domingo, 16 de outubro de 2011

O cerco se fecha contra o ministro Orlando Silva




O cerco se fecha contra o ministro Orlando SilvaFoto: ANTONIO CRUZ/ABR

PM QUE ACUSOU O MINISTRO DO ESPORTE EM REPORTAGEM DA REVISTA VEJA O CHAMA DE "BANDIDO" EM BLOG; FANTÁSTICO EXIBE REPORTAGEM COM EXEMPLO DE DESVIO DO PROGRAMA SEGUNDO TEMPO E DILMA LAVA AS MÃOS


247 – A situação do ministro do Esporte, Orlando Silva, não é fácil, e vai ficar ainda mais difícil neste início de semana. Autor da denúncia contra o ministro em matéria publicada na edição desta semana da revista Veja, o soldado da Polícia Militar do Distrito Federal João Dias Ferreira rebateu as críticas feitas por Orlando Silva durante entrevista coletiva concedida nesta sábado em Guadalajara, onde o ministro acompanha os jogos Pan-americanos. “Você está equivocado, eu não sou bandido, bandido é você e sua quadrilha que faz e refaz qualquer processo do ministério de acordo com sua conveniência e você sabe muito bem disso!”, escreveu o PM em mensagem postada em seu blog na internet.
João Dias Ferreira chegou a disputar vaga à Câmara Legislativa do DF em 2006 pelo PCdoB, partido de Orlando Silva. No texto publicado em seu blog, o policial também atirou contra o partido, que soltou nota em apoio ao ministro. “Sugestão: era bom o PC do B nacional ficar calado antes de sair em defesa do Orlando sumariamente”, escreveu o ex-militante do PCdoB, mostrando que não está disposto a recuar.
Ferreira também disse em seu blog que foi procurado na última sexta-feira, um dia antes de a Veja chegar às bancas, pelo secretário nacional de Esporte de Alto Rendimento do Ministério do Esporte, Ricardo Leyser Gonçalves. “E se tu [Orlando] não deves nada, porque [sic] mandou seu secretário nacional Ricardo Leiser [Leyser] tentar me localizar na sexta-feira, quando soube da matéria, o que ele queria comigo? Fazer mais um daqueles acordos não cumpridos?”, questiona o policial.
Mesmo diante de mais uma crise iminente na Esplanada dos Ministérios, o Palácio do Planalto não se moveu para defender Orlando Silva. A expectativa é que a presidente Dilma Rousseff deve aguardar o depoimento de Silva e suas repercussões para tomar alguma decisão. Calcula-se que nos últimos em oito anos mais de R$ 40 milhões foram desviados do programa Segundo Tempo, do Ministério do Esporte.

A prova de fogo do Enem



Apesar do histórico de tentativas de fraude dos dois últimos anos, a edição 2011 do exame bate recorde no número de inscritos e tem o desafio de consolidá-lo como a principal porta de entrada para o ensino superior

Rachel Costa
Assista ao vídeo e confira as dicas do professor Adilson Garcia, diretor da escola Vértice, que foi a melhor de São Paulo e a terceira melhor do País no Enem 2010 :
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TESTE 
5,4 milhões de estudantes se inscreveram para o Enem este ano:
83 universidades preencheram mais de 80 mil vagas com o exame
Não só os estudantes serão avaliados no próximo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que acontece nos dias 22 e 23 de outubro. Decisiva para o governo federal, esta edição será a chance de o Ministério da Educação (MEC) comprovar sua capacidade de realizar, com sucesso, um exame de abrangência nacional capaz de substituir o vestibular das principais universidades do País. Se tudo correr bem, são boas as chances de consolidação do modelo que tem atraído cada vez mais candidatos e universidades. Do contrário, corre-se o risco de retrocesso, com a perda da adesão de grandes instituições de ensino superior que estão apostando suas cartas no Enem. Desde 2009, quando foi criado o Sistema de Seleção Unificado (Sisu), o exame tornou-se porta de entrada para importantes universidades públicas. Percalços constantes, porém, têm ameaçado a reputação do exame (leia quadro), como o vazamento de conteúdo e o defeito de impressão que obrigou o MEC a reaplicar a prova a parte dos alunos. 

