a intervenção militar a partir da lei internacional (é agressão à soberania do estado) e argumentos a partir da culpa (‘nós sempre apoiamos Gaddafi. Nós, de fato, armamos Gaddafi, e há muito tempo’). Há argumentos a favor, calculados por escala – os únicos a que a imprensa-empresa dá atenção e os únicos que divulga – de sofrimento humano; por esse argumento, nada-fazer levaria a maior número de mortes: temos o direito e o dever de impedir que aumente o número de mortes, obrigação moral em face do povo líbio.

Até aqui, temos três argumentos contra agir. Quatro medos de não agir. E um cenário de culpas, leis e obrigações morais. Há pelo menos uma analogia histórica para cada uma dessas posições. Quem se oponha à intervenção pode falar de “não a outro Vietnã”. Quem apóie a intervenção, por razões de segurança nacional, pode falar de ‘pacifistas de araque’ e invocar Munique. E pode também clicar em “substituir todos” e, onde está a Líbia, meter o Zimbabwe, Darfur ou, no que tenha a ver, a Abissínia, Hejaz ou “o reino de Caubul e demais dependências”. Em todos os casos, o que mais parece contar não é qualquer conhecimento do país afetado, mas uma certa, determinada, atitude mental: ou nobre otimismo, ou pessimismo reacionário, e na prática, ou quase sempre, sem coisa alguma entre uma dessas atitudes mentais e a outra.

Não quero dizer com isso que as milhões de páginas produzidas ao longo das últimas duas décadas nada tenham acrescentado. Os argumentos sempre ganham alguma maquiagem e são apresentados em design atualizado, carregados de fulgurantes infográficos e estatísticas, decorados com novas analogias. Quem queira, pode trocar Vietnã por Iraque, Munique por Rwanda e a Segunda Guerra Mundial pela Bósnia. A política ‘sempre avante’ é hoje chamada “construção do Estado. E “pacificação” se chama hoje “guerra contraguerrilha”.

Mas as posições básicas permanecem ou preto ou branco. Faça ou não faça, e não existe meia casa. E é aí, precisamente, onde mora o perigo.

Hoje, na Câmara dos Comuns, fui acusado de ter escolhido sentar na cerca. “De um lado, você diz que a zona no-fly é humanitária e nada tem a ver com mudar o regime. De outro lado, você diz que a Inglaterra está agindo contra o governo de Gaddafi, para derrubá-lo”. E quando tentei mostrar que há diferença entre medidas militares com finalidades humanitárias e medidas civis com finalidade política, meu interlocutor reagiu: “Claro, seria o pior dos mundos”. É exatamente o contrário: esse me parece ser o menos pior dos mundos. 

É preferível uma zona aérea de exclusão a dar a impressão de que apoiamos ou endossamos as ações de Gaddafi; é melhor do que ocupar por terra, para derrubar o governo. Mas essas são medidas difíceis de explicar e de apresentar e vender.

É possível que eu esteja, simplesmente, traumatizado pelo envio de mais soldados para o Afeganistão. Talvez, agora, seria hora de eu festejar a decisão que a Inglaterra tomou, em vez de trazer à baila meu apoio sem entusiasmo e meus medos e cautelas. Afinal, a resolução da ONU explicitamente impede qualquer ocupação. 

O ocidente está ferido, sente-se empobrecido. E todos os nossos soldados estão sobrecarregados e exaustos. Os políticos mundiais, pelo menos até agora, têm conseguido escapar das respostas de otimismo temerário e tem conseguido não ouvir o que lhes dizem os falcões linha-dura nos governos. Obama conseguiu sobreviver à pressão para mandar mais soldados para o Afeganistão. Cameron fixou prazo final de 2015 para todas as operações de combate no mesmo Afeganistão. Dadas as circunstâncias, ambos foram moderados. Afinal, parece razoavelmente provável que não nos arrastarão ainda mais para o fundo da areia movediça, do pântano.

Seja como for, não consigo apagar completamente a experiência direta que tive no Afeganistão, quando, todos os dias, via-se que, sim, todos os dias, estávamos sendo arrastados sempre mais, sempre mais, cada vez mais, para o fundo. Em todos os casos, a única chance que temos para impedir que a intervenção militar na Líbia se aprofunde é conhecer o país, aquele país, cada vez mais especificamente, mais detalhadamente. Esse trabalho, infelizmente, não atrai nem políticos nem a imprensa e nunca dá sinais de ser trabalho considerado importante. 

Trabalho útil, hoje, seria construir um argumento contra a eficácia das sanções econômicas, a partir de informação confiável e bem construída e interpretação atenta e cuidadosa sobre o regime de Gaddafi, sua ideologia política, suas atitudes e ideias em relação ao ocidente.

Ao contrário, a retórica e a lógica a favor de intervenção militar cada vez mais profunda, com envolvimento militar cada vez maior na Região parece exercer atração hipnótica, irresistível. Já se ouvem, novamene, argumentos que se usaram a favor de a Inglaterra intervir no Afeganistão, agora a favor de intervenção na Líbia. 

Todas as preocupações com Gaddafi e “estabilidade” podem ser rapidamente convertidas em “ameaça existencial à segurança global” e acionar aqueles quatro medos. Passo seguinte, é concluir que o fracasso será grande demais para que se deixe acontecer. 

