domingo, 25 de dezembro de 2011



Quanto mais se mexe no caso do Banco PanAmericano, mais sinistro ele fica
por Consuelo Dieguez
Durante quarenta anos, Luiz Sebastião Sandoval trabalhou para o Grupo Silvio Santos, 28 dos quais na presidência da holding que controlava as empresas do apresentador e dono do SBT. Entre os negócios que comandava, estava o Banco PanAmericano, responsável pelo melancólico fim de sua carreira de executivo. Com um modesto patrimônio de 1,6 bilhão de reais, o banco de Silvio Santos protagonizou, no ano passado, o maior escândalo financeiro da década.
Em setembro de 2010, o Banco Central descobriu uma fraude de 2,5 bilhões de reais engendrada por seus executivos – a conta subiu para 4,3 bilhões após novos cálculos feitos pelo Fundo Garantidor de Créditos dos bancos. Criado para socorrer instituições em dificuldades, o fundo colocou dinheiro no PanAmericano para evitar sua quebra. O caso foi parar na Polícia Federal, que indiciou Sandoval e todos os executivos do banco. O inquérito beira as 2 mil páginas e será encaminhado à Justiça, que decidirá se condena ou não os envolvidos.
Sandoval é um homem franzino de calva acentuada e 67 anos. Numa tarde nublada, sentou-se num sofá na sala de sua cobertura, em São Paulo, com vista para o vale do Anhangabaú. Munido de caneta e papel, desenhou o organograma do grupo para tentar demonstrar que sua responsabilidade na fraude, ao contrário da avaliação feita pelo Banco Central e pela Polícia Federal, é nenhuma.
“Eu ficava no controle da holding. Recebia os relatórios das auditorias feitas no PanAmericano que indicavam que o banco estava em perfeita saúde financeira. Como eu poderia imaginar que os executivos tinham montado uma fraude sem tamanho?”, defendeu-se. Deu um gole no café, outro na água e continuou. “É inadmissível que a Deloitte, que era paga para averiguar as contas da instituição, não tenha visto esse rombo gigantesco.”
Para complicar ainda mais a história, o governo está metido até a alma na confusão. Em janeiro de 2009, os executivos do PanAmericano, além de Luiz Sandoval e do próprio Silvio Santos, convenceram o governo de que seria um ótimo negócio para a Caixa Econômica Federal ficar dona de 49% do capital montante pela bagatela de 739,2 milhões de reais. Na negociação, ficou estabelecido que, mesmo despejando essa dinheirama na instituição, a Caixa não participaria da sua operação, o que é totalmente fora dos padrões. Teria direito apenas a participar do conselho de administração, cuja função é dizer sim ou não para as decisões dos executivos. Ainda assim, a operação contou com o aval entusiasmado do ministro da Fazenda, Guido Mantega, que considerou a compra uma ótima oportunidade para o governo ampliar sua participação no mercado financeiro. Foi o ministro, garantiu Sandoval, quem bateu o martelo para que a Caixa fechasse o negócio.

oncretizada a venda, Sandoval levou Silvio Santos no dia 13 de setembro de 2010 até o prédio da diretoria da Caixa, em São Paulo, para que ele conhecesse a presidente e o vice da instituição, seus futuros parceiros. Junto com eles deveria estar Rafael Palladino, presidente do PanAmericano. Como o executivo não apareceu, Sandoval lhe telefonou. Ouviu uma voz tensa do outro lado da linha. “Não posso ir. Estamos com um problema. Venha para cá assim que puder.” Silvio Santos amenizou a ausência de Palladino, fazendo-lhe elogios rasgados. “Eu não conseguia entender essa admiração do Silvio por ele. O Palladino sempre foi um patife”, disse Sandoval. Quer dizer: Silvio Santos botou um patife à frente do seu banco.
Sandoval rumou ao PanAmericano após a reunião e encontrou Palladino com os cabelos despenteados. “Ele tem mania de desarrumar os cabelos quando fica nervoso”, contou. Ao vê-lo, Palladino disse que estavam com um problema com o Banco Central. “Descobriram um erro contábil de 2,5 bilhões de reais”, revelou. Sandoval arregalou os olhos ao relembrar a história. “Erro? Isso não é erro. Isso quer dizer que temos um rombo maior que o patrimônio do banco.” Mandou então que viessem os outros executivos.