Se o passado não é dos melhores, o presente é promissor. Nunca tantas pessoas se inscreveram no exame como neste ano – são cerca de 5,4 milhões de candidatos, quase a população do Estado de Goiás. E espera-se atingir um número recorde de matrículas usando-se o Enem no próximo ano letivo. Para se ter uma ideia, no primeiro semestre deste ano, 83 universidades preencheram mais de 80 mil vagas apenas com a pontuação da prova realizada no ano passado – um aumento de 73% em relação ao primeiro semestre de 2010. Sem contar as instituições que substituíram a primeira etapa do vestibular pela nota do exame ou que o aceitam como pontuação adicional.
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INTERESSE
“Temos que aderir até para tentar mudá-lo”, diz Ângela Rocha,
pró-reitora da UFRJ, que usará apenas o Enem como forma de seleção
Diante disso, torna-se premente para o governo federal pôr um ponto-final nos problemas, atendendo às expectativas tanto dos estudantes quanto das universidades. O tema traz preocupações, inclusive, para o Palácio do Planalto. Na semana passada, o ministro da Educação, Fernando Haddad, foi chamado pela presidente Dilma que lhe disse para não se manifestar sobre o tema até a divulgação dos gabaritos. A presidente quer evitar que eventuais declarações de Haddad sirvam de munição no caso de algo dar errado. O ministro abordará o tema apenas na quinta-feira 20, em cadeia nacional de rádio e tevê. “Realizar o Enem é quase uma operação de guerra e dificilmente uma seleção desse tamanho não terá algum problema”, compara Antônia Vitória Soares Aranha, pró-reitora de graduação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “A questão é que sejam percalços solucionáveis e que não ameacem a legitimidade do processo.” O próprio Haddad é um dos maiores interessados na realização de um Enem tranquilo. O ministro não só bancou o modelo como tem nele uma plataforma para a disputa pela Prefeitura de São Paulo em 2012. Mais uma sabatina relacionada a problemas na prova certamente poderá atrapalhar sua futura campanha. 

Por isso, não se pode errar novamente. De acordo com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), órgão que coordena a realização do exame, o passado serviu de lição e a promessa é de que tudo ocorrerá bem nas 123 mil salas de aula, espalhadas em 1,6 mil cidades onde o teste será aplicado. Para isso, o Inep investiu em duas parcerias que prometem pôr fim à dor de cabeça causada por ter de organizar, praticamente sozinho, um exame das proporções do Enem. Nesta edição, o Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro) e as próprias instituições federais de ensino superior foram recrutados para ajudar. “Demandamos ao Inmetro a observação do processo de produção gráfica, manuseio e distribuição das provas”, diz a presidente do Inep, Malvina Tuttman. Esse primeiro contato pode evoluir para a criação de uma espécie de certificação do órgão para as edições futuras. Já as universidades atuarão como observadoras durante a aplicação das provas, sugerindo mudanças nos procedimentos de segurança a partir de sua expertise na realização de vestibulares. 