Mas já está acontecendo. Recentemente, no Afeganistão, um general americano disse-me que não há plano B. “O plano B é mais plano A”. Quando se diz que temos uma obrigação moral (nesse caso, com o povo líbio) ou um “dever de intervir”, tende-se a entender como uma obrigação moral incondicional. O complexo lógico, de estatísticas e teorias que levaram a nos aprofundar no Afeganistão continua ativo, extremamente sedutor. O mesmo pessoal estará, em breve, trabalhando sobre a Líbia. E quando virem que a zona aérea de exclusão não está dando o resultado que desejam que dê – nem derrubou o regime, nem pôs fim aos abusos contra os direitos humanos, nem melhorou as condições de segurança internacional –, não há qualquer dúvidas de que os mesmos exigirão, como sempre, mais envolvimento.

Como deputado na Câmara dos Comuns, ocorreu-me que talvez seja hora de lembrar as pessoas de que, apesar da desgraça do Afeganistão, a Inglaterra ainda pode ter papel construtivo no mundo. Hoje se discute a zona aérea de exclusão, que, hoje, me parece ser a opção mais certa. Mas nada me tira da cabeça que o perigo maior não é o desespero, mas as decisões irrefreáveis, quase hiperativas: o senso de alguma obrigação moral, o medo de estados-bandidos, de estados fracassados, de perdermos nossa “credibilidade”. Isso, sim, me faz temer que estejamos no início de mais uma década de superintervenção militar.

Invasão da Líbia: Mantendo aparências

Invasão da Líbia: Mantendo aparências

por William Bowles


“Os EUA assinalaram que a comunidade internacional deveria “ir além” de uma zona de interdição de voo na Líbia, sugerindo pela primeira vez a intervenção”. — “West should 'go beyond' no-fly zone, US says”  The Daily Telegraph, 20 March 2011

Então porque não há uma “zona de interdição de vôo” sobre a Costa do Marfim, ou o Iêmen ou o Bahrain ou na verdade sobre qualquer país onde o Estado esteja a matar os seus cidadãos? O que é que torna a Líbia diferente? Pode ser que a campanha de propaganda histérica quanto aos abusos de direitos humanos de Kadafi nos media ocidentais esteja relacionada com o que o responsável da OTAN Anders Fogh Rasmussen disse aos seus ouvintes polacos:

“Quando olho para a Europa central e oriental fico extremamente otimista acerca do futuro que podemos alcançar na África do Norte” — 'NATO: Libya Military Intervention: Model For North Africa' , Reuters, 17 March 2011

Refere-se aos derrubes com êxito dos antigos membros do Bloco do Leste e, naturalmente, à destruição da Jugoslávia. Assim, a Líbia está para ser o primeiro dentre muitos países que, de acordo com Rasmussen, estão em vias de obter “assistência humanitária” estilo OTAN.

Na realidade, tendo sido apanhada a dormitar na região, a invasão nominalmente apoiada pela ONU é uma tentativa do Império para recuperar o controle não só da resultante da rebelião da Líbia como também para estabelecer o cenário para muito mais — e não para a democracia ou direitos humanos, mas sim para assegurar controle sobre os ativos petrolíferos vitais (para o Ocidente) da Líbia, os maiores da África, e para assegurar o controle geral do Império sobre a região.

Como escrevi anteriormente, criar uma “zona de interdição de vôo” é um ato de guerra, ponto de vista que é confirmado pelo embaixador dos EUA na ONU, Rice:

“Um diplomata no conselho de segurança disse à Associated Press que Rice afirmara que o objetivo deveria ser expandido para além da criação de uma zona de interdição de voo para proteger civis. Para isto, a comunidade internacional deve dispor de todas as ferramentas necessárias – incluindo autorização para utilizar aviões, tropas ou navios para travar ataques das forças de terra, mar e ar de Kadafi... O Pentágono descreveu [a zona de interdição de voo) como uma medida equivalente à guerra”. — 'Authorise Libya air strikes, US urges UN'The Guardian, 17 March 2011

A “zona de interdição” é, de fato, um ato de guerra contra a Líbia, pois para impô-la é preciso primeiro destruir a capacidade militar do inimigo para atuar, do contrário seriam apenas palavras. Mas pior ainda é a gigantesca mentira que foi impingida pelo Império quanto a acontecimentos na Líbia utilizados para justificar esta ação horrenda, todos os quais tem ocorrido. Já a relatos de mortes civis decorrentes dos ataques de mísseis do Império. Tudo isto é asquerosamente previsível.

Enquanto isso, a esquerda ocidental, tal como ela é, e da mesma forma deprimentemente previsível, agora está numa aflição real. Um jornalista "de esquerda", Gilbert Achcar, escrevendo para a ZCommunications disse o seguinte:

"Assim, para resumir, acredito que de uma perspectiva antiimperialista ninguém pode nem deveria opor-se à zona de interdição de voo, uma vez que não há alternativa plausível para proteger a população em perigo. O egípcios segundo dizem estão proporcionando armas à oposição líbia — e isso é bom — mas em si mesmo isso não poderia ter feito uma diferença que salvasse Bengazi a tempo. Mas, mais uma vez, deve-se manter uma atitude muito crítica em relação ao que as potências ocidentais podem fazer". —'Libyan Developments', March 19, 2011

Será isto a “esquerda” falando numa bem conhecida plataforma “de esquerda”? Por que neste mundo Achcar pensa que o Egito, ainda uma ditadura militar, está interessada em direitos humanos na Líbia? Achcar justifica isso utilizando o mesmo argumento do Império, de que isto está a ser feito para impedir que Kadafi cometa atrocidades. Então porque Achcar não advogou uma "zona de interdição de voo" há muito mais tempo se ele acredita que isso teria impedido atrocidades de Kadafi? Por falar nisso, porque o Império não o fez?