O primeiro a chegar foi o diretor-financeiro, Wilson de Aro. Sandoval pediu explicações e ouviu do executivo que a responsabilidade era dele, De Aro. Ele montara a fraude ao não registrar no balanço do banco as vendas das carteiras de crédito para outras instituições financeiras. Assim, o PanAmericano demonstrava ter muito mais créditos a receber do que na realidade teria. Com isso, registrava lucros fictícios, mas que resultavam em pagamento de bônus generosos para seus executivos, dos quais também se beneficiavam Sandoval e Silvio Santos.
Sandoval disse que reagiu afirmando não acreditar na versão de Wilson de Aro. “Nada no banco era feito sem o conhecimento do Rafael”, assegurou. Ainda que De Aro tenha assumido a culpa, é contra Palladino que Sandoval despejou sua ira. “Ele é tão cafajeste que colocou para trabalhar com ele a maluca da filha do Silvio Santos – aquela que foi sequestrada e saiu elogiando o sequestrador.” E retificou: “Trabalhar, não, porque ela só ia às reuniões. Ele a colocou lá para fazer média com o Silvio.”
Depois, o apresentador decidiu empregar em suas empresas as quatro filhas que teve no segundo casamento. “O Silvio me pediu para colocar as filhas no grupo e prepará-las para substituí-lo. Mas como? Ele mesmo admite que elas são muito despreparadas e inexperientes.” Segundo Sandoval, a falta de tino das herdeiras para os negócios, aliada ao escândalo do PanAmericano, levou Silvio Santos a tomar a decisão de se desfazer de várias de suas empresas – inclusive o Baú da Felicidade, a mais identificada com ele.

 história do PanAmericano ficou ainda mais esquisita depois que a Polícia Federal, ao analisar os computadores dos executivos do banco, descobriu que eles tinham uma relação íntima com integrantes do PT. Trocaram e-mails com Luiz Gushiken, ex-ministro da Comunicação Social no governo Lula, nos quais discutiram estratégias para a instituição. Gushiken exigiu, por exemplo, que não se fechasse qualquer negócio para a compra de horários no SBTsem sua participação. Descobriram também que o banco foi grande doador de dinheiro para campanhas políticas do PT. Só para a campanha de Lula em 2006, foram 500 mil reais. E, durante a campanha eleitoral, o SBT de Silvio Santos fez uma cobertura pró-Dilma no seu noticiário.
A entrada do banco BTGPactual no negócio tornou o caso mais nebuloso. Após assumir a dívida de 2,5 bilhões de reais, Silvio Santos foi surpreendido com a nova conta apresentada pelo Fundo Garantidor, afirmando que o rombo real era quase duas vezes maior. O apresentador disse que não tinha condições de arcar com aquele rombo. O governo mandou-o entregar o banco em troca das dívidas – e içou o BTGPactual como sócio. O que surpreende foram as facilidades concedidas ao comprador. O BTGPactual, de André Esteves – também com histórico de doações para campanhas do PT –, ficou com 51% das ações do banco por módicos 450 milhões de reais, a serem pagos até 2028.
Os ex-executivos do PanAmericano tampouco se saíram mal. Com a distribuição dos lucros e dividendos fictícios, Wilson de Aro, Palladino e o diretor jurídico compraram imóveis luxuosos. O de Palladino é uma cobertura de 6 milhões de reais. Para não ficar tão ostensivo, vendeu a Ferrari vermelha na qual circulava até bem pouco tempo atrás. Quando soube do rombo, Silvio Santos fez uma única pergunta a Sandoval: “Eu fui roubado?” A resposta foi sim. Depois, na Polícia Federal, Silvio culpou seu ex-pupilo, Palladino, de tudo: “Ele era o cabeça do negócio.”
Sandoval também garante ter sido enganado pelos ex-executivos do banco. E diz que a Caixa não ficou atrás. Advogado por formação, ele só não entendeu por que, ao tomar conhecimento do rombo, a Caixa não desfez o negócio. “A instituição podia alegar que fora enganada. Qualquer juiz lhe daria ganho de causa.” O que ninguém acredita é que Silvio Santos não sabia de nada. 