Quem defende o exame acredita que torná-lo mais seguro é apenas mais um passo na caminhada iniciada em 1998, com a sua criação – àquela época, uma espécie de autoavaliação dos alunos ao fim da educação básica. “Temos ainda problemas, mas isso não pode inviabilizar esse interessante instrumento para a democratização do ensino superior que é o Enem”, avalia Marilza Regattieri, oficial de programas da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) no Brasil. Em 1998 o Enem era tratado de forma marginal pelos estudantes do ensino médio, mas hoje a situação é outra. A adesão em massa das maiores universidades do País, o que parecia improvável há alguns anos, tornou-o potencialmente interessante para quem pretende cursar o ensino superior. Decisões como a da UFRJ, que neste ano extinguiu o vestibular para fazer a seleção apenas pelo Enem, dão ainda mais força ao exame. Outras instituições, como a UFMG e a Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), substituíram a primeira etapa pela nota na prova. Até mesmo quem vinha se mostrando irredutível ao uso do Enem, como a Universidade de São Paulo (USP), parece dar sinais de arrefecimento. Por meio de sua assessoria, a instituição informou que, para o próximo ano, deve analisar a possibilidade de uso da nota.
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NA ESCOLA
Cursinho do Enem, em São Paulo: os alunos se preparam para
enfrentar  uma maratona de dois dias de provas e 180 questões
Há quem acuse, nos bastidores, que a adesão das grandes universidades não foi consensual. Teria havido pressão por parte do Ministério da Educação, que forçou as instituições sob pena de restrição de recursos. Na versão oficial das instituições, porém, essa suposta ameaça é amenizada. “O MEC sinalizou a importância do Enem, mas não houve imposição. Tanto que optamos, por enquanto, por manter o vestibular”, diz Maria Adélia Pinhal de Carlos, presidente da Comissão Permanente de Seleção da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A instituição gaúcha usa o Enem apenas como parte da composição final da nota, caso o aluno faça essa opção. 

Não é segredo, portanto, que a adesão das universidades vem acompanhada por um grande interesse delas próprias. A moeda de troca em questão é ter mais voz nos processos decisórios do Enem – até então muito restritos ao Inep. “Se a gente acredita que esse sistema é melhor, temos que aderir a ele até mesmo para tentar mudá-lo”, sintetiza a pró-reitora de graduação da UFRJ, Ângela Rocha dos Santos. “Queremos participar.” Anseio que pode ser bom para todos. Para as instituições de ensino superior porque poderão garantir a entrada de candidatos mais próximos ao perfil por elas desejado. Para o MEC por poder aproveitar a expertise dessas universidades na realização de processos seletivos – não só para ajudar na segurança do exame, como também na definição de conteúdos. “Pela primeira vez as universidades estão sendo chamadas para contribuir com o banco nacional de itens, uma espécie de arquivo com questões para as próximas edições do exame”, diz Luiz Antônio Prazeres, consultor em processos de avaliação educacional e professor do Centro Pedagógico da UFMG. “Esse é um caminho interessante e sem volta.” 

Além da negociação política, há os benefícios práticos de se aderir ao Enem. Um deles, a redução de custos com o vestibular. Outro ponto positivo é tornar as universidades e seus cursos conhecidos nacionalmente. Com a unificação do processo de seleção, instaurada pelo Sisu, se favorece a mobilidade dos alunos. Só no último ano, mais de 11 mil estudantes optaram por universidades de outros Estados, o que representou 15% das matriculas via Sisu. O efeito disso é que os próprios coordenadores de curso têm pedido para incluir algumas graduações no sistema. É o caso de oceanografia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). “O interesse é atrair alunos de várias regiões do País”, diz Armando Cavalcanti, presidente da Comissão de Vestibulares da UFPE. Oceanografia é o único curso da instituição no Sisu. Para os demais, o Enem substitui somente a primeira etapa do vestibular. 

A concorrência nacional também pode representar a garantia de sala cheia para determinados cursos nos quais há dificuldade no preenchimento das cadeiras disponíveis. Foi o caso da graduação em ciências da matemática e da Terra da UFRJ. Criado em 2009, o curso nunca havia tido todas as suas vagas preenchidas. Sem contar os benefícios para os candidatos, que, com apenas uma prova, podem tentar vagas em diversas universidades. Isso simplifica o processo de ingresso no ensino superior, amenizando a tensão de uma agenda repleta de vestibulares e, muitas vezes, a necessidade de se deslocar para outras cidades para participar de processos seletivos.
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ALTERNATIVA
A UnB, de Brasília, é uma das universidades federais que usam o Enem em sua seleção
Embora muitos fatores apontem para a consolidação do Enem como principal processo de seleção universitária no Brasil, pairam ainda dúvidas sobre suas potencialidades. Em especial a respeito de sua tão aclamada capacidade de democratizar o acesso ao ensino superior no País. É fato, a mobilidade dos estudantes tem se tornado realidade, mas até que ponto ela tem gerado inclusão de alunos de classes socioeconômicas mais baixas? Como o tempo é pouco, faltam ainda dados conclusivos, mas os especialistas divergem em relação à capacidade democratizante do Enem. “Nosso vestibular fazia com que um grande número de estudantes se autoexcluísse, ou seja, eles ou não se inscreviam ou não compareciam à prova por achar que aquilo não era para eles”, diz Ângela Rocha dos Santos, da UFRJ. “O Enem, de certa forma, amplia esse espectro de candidatos que fazem a prova.” Discorda de Ângela o professor da USP Ocimar Alavarse. Para ele, embora se discurse muito sobre a democratização, nada mudou. “O exame não tem aumentado a probabilidade de ingresso de alunos de nível socioeconômico mais baixo em cursos concorridos”, alerta.