Perco a esperança...

Absorto em todas as alegações de um “reino de terror” de Kadafi, armado pelos mesmos que estão agora ocupados a destruí-lo, ao invés de centrar nos motivos porque o Império estava tão preocupado com o regime de Kadafi, na verdade a armar Israel quando este dizimava Gaza, esta “esquerda” é, agora, apanhada no assalto propagandístico do ocidente acerca da defesa de “direitos humanos”! Recordo a propósito que a imprensa hegemônica de referência faz grande estardalhaço quando propagandeiam a favor Império, declarando em numerosas ocasiões que só deveria ser utilizada a força para defender civis.

Mas tal como a infame Resolução da ONU que levou à invasão da Líbia, “defender civis” é uma declaração vazia e totalmente vaga que pode ser interpretada de qualquer modo.

O que não entendo é porque a Rússia e a China abstiveram-se de votar excepto pela afirmação feita pelo responsável do Partido Comunista da Rússia, Gennady Zyuganov, de que:

“Foram feitas mudanças no documento pouco antes da votação, embora tenham sido acordadas pelas partes. Estas mudanças são de facto alçapões para o lançamento de uma intervenção terrestre em grande escala” — 'Russian Communist leader slams Moscow's passive stance on Libya', RT, 18 March 2011

Contudo, a Rússia tendo já apoiado a ideia de uma "zona de interdição de voo" tinha de saber o que isso realmente implicava. O embaixador da Rússia na ONU justificou a sua abstenção como se segue:

“Asseverando que a Rússia não vetou a resolução porque estava "orientada pela necessidade de proteger civis e por valores humanitários gerais", ele permanecia convencido de que: um cessar-fogo imediato é o modo mais rápido para a segurança confiável da população pacífica e para a estabilização a longo prazo na Líbia”.

É vergonhoso por parte da Rússia após todo o ar quente acerca de se opor veementemente a qualquer intervenção estrangeira nos assuntos internos da Líbia. Adiante...

"Revolução" da Líbia inspirada e arquitetada pelos EUA?

Desde o princípio, a rebelião líbia foi apresentada como uma continuação das rebeliões em outras partes do Médio Oriente/África do Norte e os Estados/media de referência frequentemente utilizam as “revoluções” alhures como justificação para apoiar a “revolução” líbia, deixando de mencionar naturalmente que até agora não tem havido revoluções em qualquer parte do Médio Oriente ou África do Norte. De fato, o oposto é que tem sido o caso, com o Estado a assassinar seus cidadãos no Bahrain, na Arábia Saudita e no Iêmen e nenhum sinal de os mísseis do Império choverem sobre o Bahrain, o Iêmen ou Arábia Saudita abastecidos com arsenais dos EUA.

"Numa iniciativa para impor novas restrições ao governo líbio, o Departamento do Tesouro sancionou o ministro dos Negócios Estrangeiros do país, que foi activo chave da CIA ao longo de anos" — 'US Tightens Screws On Libya, Sanctioning Foreign Minister And 16 Companies' , New York Times, 15 March, 2011

O que sabemos é que a CIA e a National Endowment for Democracy (NED), a trabalhar em conjunto para o governo estadunidense, estão fortemente envolvidas no apoio à “revolução” líbia e, como ilustra a notícia acima do NYT, os EUA têm agentes dentro do governo Kadafi desde há anos.

“A FNSL faz parte da National Conference for the Libyan Opposition estabelecida em Londres em 2005 e estão a ser utilizados recursos britânicos para apoiar a FNSL e outras “oposições” na Líbia. A FNSL foi realmente formada em Outubro de 1981 no Sudão sob o coronel Jaafar Nimieri – o fantoche estadunidense que era amplamente conhecido como operacional da Central Intelligence Agency e que dominou o Sudão implacavelmente desde 1977 até 1985. A FNSL realizou o seu congresso nacional nos EUA em Julho de 2007. Relatórios de “atrocidades” e mortes civis estão a ser canalizados para imprensa ocidental a partir de operações em Washington DC, e a oposição FNSL está confirmadamente a organizar resistência e ataques militares tanto dentro como fora da Líbia”. — 'Petroleum and Empire in North Africa. NATO Invasion of Libya Underway' , By Keith Harmon Snow, 2 March 2011.

Um estratagema esperto foi tramado pelo Império e seus cúmplices bem antes da invasão de ontem incluindo, estou certo, envolvimento direto na rebelião. [1]

Primeiro, esperar e ver se os rebeldes podem encenar um golpe com êxito. Se não – e foi o que aconteceu com as forças de Kadafi prontas para recuperar Bengazi – persuadir aqueles em dúvida de que Kadafi estava prestes a cometer horrores indizíveis (já gerados desde o primeiro dia da rebelião com os rumores não fundamentados das atrocidades de Kadafi e de mercenários africanos) e pressionar por uma resolução ilimitada do Conselho de Segurança que desse ao Império rédea livre para fazer o que quer que quisesse fazer com a Líbia.