Bruno Covas recorre a parentesco e método japonês para ganhar a Prefeitura de São Paulo




Por Daniela Pinheiro
Sentado à cabeceira de uma mesa de compensado branco, o secretário de Meio Ambiente de São Paulo e pré-candidato à prefeitura da capital, Bruno Covas, fazia uma chamada dos presentes à reunião. A cada nome dito em voz alta, seguido do cargo, ele rabiscava algo num bloco à sua frente. “O do zoológico não vem?”, perguntou. Diante da negativa, balbuciou um “ahn”.
Eram nove da manhã e, como acontece todas as segundas-feiras, ele despachava com sua equipe. Durante duas horas e meia, dezessete chefes de departamentos, diretorias, setores e institutos lhe passaram relatos bem ou mal explicados sobre projetos, obras e burocracias envolvendo a fauna, a flora, a ocupação irregular, o tráfego e a poluição no estado de São Paulo. Sob sua chancela trabalham 7 mil servidores.
Formado em economia e direito, Covas é alto, tem um topete que prolonga o topo de sua cabeça, o nariz em forma do mapa da Itália e um sorriso que revela até os molares. O corpo rechonchudo lhe soma mais do que seus 31 anos. Até o início do ano, era o deputado estadual conhecido sobretudo como neto do ex-governador tucano Mário Covas, morto em 2001. O convite para assumir a pasta do Meio Ambiente foi uma surpresa do governador Geraldo Alckmin, de quem ele espera apoio na disputa à prefeitura. “Fui presidente da juventude do PSDB por anos e esse tema é muito ligado aos jovens”, disse. “Entendi como um desafio.”

ecentemente, seu nome tomou conta do noticiário quando ele disse, numa entrevista ao Estado de S. Paulo, que havia recusado propina de um prefeito após a liberação de uma emenda a seu favor. “Depois que assinamos o convênio, o prefeito veio perguntar com quem ele deixava os 5 mil reais. Respondi: ‘Doa para a Santa Casa, eu que não vou ficar com isso’”, falou. Dias depois, quando a oposição ameaçou abrir uma investigação sobre o caso, ele disse ter sido mal interpretado. “Eu dava um exemplo hipotético, que já dei outras vezes em palestras e discursos”, explicou.
Naquela manhã, ele vestia calça preta, camisa branca social com as mangas arregaçadas e um sapato bicudo de verniz escuro. De cabeça baixa, vidrado em suas anotações e checando as mensagens de texto no iPhone, de vez em quando indagava detalhes sobre o mosaico de Paranapiacaba, o protocolo da SMA, o parque de Jacupiranga, as capivaras da CBRN, as ZEEs, as pendências da Anama e os casos do Cerea. Quando alguém citou o PSAda RPPN, ficou claro que Covas já era fluente em siglas do “meio ambientalês”. “Quando cheguei aqui, eles falavam isso e eu também ficava com essa cara”, disse, revirando rapidamente os olhos e balançando a cabeça, como que atordoado. “Mas em três meses eu já dominava as siglas”, contou.
E como conseguiu? “É o Kumon”, revelou. Referia-se ao método criado no Japão nos anos 50, que consiste na prática exaustiva de exercícios matemáticos a partir dos 3 anos de idade. Aos 12, quando se inscreveu para uma olimpíada de matemática, Covas passou a frequentar o curso, que exige ao menos meia hora de concentração diária. Aos 15, resolvia problemas envolvendo derivadas e integradas – matérias que fazem parte do currículo universitário.
A utilidade do Kumon em sua vida é variada. Uma vez, quase foi engrupido por um gráfico em forma de pizza com fatias coloridas, que indicava as reportagens de teor negativo, positivo e neutro sobre sua gestão. Ele bateu o olho e percebeu que a soma estava errada em 1% (não se soube se para o bem ou para o mal). Em outra ocasião, ao apresentar as metas de mecanização da indústria alcooleira, fez bonito ao adivinhar um número estapafúrdio antes que o slide seguinte o revelasse. “O Kumon ajuda você a se concentrar, a ter raciocínio lógico, uma boa memória e a pensar matematicamente”, disse.