Também tem recebido nota baixa o excesso de questões do teste. Em 2009, quando foi reestruturado para se tornar uma ferramenta de seleção para o ensino superior, o Enem foi expandido. Aumentaram-se os dias de prova (de um para dois), e as questões subiram de 63 para 180. “Em quantidade de dias, a carga do Enem não me parece excessiva, mas ele se torna cansativo porque os enunciados são mais densos e mais longos quando comparados aos dos outros processos de seleção”, diz Alessandra Venturi, coordenadora pedagógica do cursinho da Poli, em São Paulo. Para o professor da USP Nilson José Machado, consultor na elaboração do exame de 1998 a 2002, há um mal-entendido, por parte da equipe atual de elaboração das provas, sobre a proposta original de contextualizar melhor as perguntas. “Quem faz as questões parece entender que contexto é com muito texto, por isso as provas estão muito longas e cansativas”, ironiza. Há até mesmo quem já proponha algumas alterações que poderiam ser feitas, como é o caso de Alberto Nascimento, coordenador do Vestibular Anglo, também em São Paulo. “A prova é boa, mas ela poderia ser melhorada. Por exemplo, por que são 45 e não 40 questões por área?”, avalia. 

É preciso também que o MEC se decida, finalmente, sobre as funções do exame. “Ele está sendo usado como vestibular, como termômetro para medir o desempenho da escola e para certificar os alunos no ensino médio”, diz Remi Castioni, professor da Faculdade de Educação da UnB. “Devíamos limpar esse excesso de funções e focá-lo como instrumento de acesso ao ensino superior.” O que se vê é que, superada a prova de fogo do próximo fim de semana, restará ainda ao MEC o dever de casa de investir mais no aperfeiçoamento do Enem, se a pretensão é mesmo a de que ele se consolide como o principal caminho para o ensino superior.
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O segundo abandono



Tornam-se comuns casos de crianças adotadas e, depois, devolvidas. E a Justiça não sabe como lidar com esse problema

Solange Azevedo
Confira, em vídeo, os depoimentos de três crianças :
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DUPLA DEVOLUÇÃO
Paula, de patinete, e o irmão mais novo viveram 11 meses com um casal paulista
Crianças adotivas não têm um passado feliz. Vão morar com famílias substitutas, em geral, porque viveram tragédias pessoais – foram abandonadas, vítimas de maus-tratos ou da miséria ou porque os pais biológicos morreram. Muitas têm a sorte de encontrar lares afetivos e formar laços sólidos. Uma parcela dessas crianças, porém, passa por outras experiências avassaladoras: o segundo, o terceiro abandono. São “devolvidas” à Justiça pelos pais adotivos ou guardiões e acabam em abrigos. Embora não exista um levantamento nacional, estatísticas regionais revelam que essa questão é grave e não deve ser desprezada. Das 35 crianças e adolescentes disponíveis para adoção na Associação Maria Helen Drexel, na zona sul de São Paulo, 11% já passaram por esse drama. Em apenas uma das varas da infância da cidade do Rio de Janeiro, ocorreram oito devoluções no primeiro semestre deste ano. Três de cada dez crianças e adolescentes que estão em abrigos de Santa Catarina foram devolvidos ao menos uma vez.