E para tornar todo o caso sórdido e ilegal mais palatável para um mundo bastante habituado a ser “libertado” pela “generosidade” dos EUA na sua distribuição de democracia, fazer tudo isto através de uma frente anglo-francesa (eles que têm mais a perder na Líbia, juntamente com os italianos, devido às suas concessões petrolíferas) mas com os EUA a puxarem todos os cordões (e a dispararem a maior parte dos mísseis).

Um acordo cínico e sórdido digno apenas de piratas que tiveram êxito em transformar um antigo aliado num ogre, como Manuel Noriega, que também passara a data de validade e na verdade era um embaraço potencial para o Império.

A “ótica” vesga da Alvorada da Odisséia

A “ótica” vesga da Alvorada da Odisséia

Pepe Escobar

Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu

A Operação Alvorada da Odisséia, pelo menos por hora, é a primeira guerra do AFRICOM dos EUA. O Pentágono, via o vice-almirante Bill Gortney, dissipou qualquer dúvida que houvesse, quando disse que “o fio condutor” é norte-americano. O papel de Homero ficou a cargo do general Carter Ham, que comanda de seu gabinete em Stuttgart, Alemanha (nenhum país africano interessou-se por hospedar o AFRICOM). E Ulisses – no que já tem mais cara e som de Ilíada que de Odisséia – é o comandante da Força Tarefa Conjunta Aurora da Odisséia almirante Sam Locklear, a bordo do USS Mount Whitney em algum ponto do Mediterrâneo. 

Os estrategistas bélicos da Casa Branca e do Pentágono apostaram as “excepcionais capacidades” deles numa versão remix-reduzida do “choque e pavor” da guerra do Iraque. O único problema é que o coronel Muammar Gaddafi não parece nem chocado nem apavorado; está furioso – na foto dessa 3ª-feira no complexo de Bab al-Aziziya – mas não vergou. E seu governo resiste, sem se por contra o coronel. 

Apesar disso, Washington tenta projetar uma imagem pública, mostrando a fantasia de que estaria louca para livrar-se dessa guerra, vendida como “missão limitada”. Mas os comunicados estão confusos. Dizem, na linguagem do Pentágono, que os senhores da guerra estariam encontrando dificuldades na “transição para um comando da coalizão”. 

Washington deveria ter avaliado melhor a “ótica”, antes de evocar Homero. Esqueçam “o peso da missão” (em andamento), “fogo amigo” (virá), “dano colateral” (já aconteceu), “eixo do mal” (expressão favorita perene). O novo neologismo de prestígio em Washington e nos círculos íntimos do poder é “ótica”. 

Os militares-de-sempre e seus jornalistas-de-sempre carpindo a fórmula da “ótica emocional” dos mísseis cruzadores plus os briefings assinados pela “coalizão” já repuseram, na cabeça de todos, a guerra do Iraque-2003. Espalha-se nos EUA o medo de mais uma “ótica da guerra sem fim”, mais uma vez contra país muçulmano. 

Ilusões de ótica 

Até entre os “aliados”, a “ótica”, do tipo lata de lixo. A Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) é completa confusão. A Turquia exige diálogo – e não admite bombas. A Alemanha é contra qualquer intervenção pela OTAN e destaca que bombas não darão conta do recado. A França, arrastada pela megalomania do neonapoleônico Nicolas Sarkozy, quer manter a ilusão de que estaria no comando. 

Com medo de que a França usurpe-lhe o trono de primeiro parceiro comercial da Líbia e na luta para impedir que a política mediterrânea seja ditada em Paris, o governo do grande amigo de Gaddafi, Silvio “Bunga-Bunga” Berlusconi, aderiu com relutância à “coalizão” (e agora, no privado, Bunga Bunga diz horrores contra Sarko). A gigante italiana de energia ENI investiu 50 bilhões de dólares na Líbia; a ENI tem todo o interesse em livrar-se de Gaddafi, depois que o coronel ameaçou abrir as torneiras do gás e petróleo líbios para os BRICs Rússia, Índia e China. 

Os principais quatro BRICSs (o quinto membro é a África do Sul) livraram-se, espertamente, de toda a Odisséia. O Brasil exigiu cessar-fogo e diálogo. A China manifestou “profunda preocupação” e alertou para a iminência de um “desastre humanitário”. A Índia disse que “nenhuma potência externa deve intervir” na Líbia. E a Rússia, pelo primeiro-ministro Vladimir Putin, denunciou uma “resolução que permite tudo”. 

O mesmo fez a União Africana, de 53 nações. A União Africana quer solução diplomática. Gaddafi tem muitos aliados históricos na União Africana. E ajuda a pagar muitas contas da União Africana. 

A Argélia – membro também da Liga Árabe – disse que a intervenção é “desproporcional”. No Chad, o presidente Idriss Deby continua no poder em boa parte graças aos bolsos fundos de Gaddafi. Deby pagou o favor enviando mercenários e armas para Trípoli. E mais: se a zona aérea de exclusão não for estendida até o sul da Líbia (por enquanto só cobre o norte e o litoral mediterrâneo), Gaddafi continuará a poder receber ajuda, armas e mercenários, que lhe chegarão do Chad, Mali, Niger e da Argélia (ver “Despachem os tuaregues, por avião, urgente!”, 8/3/2011, redecastorphoto). 

Não raiou, na Alvorada da Odisseia da cabeça dos estrategistas do Pentágono, que coalizão que não tenha explícito apoio da União Africana implica, sempre, que a União Africana poderá continuar a ajudar o regime de Gaddafi. 