Quando assumiu o cargo, Bruno Covas valeu-se dessa técnica oriental como estratégia de sobrevivência. Ao perceber os olhares de soslaio e narizes torcidos dos funcionários contrariados por sua inexperiência no assunto e pelo pistolão político que o colocou no cargo, propôs a si mesmo o que chamou de “cursinho intensivo”. Durante uma semana, reuniu-se por até doze horas com a equipe para se tornar um deles. “Eram nomes, ideias, lugares, pessoas, propostas, eu anotava tudo e estudava em casa”, contou.

m 2004, recém-formado, foi chamado para ser vice na chapa tucana à Prefeitura de Santos. No ano seguinte, empregou-se como assessor da liderança do partido na Assembleia Legislativa para conhecer a máquina por dentro e alçar voo solo mais adiante. Mais uma vez, valeu-se do Kumon. “Decorei o regimento interno da Casa e virei uma referência para os outros deputados”, disse. “Eu era quem mais sabia daquilo ali, cheguei até a presidir sessões.” No ano seguinte, foi eleito deputado estadual e depois reeleito, em 2010, com 240 mil votos, a maior votação do estado.
Ao ser perguntado por que quer ser prefeito de São Paulo, ele é cartesiano: “Nos últimos vinte anos, o PSDB teve dois candidatos para três cargos: prefeito, governador e presidente. Ou era Serra ou Alckmin. É preciso renovação”, falou. Para ele, a crise do partido se deve a uma equação impossível de ser solucionada pelo método Kumon: “Há muitos quadros, muitas lideranças e poucos cargos”, diagnosticou. Enquanto o partido escondia seu tucano mais emplumado, ele foi um dos únicos a estampar a cara do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em seus santinhos de campanha.
Provocado sobre o assunto, Covas disse achar que o Kumon será uma ferramenta útil na campanha. “Vai me ajudar a decorar todos os números sobre São Paulo, o nome dos eleitores, da família toda, qual o problema deles”, brincou. Sua meta será promover um redespertar da metrópole. “São Paulo é triste, cinza, poderia ser mais alegre e humana”, falou. Outra prioridade será a construção de creches para crianças de até 4 anos.
Há dois meses, Covas cumpre agenda de pré-candidato. Nos fins de semana, visita rincões, favelas e comunidades de baixa renda. Além de enviar por e-mail um resumo semanal de suas atividades a uma lista de 130 mil cadastrados, ele também é um pródigo usuário do Twitter. Costuma dar detalhes de sua agenda, responder aos questionamentos de curiosos sobre a natureza e até mesmo pedir a opinião dos navegantes sobre aspectos de sua vida em família. No último aniversário da esposa, consultou-se junto a seus seguidores: “Preciso da ajuda de vocês. Terça é aniversário da Karen. O que devo comprar para ela?”
Ele contou que seu patrimônio se resume a um carro. “Não tenho nada daquela conta em Cayman”, disse, explodindo numa gargalhada. Referia-se, em tom de blague, ao caso que ficou conhecido como “Dossiê Cayman”, uma pilha de documentos falsos que comprovariam a existência de contas milionárias da cúpula tucana no exterior. “Só quem não conhecia meu avô, o Fernando Henrique, o Serra e o Serjão, pode achar que eles teriam uma conta... juntos!”, falou, esticando a risada. 

“A vida não é fácil. Nunca foi”




Como Dilma Rousseff recebeu a notícia de que tinha câncer. E como Lula reagiu quando ela lhe disse que tinha “uma coisinha importante para contar”
por Ricardo Batista Amaral

A manhã de abril chegava ao fim e as nuvens encobriam a serra do Curral, prenunciando uma chuva de outono em Belo Horizonte. No auditório da Federação das Indústrias de Minas Gerais, a FIEMG, o telefone celular vibrou discretamente no bolso do paletó de Anderson Dorneles, secretário particular da ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff. Ela terminava uma palestra para empresários sobre investimentos do governo federal, primeiro compromisso de uma pesada agenda na cidade.
Os dígitos azuis no visor do aparelho indicavam uma chamada de São Paulo. O secretário não precisou atender para saber que se tratava de assunto sigiloso e urgente. Conhecia Dilma havia 15 anos, desde os tempos em que ela era economista numa fundação do governo do Rio Grande do Sul, onde ele trabalhava como mensageiro para pagar a faculdade de administração. Anderson compreendia gestos, olhares, palavras, silêncios. Conhecia hábitos, preferências, humores, restrições. Recolhia documentos e organizava os arquivos no laptop da ministra. “Esse menino”, como Dilma o chamava, embora ele já tivesse passado dos 30, sabia ouvir broncas, passar mensagens e guardar segredos.