Devoluções ocorrem em três situações. Durante o estágio de convivência, em que a adoção definitiva ainda não foi efetivada, depois da adoção formalizada ou quando a família tem a guarda da criança. “Muitas devoluções poderiam ser evitadas. Mas o Judiciário brasileiro não tem estrutura para acompanhar esses casos como deveria”, afirma Mery-Ann Furtado e Silva, secretária-executiva da Comissão Esta­dual Judiciária de Adoção (Ceja) de Santa Catarina. Ela avalia que um dos principais problemas é que há pessoas que sonham com o “filho ideal” e, quando confrontadas com os desafios de educar uma “criança real”, não dão conta de lidar com “imperfeições” que, em filhos biológicos, seriam toleradas. “Estamos engatinhando no processo de preparação dessas famílias”, diz Mery-Ann. “Principalmente quando a criança é adotada mais velha, porque ela traz consigo componentes importantes que devem ser trabalhados.”
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DRAMA
11% das crianças disponíveis para adoção na Associação Maria Helen Drexel já foram devolvidas
Recentemente, a Justiça catarinense não aceitou que um casal devolvesse apenas um dos filhos adotivos – um garoto de 13 anos – e determinou a destituição do pátrio poder também sobre a irmã biológica dele – uma menina de 10 – porque considerou que ambos sofreram abuso emocional. Marcelo* e Tainá* foram adotados em 2004, por integrantes da classe média alta da região de Blumenau. Por uma professora universitária e um estrangeiro. Um homem ausente que, segundo relatos, não se comunica bem em português e vive às voltas com estudos no Exterior. “Eu me apaixonei pela Tainá. Deus a fez para mim. Ela quer ser minha e eu dela”, declarou a mãe adotiva a profissionais do Judiciário local. Como os magistrados raramente separam irmãos, o casal decidiu adotar Marcelo para não perder Tainá. Ele tinha 6 anos. Ela, 3. No abrigo onde morava, Marcelo era descrito como “muito normal” e “carinhoso”. Não havia nos registros algo que o apontasse como garoto-problema. Os irmãos seguiram para a casa da família e se juntaram a Maurício*, filho biológico do casal.

As rusgas com Marcelo começaram logo no primeiro dia. De acordo com a mãe adotiva, o menino levou uma surra porque deu um chute no pai. Diversas pessoas que conviveram com eles contaram, em depoimento, que Marcelo nunca foi aceito como filho e não houve grande esforço do casal para inseri-lo no contexto familiar. Marcelo sempre se sentiu indesejado. Tinha de ir a pé para a escola, num bairro vizinho. Tainá e o filho biológico frequentavam outros colégios e eram levados de carro. Se Marcelo fizesse alguma traquinagem, era punido severamente. Tainá e Maurício, muitas vezes, nem sequer eram repreendidos. Se Marcelo fizesse xixi na cama, tinha de lavar os lençóis. Tainá, não. A mãe adotiva chegou a dizer que no início sentia um carinho pelo menino. Mas, depois, passou a odiá-lo. Quando um oficial de justiça foi buscar as crianças para levá-las para um abrigo, a mulher se desesperou ao ser informada de que a menina também iria embora. Aos gritos, disse: “Isso é coisa do Marcelo, ele está se fingindo de doente para a juíza ficar com pena e levar a Tainá também. Ele não suporta ver que a Tainá é amada. O Marcelo é psicopata, precisa de um psiquiatra.”
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DOR
Raquel foi devolvida depois de 6 anos. A psicóloga Helena diz que a menina entrou em depressão
Na ação de destituição do poder familiar, o desembargador Joel Dias Figueira Júnior escreveu que “a desprezível prática da ‘devolução’ de crianças começa a assumir contornos de normalidade”. E que observa “a tomada de vulto, em todo o território nacional, de situações idênticas ou semelhantes” à vivida por Marcelo e Tainá. No Rio de Janeiro, um levantamento feito pelo Serviço Social e de Psicologia da Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da Comarca da Capital mostra que esse problema vem crescendo. Entre 2005 e 2010, 20 crianças foram devolvidas àquela vara. E, apenas no primeiro semestre deste ano, ocorreram oito devoluções. “As crianças são trazidas como objetos”, lamenta a psicóloga Patrícia Glycerio R. Pinho. “Quando o vínculo de filiação não se dá, pequenas dificuldades se tornam grandes. Às vezes, os pais adotivos não percebem que estão sendo testados e acham que é ingratidão da criança. Imperfeições num filho adotivo são mais difíceis de ser acolhidas porque os pais pensam: ‘isso não pertence a mim porque não o gerei’.”