E há também a carne no kebab da coalizão – a Liga Árabe. O fato de Washington ter ordenado aos assustados reis do Marrocos e da Jordânia e aos ricos emires em Doha e Abu Dhabi que se engajassem como “aliados” – todos indiferentes ao grotesco indescritível de esses ditadores fazerem pose de salvadores humanitários da democracia – não implica que toda a Liga Árabe esteja a bordo da Alvorada da Odisséia. É isso.

Claro. A menos que se computem os éramos-seis, viramos-quatro, agora-só-dois Mirages 2000 da Força Aérea do Qatar, mais um avião cargueiro C-17 – que entrarão em cena no próximo fim de semana –, como toda a gloriosa contribuição da Liga Árabe para os combates da “coalizão”. 

Sem fim de jogo 

A “coalizão” não chegara nem perto de ter esgotado “todas as medidas necessárias” que a Resolução n. 1.973 da ONU encarregou-a de adotar, e os Ulisses-EUA já lá estavam, despejando Tomahawks sobre a Líbia. Todos os países do mundo que não estão representados nessa “coalizão de vontades” querem, essencialmente, que uma equipe internacional – Liga Árabe, União Africana e ONU – vá até Trípoli e negocie um pacote: cessar-fogo real, mecanismos eficazes para proteger civis e processo viável que leve a eleições na Líbia. A “ótica” de Washington não viu isso?

E como se não bastasse a “ótica” vesga, a Alvorada da Odisséia ainda nem conseguiu raiar. No máximo, evitou um possível massacre em Benghazi. Relatos horríveis de Zawiya e Misurata contam sobre civis atacados por tanques e veículos blindados, e das milícias – os “irregulares” de Gaddafi – em jipes e caminhonetes pick-up. É a prova que basta, de que zona aérea de exclusão – até aqui, só feita de choque e horror – não está efetivamente protegendo civis alguns. 

O presidente Barack Obama parece convencido de que conseguiu inverter a “ótica”. Os noticiários não se cansam de repetir que Obama, o primeiro-ministro britânico David Cameron e “Sarko” concordaram com que a OTAN tenha “papel central” na Alvorada da Odisséia. Foi como enviesar a “ótica” de modo a dizer que os EUA nada teriam a ver com a implantação militar da zona aérea de exclusão – quando ficaram encarregados de tudo (os 28 membros da OTAN aprovarão tudo, por unanimidade). 

Essa saturação ótica contribui para tornar ainda mais evidente o que já era claro desde o início. A guerra passará por uma “transição”: de “coalizão de três vontades” (EUA, Grã-Bretanha e França), para “guerra da OTAN”. 

Se o Pentágono realmente aplicasse todas as suas exaltadas “excepcionais capacidades”, o regime de Gaddafi estaria reduzido a pó em alguns minutos. Mas é “missão limitada” conduzida por uma “coalizão” – não é “mudança de regime”, embora mudar o regime seja tudo o que desejam Obama, os europeus e vários ditadores árabes. Para eles, trata-se da “ótica” do alerta vermelho. 

O establishment em Washington festeja que, pela primeira vez, “o público árabe” estaria apoiando uma intervenção norte-americana. Cuidado com a “ótica”. O “público árabe” também está vendo que Gaddafi atira contra o próprio povo e, em seguida, é bombardeado pelos EUA e pelo ocidente. Por que não se providencia a mesma solução contra os ditadores no Iêmen e no Bahrain? 

O “público árabe” também sabe identificar claramente os métodos que EUA e europeus usam para tentar roubar, do mesmo público árabe, a sua grande revolta árabe de 2011. 

Por hora, com tanta “ótica” confusa, nenhum think-tank atreve-se a prever o que a “coalizão” tirará da manga, quando nenhuma zona aérea de exclusão detiver Gaddafi. Armar os “rebeldes”, exército de farrapos, mas valentes e ultramotivados – o que já está sendo feito – é ação autorizada pela Resolução n. 1.973 da ONU. Washington, Londres e Paris esperam que os rebeldes logo partam da defesa ao ataque, marchem sobre Trípoli, derrubem o tirano e garantam à audiência um final feliz hollywoodiano. 

Nunca acontecerá. O conselho de transição em Benghazi pediu uma zona aérea de exclusão – não intervenção estrangeira. A Alvorada da Odisséia só faz bombardear pesadamente Trípoli – no outro extremo do país. A população de Trípoli já começa a ver aí o início de nova guerra colonial. O que significa que nenhuma transição política pós-Gaddafi jamais será pacífica. Muito perversamente, a Alvorada da Odisseia prepara o terreno para dividir a Líbia. Alvorada, no máximo, da balcanização. 

Qualquer analista militar decente, que valha o que custa ao Estado em uísque on the rocks, sabe que guerras vencem-se no chão. O impulso humanitário é cortina de fumaça: por que a Líbia, e não o Iêmen, o Bahrain, Gaza?. Tudo faz temer outro, novo, muito perigoso teatro de guerra no chamado MENA [ing. Middle East e Norte da África), Odisséia desnorteada, distorcida, sem fim de jogo nem final à vista. Aparece, desaparece; agora você vê, agora você não vê.

Líbia: Proteger “civis” ou ajudar “rebeldes”?

Líbia: Proteger “civis” ou ajudar “rebeldes”?