 O segredo por trás daquele telefonema estava guardado havia duas semanas, desde o dia em que Dilma Rousseff esteve no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, para extrair uma pequena erupção na axila esquerda. O carocinho tinha sido encontrado num check-up rotineiro, no começo daquele ano de 2009. Foi por insistência do cardiologista Roberto Kalil Filho – o mesmo que atendia o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e alguns dos políticos e empresários mais conhecidos do país – que Dilma concordou em extrair o nódulo numa cirurgia e submeter o material a uma biópsia. “Pra não restar sombra de dúvida”, como ela costumava dizer quando queria enfatizar uma decisão.
Sem demonstrar ansiedade diante dos convidados em torno da ministra, Anderson pediu ao interlocutor que aguardasse na linha, localizou a porta de uma sala contígua ao auditório e indicou o caminho para Dilma, sussurrando o nome do doutor Kalil de um modo que só ela conseguiu ouvir. Fechada a porta da sala, Dilma tomou o telefone nas mãos e ouviu a confirmação da suspeita que levara o cardiologista a insistir com obstinação nos exames: a biópsia, ele disse, indicou um linfoma, um câncer nos gânglios. Um tipo bem conhecido, que os médicos sabiam tratar com grande chance de sucesso quando diagnosticado a tempo, como era o caso; mas, sem sombra de dúvida, um câncer.
A ministra sentou-se numa cadeira para conversar com o médico. Falaram sobre o tratamento inadiável, doloroso e incômodo. O exame definitivo tinha chegado de um laboratório de Houston, nos Estados Unidos, naquela sexta-feira, 17 de abril. Quanto mais rápido iniciassem o procedimento terapêutico, melhor. Combinaram data e hora; ela agradeceu, despediram-se. Um breve silêncio foi quebrado por um suspiro longo, e Dilma voltou os olhos na direção do secretário particular, que tinha permanecido todo o tempo vigilante junto à porta da sala:
– A vida não é fácil. Nunca foi.
A ministra devolveu o telefone ao secretário e seguiu para a entrevista coletiva. Parecia segura. Vestia um casaco de linho vermelho sobre a blusa de seda preta, o decote redondo acompanhava a curva do colar de pérolas. Era a Dilma de sempre, respondendo com firmeza, até que lhe pediram para comentar a sensação de estar de volta à cidade onde nasceu, e ela falou:
 – Tem uma musicalidade em Minas, e na nossa fala, que só quando sai daqui que ocê percebe; e só escuta às vezes, como diz aqui o Patrus, nos livros do João Guimarães Rosa.
Patrus Ananias,sentado a sua esquerda, era o ministro do Desenvolvimento Social, além de estudioso da obra de Rosa. Ele murmurou algo que fez Dilma balbuciar, fora do microfone:
– É... Me emociona...
O que se passou nos oito segundos seguintes foi algo que só Dilma, ninguém mais, podia entender completamente. A ministra levou a mão direita à altura dos olhos e pressionou-os com o indicador e o polegar, que ela fez descer pelo rosto até apertar com força o contorno dos lábios. O único som no auditório era o espocar dos flashes. Ela encarou os repórteres e concluiu, com os olhos marejados:
– É o som da infância, gente. É isso...
Das janelas do prédio da FIEMG, era possível captar o burburinho do trânsito na avenida do Contorno em direção à Savassi, um movimentado centro de comércio, serviços e restaurantes. Cerca de dez quarteirões ao sul daquele edifício ficava a casa onde Dilma morou, do dia em que nasceu, em 1947, até os 8 anos de idade. Era um tempo em que o nome Savassi não indicava uma região da cidade, apenas a sortida padaria de dois imigrantes italianos no tranquilo bairro dos Funcionários. A casa da rua Sergipe não existia mais; em seu lugar havia um pequeno prédio de escritórios, igual a tantos outros. Mas era dali que brotava o som da infância.