Patrícia já viu e ouviu uma porção de absurdos. Certo dia, uma mãe adotiva, de bom nível sociocultural, ficou indignada porque a filha andava vomitando. “Estou dando salmão e ela nunca tinha comido”, reclamou. Outra, depois de um ano e meio, devolveu três irmãos ao conseguir engravidar. As crianças já tinham até trocado de nome. Foi um baque. “Geralmente, os pais vêm com uma posição fechada”, diz a psicóloga Patrícia. “O que é pior: a criança ficar numa casa onde já não tem espaço ou ir para um abrigo e tentarmos recolocá-la numa outra família?” Lidia Levy, psicóloga e professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, uma das autoras do trabalho “Família é muito sofrimento: um estudo de casos de devolução de crianças”, relata que está havendo uma mudança no perfil dos adotados. “Praticamente inexistem bebês disponíveis. Por isso, há quem não queira esperar na fila e acaba aceitando crianças mais velhas”, afirma Lidia. “Mas, se essa mudança não for bem trabalhada, pode não dar certo.”
"O Judiciário brasileiro não tem estrutura para acompanhar esses casos como deveria"
Mery-Ann Furtado e Silva, secretária-executiva da Ceja-SC
A pequena Raquel*, 10 anos, ficou seis anos sob a guarda da madrinha – a quem chamava de mãe – depois que a mãe biológica morreu. Durante muito tempo, a convivência foi pacífica. Mas, nos últimos meses, as desavenças com o filho biológico ficaram frequentes. “Eu e meu irmão brigávamos bastante, um irritava o outro, e o esposo da minha madrinha não me quis mais”, lembra Raquel. A menina vive na Associação Maria Helen Drexel e diz que quando sair do abrigo vai procurar pela guardiã. “A Raquel tem um amor imenso por ela”, analisa Helena Zgierski, psicóloga da associação. “Apresentou depressão e um quadro psiquiátrico complicado quando chegou aqui. Passou dias e noites sem dormir nem comer. Só chorando. Crianças devolvidas se culpam e acham que não são boas o suficiente.” Helena afirma que pessoas que procuram uma criança com a intenção de fazer caridade ou para salvar um casamento, por exemplo, têm enormes chances de fracassar. “O amor tem de ser incondicional, porque a gente não sabe o que a criança traz registrado”, avalia.
"Crianças devolvidas se culpam e acham que não são boas o suficiente"
Helena Zgierski, psicóloga da Associação Maria Helen Drexel
Em todas as histórias de devolução que Helena conhece, havia um filho biológico na família. “Existe uma disputa por amor e espaço. É um outro ser que está chegando. A criança que vai ganhar um irmão também tem de participar desse processo”, diz ela. Foi o que aconteceu com Paula*, 8 anos, e Lauro*, 4. Depois de 11 meses de convivência com um casal de São Paulo, os dois foram devolvidos e estão num abrigo. Paula e o filho biológico do casal, Gustavo*, viviam às turras. Além das brigas constantes, ela e Lauro têm um histórico difícil. Moravam na rua com a mãe biológica e passaram por situações de privação e maus-tratos. “Eu bagunçava muito onde fui adotada. Ficava xingando todo mundo. Batia nas pessoas quando ficava com raiva. Desobedecia minha mãe”, admite Paula. “Meu pai não aguentava meu choro e minha bagunça e me batia.” A menina se culpa pela devolução e pela tristeza do irmão pequeno. Lauro ainda pergunta pelo pai adotivo: “Por que ele não vem me buscar?” 
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* Para preservar a identidade das crianças e adolescentes citados nesta reportagem, seus nomes foram trocados.