Timothy Bancroft-Hinchey
Timothy Bancroft-Hinchey - Pravda.Ru


Na Líbia, certos membros da comunidade internacional caíram novamente na armadilha da “síndrome dos Balcãs”, quando o sentido de culpa por não ter agido mais cedo provocou uma reação instintiva, com consequências desastrosas: a farsa chamada Kosovo? Na Líbia, eles estão protegendo “civis” ou eles estão ajudando “rebeldes”?

Louvável que seja ter preocupações com a segurança dos seres humanos, é também o dever dos líderes da comunidade internacional pensar cuidadosamente antes de agir e não cair na armadilha da “síndrome dos Balcãs”, quando a culpa por não ter agido tempestivamente provocou uma reação instintiva, com consequências desastrosas: o insulto ao direito internacional chamado Kosovo. E desde quando é que uns bandos fortemente armados de islâmicos fanáticos barbudos se descrevem como “civis desarmados”?

No entanto, alguém na comunidade internacional nestes dias age ou reage pela bondade do seu coração, ou através do auto-interesse e a obrigação de proteger os grupos que o colocou no poder? Quão democráticas são as sociedades “democráticas”, quando o poder real é detido por grupos de barões cinzentos que puxam os fios de interesse empresarial por trás dos bastidores, e quando os governos são eleitos, dependendo do desempenho do líder do partido nas imagens televisivas?

Quão democrática e livre é a mídia, quando a informação é controlada e apresentada em um belo pacote arrumadinho em que a verdade muitas vezes é reprimida ou ignorada e mentiras e desinformação são manipuladas?

Louvável que seja ter preocupações com o bem-estar das pessoas; vamos, então, considerar algumas questões relacionadas com o ataque contra a Líbia, liderada pelos EUA, Reino Unido e França.

Em primeiro lugar, a situação interna no estado soberano da Líbia foi uma questão de uma revolta popular contra as normas opressivas de vida, enquanto uma claque de elitistas sangrou o país? Não, porque a riqueza da Líbia foi e será distribuída, enquanto Muammar Al-Gaddafi conserve a sua influência. Ou foi a situação na Líbia alimentada por “rebeldes” ajudados e incentivados e abastecidos a partir da fronteira no Ocidente (Tunísia) e Oriente (Egito), cujos governos haviam convenientemente “caído”? Vamos dar uma olhada onde a “rebelião” se iniciou.

Não começou em Trípoli, a cidade capital - onde Muammar Al-Gaddafi é tão obviamente ainda muito popular, iniciou-se na província tradicionalmente separatista de Cirenáica (Benghazi) e ao longo da fronteira ocidental.

Em segundo lugar, onde estão esses “civis desarmados”? É difícil imaginar que tipo de televisão David Cameron, Barack Obama e Nicolas Sarkozy estão assistindo, porque os “civis desarmados” que eu vejo mostram homens barbudos fortemente armados, quadrilhas de saqueadores e de bandidos gritando “Allahu Akhbar”. Agora, onde eu já ouvi isso antes?

Em terceiro lugar, o Ocidente errou ainda mais uma vez? Será que sem pensar claramente, eles foram enganados a armar aqueles cujas intenções não são nem democráticas, nem tão claras e, provavelmente, eventualmente anti-ocidentais? Lembrem-se dos mujahidin, os “libertadores” no Afeganistão, que destruíram os direitos das mulheres naquele país e, em seguida, passaram a se transformar no Talibã? A nota de agradecimento foi 9/11.

Em quarto lugar, a Resolução 1973 (2011) da ONU é suficientemente vaga para ter servido para se transformar numa grande dor de cabeça entre os membros da comunidade internacional. Só podemos imaginar as travessuras nos bastidores antes de sua aprovação apressada - era óbvio a partir das palavras do Ministro do Exterior francês Alain Juppé, que era para passar antes mesmo de ser votado.

A redação do seu Parágrafo n º 4, sobre a proteção dos civis, cita Nº 9 da Resolução 1970 (2011), que expressamente proíbe a exportação de armas para o Jamahiriya Árabe Líbia. Quem, então, está fornecendo armas aos “rebeldes”, está quebrando a lei internacional; os termos do § 4º da Resolução 1973 (2011) mencionam a autoridade à força da ONU “para proteger os civis e áreas habitadas por civis, sob ameaça de ataque na Líbia”.

Isso não vai contra os preceitos do direito internacional, em que os Estados membros são livres para se proteger em caso de insurreição armada? E onde é que se traça a linha entre “proteger os civis” e atacar as forças do Governo, permitindo que os “civis” avancem sobre Trípoli, como tem sido sugerido em numerosos meios de comunicação?

Em quinto lugar, como pode um grupo de pessoas com uniformes, equipados com armamento pesado, ser considerado “civis” e, portanto, como pode qualquer ataque militar substancial sobre as forças da Jamahiriya Árabe Líbia ser algo senão uma violação do direito internacional, ocasionando interferência na assuntos internos de um Estado soberano?

Em sexto lugar, o presidente Obama foi ao Congresso pedir autorização para entrar num ato de guerra, como ele deveria? David Cameron tem informado os seus cidadãos que unidades de maternidades acabam de ser fechadas num hospital; escolas foram fechadas, famílias foram insultadas e/ou atacadas por gangues de criminosos bêbados e drogados? Tudo porque a força policial foi brutalmente reduzida. Quanto dinheiro ele está gastando na aventura da Líbia?