a memória de Dilma, era o som das conversas na padaria dos italianos, com seu imenso balcão de guloseimas; a algazarra das crianças no cinema do bairro, suas matinês de desenhos animados e seriados de ação. Era a alegria de pedalar a bicicleta pintada de amarelo vivo, nas ruas de terra ou calçadas com pedras nos anos 50. Dirigindo a memória serra abaixo, em direção ao centro da cidade, Dilma chegaria ao apartamento 1001, no décimo pavimento do Edifício Solar, construção modernista dos anos 60 perto da faculdade de direito. Foi daquele apartamento que Dilma e o primeiro marido, o jornalista Cláudio Galeno, tiveram de fugir numa manhã de janeiro de 1969, driblando a polícia política sem produzir som nenhum.
Ela tinha acabado de completar 21 anos quando mergulhou na clandestinidade, procurada pela ditadura militar. Escondeu-se no Rio, foi presa e torturada em São Paulo, cumpriu pena de quase três anos no Presídio Tiradentes.
Só recomeçaria a vida em 1973, em Porto Alegre, ao lado do segundo marido, o advogado Carlos Araújo. Fez novos amigos, formou-se em economia, teve uma filha e continuou fazendo política – a resistência, a oposição, a luta pela democracia e a reinvenção dos governos populares. Ali seria convocada, no final de 2002, para integrar o governo do primeiro operário eleito presidente do Brasil – e então a vida recomeçou mais uma vez para Dilma Rousseff. Fácil, nunca foi.
Desde o início do segundo mandato de Lula, em janeiro de 2007, a ministra percorria o país explicando, defendendo,fiscalizando ou inaugurando obras do Programa de Aceleração do Crescimento, o PAC. Criado e comandado pela chefe da Casa Civil, era o plano de investimentos de 500 bilhões de reais em infraestrutura e projetos sociais com o qual Lula pretendia colocar o país numa rota de crescimento sustentável. O PAC também era um instrumento para consolidar sua liderança política, que ia muito além do PT, o partido que ele criou em 1980 e pelo qual chegou à Presidência da República 22 anos depois.
Lula enxergava no PACa possibilidade de realizar um segundo governo melhor que o primeiro, numa conjuntura econômica e política mais favorável que a do mandato anterior. Nos quatro primeiros anos de Lula o país tinha voltado a crescer, mas doze meses de recessão, em 2005, comprometeram o desempenho final. O padrão de vida dos trabalhadores e da população mais pobre elevou-se pela combinação de mais salário, mais crédito, alimentos mais baratos e menos inflação, além de um gigantesco programa de distribuição de renda, o Bolsa Família.
O mandato foi marcado também por um escândalo político, que ficou conhecido como mensalão e levou o PT e o governo às cordas. Agora, o aquecimento da economia, a preservação da base política e o sucesso do PAC eram os ingredientes que poderiam levar o partido a vencer as eleições presidenciais de 2010, e Dilma Rousseff estava no centro da estratégia política de Lula.
Pelo restante daquela sexta-feira, e no final de semana prolongado pelo feriado de Tiradentes, ninguém além dos médicos ouviria da ministra um comentário sequer sobre o telefonema do doutor Kalil. Somente na noite de 22 de abril, uma quarta-feira, Dilma iria compartilhar a angústia e um prato de massas com Carlos Araújo, agora ex-marido e melhor amigo, e a filha dos dois, Paula. Aos 32 anos, Paula era formada em direito, procuradora do Trabalho e estava casada havia menos de um ano. Escolheram conversar a três num pequeno restaurante do bairro Tristeza, em Porto Alegre.

aquele mesmo lugar, entre o Natal de 2008 e o Ano-Novo, Dilma havia reunido sua pequena família gaúcha para confirmar, na intimidade, aquilo que o mundo político brasileiro especulava abertamente: sim, ela, que nunca havia disputado uma eleição, embora se dedicasse à luta política de corpo e alma desde a adolescência, seria mesmo a candidata do PT e do presidente Lula ao Planalto. Era a primeira mulher com chances reais de presidir o maior país da América Latina, com 190 milhões de habitantes, a sétima maior economia do mundo,  Produto Interno Bruto de 2 trilhões de dólares e um passivo de desigualdade social que desafiava sua história.