Para aqueles que na Grã-Bretanha estão na lista de espera para uma cirurgia, para aqueles para quem não foi possível obter uma cama de hospital, que foram negados medicamentos oncológicos porque são caros demais e cujos subsídios de segurança social foram cortados, enviando-os à miséria, tenho o prazer de informar que o custo de uma missão por aeronave por hora é entre 35,000 e 50,000 libras esterlinas, ou 200.000 por avião, por dia. O custo de um papel secundário em uma operação de exclusão aérea prolongada na região é de 300 milhões de libras por ano. No mínimo.

Para fazer o quê? Ajuda um bando de saqueadores de fanáticos barbudos tomarem o poder nas portas da Europa?

Finalmente, quantos dos envolvidos nesta campanha maníaca se preocupou em pesquisar a enorme quantidade de ações que Coronel Al-Qathafi tem feito não só para o seu povo, mas também para a África? Por quê era agendada uma homenagem ao Muammar Al-Gaddafi ainda este mês na ONU, sobre seu registro em defesa de direitos humanos? Sobre a sua tolerância religiosa… Relatório que elogiou-o por proteger “não só direitos políticos mas também direitos econômicos, sociais e culturais”, elogiou-o pelo seu tratamento de minorias e pelo treinamento em matéria humanitária pelas forças de segurança.

Quantos deles afirmaram que ele foi uma das primeiras vozes que ressoaram contra Al Qaeda e o terrorismo internacional? Quantos já explicaram que recebeu o país mais pobre do mundo e transformou-o no país com o maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da África?

Mais uma vez, os mais beligerantes membros da comunidade internacional se precipitaram, caíram na armadilha da “síndrome dos Balcãs”, (quando Clinton queria retirar as atenções da sua braguilha). Desta vez, quem são os três líderes com problemas de popularidade nos seus países? Barack Obama, David Cameron, e Nicolas Sarkozy, cujas taxas de aprovação estão abaixo daqueles de Muammar Al-Gaddafi.

“Se Israel, o Bahrain e a Arábia Saudita tremem de medo, os EUA invadem a Líbia e vociferam ameaças contra o Irã.”

“Se Israel, o Bahrain e a Arábia Saudita tremem de medo, os EUA invadem a Líbia e vociferam ameaças contra o Irã.”

Kaveh L Afrasiabi
23/3/2011, Kaveh L Afrasiabi, Asia Times Online
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

“Os EUA continuarão a ser derrotados na Região” – disse o Líder Supremo do Irã Aiatolá Seyed Ali Khamenei, em discurso nas comemorações do Ano Novo persa, um dia depois de “nova mensagem de ano novo” do presidente dos EUA Barack Obama, a qual, objetivamente considerada, foi como uma declaração de guerra à República Islâmica do Irã. 

Acusando os EUA de apoiarem ditadores até o último minuto, e de, hoje, estar tentando criar uma guerra sectária entre xiitas e sunitas, para perpetrar a influência dos EUA no Oriente Médio, Khamenei descreveu Obama como ignorante, confuso e mal informado, por ter comparado as massas iranianas na Praça da Liberdade em Teerã em 2009 e os manifestantes egípcios na Praça Tahrir em janeiro passado. Khamenei lembrou à Casa Branca que os iranianos há décadas reúnem-se naquela praça para celebrar sua revolução. E que o slogan da revolução popular iraniana é “morte aos EUA”. 

Khamenei comentou também a política interna dos EUA. Acusou Obama de estar vendendo o país à grande finança do mundo e de ser indiferente aos sofrimentos pelos quais passam os trabalhadores e os mais pobres nos EUA, aos quais não dá qualquer atenção e dos quais jamais fala. Foi resposta quase item a item ao discurso de Obama no Nawruz, ano novo persa, discurso no qual Obama destacou manifestações de jovens iranianos contra o regime. Essa é a estratégia da propaganda dos EUA, que o governo Obama está seguindo aplicadamente e que em boa parte depende de algumas organizações de iranianos nos EUA. 

No discurso do Ano Novo persa dirigido aos iranianos e distribuído no domingo pela Casa Branca, Obama disse: 

Creio que há alguns valores universais – a liberdade de reunir-se pacificamente, a liberdade de associação; o direito de falar o que se pensa e de eleger os próprios governantes. Mas também sabemos que esses  movimentos de mudança não são só os que temos visto nos últimos meses. As mesmas forças de esperança que apareceram na Praça Tahrir também se viram na Praça Azadi [Liberdade] em junho de 2009. (...) 

Até agora, o governo iraniano só respondeu com provas de que dá muito mais importância à preservação do próprio poder do que ao respeito aos direitos do povo iraniano (...) 60% dos iranianos nascidos depois da revolução de 1979 têm o direito de forjar um país conforme às suas aspirações (...). Embora haja tempos difíceis à frente, quero que os jovens iranianos saibam que estou com eles.”

A parte talvez mais importante do discurso de Khamenei teve a ver com a Líbia, país à beira de uma guerra civil e que sofre sob intervenção militar estrangeira, feita sob o pretexto de implantar uma zona aérea de exclusão por decisão da ONU. Segundo a agência France-Presse, Khamenei disse, em transmissão ao vivo da cidade santa de Mashhad:

O Irã condena veementemente o comportamento do governo líbio contra o povo, a morte de civis, a pressão contra a vontade do povo, o bombardeio de cidades líbias por líbios. Mas o Irã também condena veementemente a ação militar estrangeira na Líbia. Os EUA e outros exércitos ocidentais dizem defender o povo. Mas não se defende o povo com operações militares de exércitos estrangeiros, nem com invasão e intervenção militar. A Líbia foi invadida. Nenhum dos exércitos estrangeiros que hoje invadem a Líbia lá está para defender o povo. Vocês estão à caça do petróleo líbio.

Khamenei disse também que os EUA e outros exércitos ocidentais desejam cavar para eles um espaço no país, de onde possam monitorar os regimes do Egito e da Tunísia. As palavras mais fortes, contudo, Khamenei reservou à própria ONU, que acusou de estar convertida em instrumento do ocidente. Denunciou a resolução n. 1.973 do CSONU, sobre a Líbia, como “grande vergonha” para a ONU. 

O discurso de Khamenei teve muito eco e foi importante na Região, porque trouxe à tona, em termos claros e transparentes inúmeras questões chaves que circulam na sociedade iraniana ainda cercadas de muita ambiguidade e mascaradas como se fossem algum “dilema político”. 

Ano passado, Khamenei fez questão de responder a uma das muitas cartas que Obama enviou-lhe em 2009. Em 2011 já não manifesta qualquer interesse em investir muito na possibilidade de qualquer tipo de détente com os EUA. Há dois anos, quando da primeira mensagem de ano novo, foi como se Obama estendesse um pequeno ramo de oliveira e estivesse prometendo política de engajamento, sem ameaças. Na ocasião, Khamenei respondeu que ninguém no Irã jamais dissera que haveria animosidade eterna contra os EUA. Disse que sempre que o Irã visse sinais tangíveis de que os EUA tivessem “mudado de atitude”, haveria sinais recíprocos, de Teerã. 

Dois anos depois, aqueles sentimentos positivos de ambos os lados parecem muito distantes, superados por uma maré de eventos que separaram cada vez mais EUA e o Irã. 

Resultado disso, os EUA voltam à velha tática de “mudar regimes”, tão aplaudida em Telavive, e esperam capitalizar a atração que Obama exerce sobre jovens iranianos. Mas a pergunta que afinal veio à tona, depois de Obama ter radicalizado o discurso de provocação na mensagem de 2011 (“o futuro do Irã não será modelado pelo medo”, disse Obama) é: “mas... por que o futuro do Irã teria de ser modelado pelas políticas do Tio Sam”?! 

“O tom paternalista de Obama lembrou aos iranianos a linguagem imperialista que vários outros presidentes dos EUA usavam ao falar sobre o Irã. Alguém deveria lembrar ao Sr. Obama que ele não foi eleito presidente do mundo” – disse um professor da Universidade de Teerã, que preferiu não ser identificado. 

Segundo esse presidente, a maioria de seus colegas e alunos considerou “um insulto” a recente mensagem de Ano Novo, de Obama. “Não passa de propaganda política, vinda de um presidente acossado por novas e cada vez mais poderosas ameaças que se erguem contra os interesses dos EUA no Oriente Médio. Se Israel, o Bahrain e a Arábia Saudita tremem de medo, os EUA invadem a Líbia e vociferam ameaças contra o Irã.” 

Para o professor, já ninguém acredita que os EUA tenham qualquer preocupação sobre direitos humanos, nem no Irã nem em lugar algum. Assim fosse, muito teriam a preocupar-se com a violenta repressão contra manifestantes desarmados no Bahrain. “Nenhum direito humano violado no Bahrein tira o sono dos EUA”, disse o professor. “Os EUA só se preocupam, mesmo, com violações à segurança da 5ª Frota ancorada no Bahrain”. 

Khamenei levantou mais ou menos a mesma questão no discurso de Ano Novo. Perguntou por que os EUA não consideram “a presença de tanques sauditas no Bahrain”, como evidência de intervenção violenta, mas “pretendem que a objeção de líderes religiosos aos massacres no Bahrain seriam sinal de alguma intromissão do Irã”? 

A secretária Hillary Clinton também enviou mensagem de Ano Novo aos iranianos. Disse que “Festejamos as demonstração pacíficas em defesa dos direitos e da dignidade humana em quase toda a região”. Clinton até hoje jamais se manifestou e nada fez contra a violenta repressão às manifestações de cidadãos desarmados no Bahrain, limitando-se a muito tímidos pedidos de que os governantes do Bahrain mostrassem uma “moderação” que eles jamais mostraram. 

No momento em que aviões dos EUA e mísseis cruzadores dos EUA chovem sobre a Líbia, dando cada vez mais munição para que Muammar Gaddafi continue a matar cidadãos líbios, a inação dos EUA em relação ao Bahrain é como maná caído dos céus para os líderes iranianos. Poucas vezes encontraram fonte tão farta de argumentos para se autolegitimar. É erro dos EUA, não de Khamenei, que os EUA lhe ofereçam tão perfeito exemplo da hipocrisia e da falsidade do discurso político dos EUA. 

Resultado disso tudo, o novo ano persa promete mais, não menos, hostilidade entre EUA e o Irã. Não se vê no horizonte qualquer sinal de acomodação entre os interesses do Irã e dos EUA. Arma-se nova guerra fria a ser disputada em múltiplos palcos em todo o Oriente Médio.