Ao passado de militante clandestina, Dilma havia somado a experiência de participar, na fase final da ditadura militar, do movimento pela anistia e da reorganização dos partidos políticos legais. No Rio Grande do Sul, uma considerável corrente da esquerda associou-se, não ao nascente PT, mas à tradição trabalhista, fortemente arraigada na terra natal dos ex-presidentes Getúlio Vargas e João Goulart. Dilma e Carlos Araújo participaram da fundação do Partido Democrático Trabalhista, de Leonel Brizola, o herdeiro do trabalhismo.
Pelo PDTe, anos mais tarde, incorporada ao PT, Dilma foi secretária da Fazenda da Prefeitura de Porto Alegre, presidenta da Fundação de Economia e Estatística do Rio Grande do Sul e duas vezes secretária de Energia, Minas e Comunicações, antes de se tornar ministra de Minas e Energia e chefe da Casa Civil do governo Lula – sempre a primeira mulher a assumir aquelas funções. Um currículo e tanto para quem se considerava sobrevivente da luta contra a ditadura – uma luta que ceifou companheiros em combates desiguais ou nas masmorras do regime. Para Dilma Rousseff, aos 61 anos, a vida teimava em recomeçar sempre.
A Presidência da República jamais esteve nos planos de Dilma. Nem em sonhos. Que se lembrasse, quando criança queria ser bailarina, porque achava bonito, ou entrar para o corpo de bombeiros, que nem era profissão de menina, mas era bonito também. Em dezembro de 2008, quando conversou sobre o assunto com Carlos e Paula, faltavam quase dois anos para as eleições. Nada ainda era oficial, mas o projeto Dilma presidenta era bem mais do que a insinuação feita por Lula no começo do ano, quando a chamou de “Mãe do PAC” no lançamento das obras da favela do Morro do Alemão, no Rio de Janeiro.
Lula associava boa parte do sucesso de seu governo, que batia recorde sobre recorde de aprovação nas pesquisas, ao trabalho de coordenação da ministra na Casa Civil. Ela assumiu a função em junho de 2005, em plena tormenta do mensalão, depois de cumprir todas as tarefas que o presidente lhe havia confiado nas Minas e Energia. Ela e o presidente estabeleceram uma relação de lealdade política e pessoal que viria a ser o cimento da candidatura.
Lula nunca disse diretamente a Dilma que a queria como sucessora. Também não abriu essa discussão com o PT ou com os ministros mais próximos. Foi simplesmente criando fatos, até que todos, inclusive Dilma, compreendessem que a decisão estava encaminhada. Na virada de 2008 para 2009, o projeto era evidente, e Dilma decidiu preparar o espírito da filha.
Paula guarda uma impressionante semelhança com a mãe, no rosto e no caráter. Como a maioria dos filhos de militantes de esquerda de sua geração, ela cresceu numa casa em que tinha de dividir os pais com a política; o espaço da sala com as reuniões dos companheiros; e os iogurtes da geladeira com os famélicos do mundo, que entravam a qualquer hora, saíam sempre tarde e muitas vezes dormiam temporadas inteiras ao abrigo de Carlos e Dilma.
Carlos Araújo também foi preso pela ditadura – ele e Dilma dirigiam a organização clandestina Vanguarda Armada Revolucionária-Palmares. Livre, ele se elegeu três vezes deputado estadual pelo PDT gaúcho e disputou duas vezes a prefeitura de Porto Alegre. Paula sabia bem o que era uma campanha eleitoral na vida da família, mas agora Dilma estava no centro de uma disputa pelo poder, com tudo o que isso significa em termos de cautelas, restrições e obrigações para parentes e amigos. “Você é a pessoa de quem a Dilma mais vai precisar ao longo dessa campanha”, Lula diria a Paula numa noite de comício.
O fato de jamais ter disputado uma eleição não preocupava Dilma. Lula e seu assessor de marketing, o jornalista João Santana, consideravam que o noviciado da candidata, somado ao fato de ser mulher, poderia representar uma vantagem comparativa num país em que a imagem geral dos políticos ia de mal a pior.
Dilma confiava acima de tudo nas razões objetivas que indicavam o sucesso do governo nas urnas: a aprovação ao presidente Lula estava lastreada no crescimento constante da economia, combinado a um processo de redistribuição de renda que tinha gerado uma nova classe média no país, incorporando 28 milhões de pessoas ao mercado de trabalho e de consumo.
Dilma percebia nas viagens pelo país um ambiente de otimismo e confiança, confirmado pelas pesquisas, embora o favoritismo do governo ainda não tivesse o nome e o sobrenome da candidata. Seria questão de tempo para se tornar conhecidae reconhecida. Além do mais, ela teria a seu lado o líder político mais popular que o país conheceu ao longo de gerações.
Não, Dilma já não tinha receio de entrar na disputa, mesmo sabendo que as condições favoráveis fatalmente levariam a oposição a atacá-la com força durante a campanha. Daquela primeira conversa a três, Carlos Araújo guardou na memória a segurança serena de Dilma:
– Quem vai para a campanha com um peso sobre os ombros é o adversário, não sou eu. Eu vou com o sangue doce – foi o que ela disse no restaurante italiano.

a noite de 22 de abril de 2009 ela estava ali, novamente no pequeno restaurante da Tristeza, para contar a Carlos e Paula que a vida tinha lhe aprontado mais uma. O linfoma, conforme explicou o doutor Kalil, era um tipo de câncer que podia ser tratado com amplas chances de sucesso – os médicos evitam, nesse caso, a palavra cura, preferem falar remissão.
Era uma questão de método, disciplina e sacrifício. A rotina seria subordinada ao horário dos remédios, e a agenda às sessões de tratamento no hospital em São Paulo. Ela teria de receber as drogas da quimioterapia por meio de um cateter que já estava implantado no lado direito do tórax. Sentiria náuseas, ficaria cansada e estressada. Os cabelos cairiam. Sua pele e sua carne seriam literalmente queimadas nas sessões de radioterapia. Durante algum tempo, que ainda não era possível definir, a vida ficaria em suspenso, na dependência do resultado de exames minuciosos e invasivos.

uem passou pela violência do pau de arara, pelas máquinas de choques elétricos, pela agonia incerta de resistir à tortura sabe que a vida não é fácil. Nunca foi. Mas havia outra dimensão na notícia que ela compartilhava com a pequena família: a dimensão da política. Por mais seguro e otimista que fosse o prognóstico dos médicos, câncer era uma palavra maldita quando pronunciada em público, especialmente se relacionada a um candidato presidencial.
No Brasil, o estigma da doença poderia despertar no eleitorado a memória trágica de Tancredo Neves, primeiro presidente civil depois da ditadura, eleito indiretamente em 1985, que morreu sem tomar posse, de uma doença que ele tentara esconder. A frustração com a morte de Tancredo, ao fim de uma jornada de esperança que mobilizou a nação, tornou-se um episódio traumático na história do país. Mas também havia o exemplo do vice-presidente José Alencar, que há mais de dez anos vinha se superando cirurgia após cirurgia. A sua história era de perseverança, e mostrava os avanços da medicina no combate à doença.
O câncer era um episódio que não estava previsto no roteiro da vida de Dilma Rousseff, nem da mulher nem da candidata. Ela precisava avaliar com Lula a nova situação. Dilma expôs a questão a Carlos e Paula com objetividade: se o mais prudente fosse desistir da campanha, trocar de candidato, o correto era tomar a decisão logo, dando tempo a Lula para refazer sua estratégia.
Antes de voltar para Brasília, Dilma pediu uma conversa pessoal com o presidente, que só iria acontecer na manhã de 24 de abril, na Base Aérea da capital, onde Lula desembarcaria vindo da Argentina.
– Eu tenho uma coisinha importante para contar – ela disse ao telefone, sem ligar para a contradição aparente entre as palavras “coisinha” e “importante”.
Se Dilma e Lula ainda não haviam conversado formalmente sobre a campanha eleitoral, tratando-se pelo que de fato eram – ela a candidata e ele o presidente que a apoiaria na campanha –, o momento seria aquele.
Conferiram os prognósticos dos médicos e das pesquisas. Confirmaram a confiança mútua. Acertaram com o ministro Franklin Martins, da Secretaria de Comunicação, a divulgação do diagnóstico e do tratamento, para exorcizar os fantasmas da desinformação. Dilma concederia uma entrevista coletiva no dia seguinte, um sábado, ao lado dos médicos em São Paulo. O presidente se despediu da candidata com palavras de amigo:
 – Tranquila, Dilminha, tranquila. Você é forte, vai conseguir.
Ela conseguiu, mas fácil não foi. Nunca foi.