Picuinhas
se imiscuem em decisões importantes, assessores fazem o serviço de
magistrados, ministros são condenados em instâncias inferiores, um juiz
furta o sapato do outro – como funciona e o que acontece no STF
por Luiz Maklouf Carvalho
O
primeiro bocejo foi do ministro José Antonio Dias Toffoli. Com as mãos
em concha, sobre a boca. Depois foi Gilmar Mendes, com a proteção de uma
das mãos, e por três vezes em menos de dez minutos. Marco Aurélio Mello
o seguiu, com dois bocejos. Eles escutavam Ellen Gracie ler um
relatório. A voz da ministra tem um timbre agradável, mas sem modulação.
Em plenário, à exceção de poucas frases curtas sobre questões pontuais,
a ministra nunca fala, só lê. E sempre de maneira monocórdica.
O
caso em pauta era uma ação contra os deputados federais Alceni Guerra e
Fernando Giacobo, denunciados por fraude em licitação. Tramitava no
Supremo Tribunal Federal desde 2007 e prescreveria exatamente no dia
seguinte. Ellen Gracie, relatora, votou pela condenação dos dois
políticos*.
Com o ministro Eros
Grau em viagem, dez ministros estavam presentes. Quatro votaram com a
relatora, condenando os políticos: Cezar Peluso, Ayres Britto, Joaquim
Barbosa e Cármen Lúcia. Quatro os absolveram: Dias Toffoli, Marco
Aurélio Mello, Gilmar Mendes e Celso de Mello. E um, Ricardo
Lewandowski, desafiou o senso comum: inocentou Alceni Guerra, ministro
da Saúde do governo Collor, mas condenou o outro acusado.
Ficaram,
então, 5 a 5 para Alceni Guerra, o que o absolveria, porque o empate
favorece o réu. E 6 a 4 contra Fernando Giacobo, o que o condenaria.
A
subprocuradora-geral da República, Deborah Duprat, resumiu bem a
confusão: “Neste caso, teremos o réu principal absolvido; e o
secundário, condenado.”
A cizânia
se estabeleceu. “Condenar um e absolver o outro fica muito difícil”,
disse o ministro Marco Aurélio, olhando fixo para Lewandowski. Cezar
Peluso também o encarou: “Reconsidere seu voto e absolva os dois.”
Lewandowski encabulou-se e disse, titubeante: “Tenho dificuldade de
absolver o outro.” Marco Aurélio riu com sarcasmo. Peluso insistiu para o
colega mudar o voto. Ellen lembrou que a prescrição ocorreria no dia
seguinte.
Quando o presidente
Gilmar Mendes ia proclamar o resultado, o advogado do condenado apelou
pelo bom-senso: que os dois acusados fossem absolvidos. O ministro Ayres
Britto, num mau momento, sugeriu a suspensão do prazo de prescrição,
como se fosse possível. “Mas aí vamos legislar”, protestou Marco
Aurélio.
Diante do bafafá e da
pressão, um constrangido Lewandowski disse: “Eu reajusto o meu voto e
absolvo ambos os réus.” Marco Aurélio riu de novo. Ayres Britto podia
ter deixado por menos, mas não deixou: “Vossa Excelência mudou o voto,
não é?”, indagou, como se não tivesse notado. Lewandowski respondeu: “A
situação é absolutamente atípica.”
A veia poética de
Ayres Britto, sempre presente, lembrou-lhe versos de José Régio, que
recitou sem pejo: “Não sei por onde vou. Só sei que não vou por aí.”
Resolveram
suspender a decisão, apesar da prescrição no dia seguinte, para esperar
o voto do ministro Eros Grau. Ele o proferiu uma semana depois, e votou
pela absolvição dos réus – que na prática estavam beneficiados pela
prescrição.
Órgão máximo do
Judiciário e sustentáculo da República, o Supremo Tribunal Federal é uma
instituição que toma decisões de afogadilho, sem muita lógica – como a
mudança de voto de Lewandowski. Mas sempre as recobre de pompa, de um
linguajar precioso que faz sobressaírem as observações maldosas.
Picuinhas se imiscuem em discussões importantes. Assessores fazem o
serviço de magistrados. Há ministros que foram condenados em instâncias
inferiores. Um, cujo pedido de impeachment só não foi encaminhado ao
Senado porque o corporativismo prevaleceu. Outro, que chamou o colega de
chefe de capangas. Até a eleição do seu presidente se dá em terreno
incerto.
Na última delas, em
março, os onze ministros escolheram o presidente para o biênio 2010–12.
Com grande seriedade, e o silêncio respeitoso de uma plateia repleta,
cada um depositou um papel dobrado, com o nome do escolhido, na urna em
forma de cálice carregada por um funcionário. O escrutinador, como manda
o regimento, foi o ministro mais novo, Dias Toffoli, de 42 anos. Com
destoante jovialidade, Toffoli contou os votos e anunciou o resultado:
dez votos para Cezar Peluso e um para Ayres Britto. Gilmar Mendes saudou
o seu sucessor. Na resposta, o ministro Peluso registrou ter sido
eleito “por uma regra costumeira e singular”.
A
“regra costumeira e singular”, que não consta do regimento, é a eleição
do mais velho. À exceção de uma vez – em 1943, quando Getúlio Vargas
outorgou-se a indicação do presidente por decreto, sem que a corte
chiasse – o critério da antiguidade prevaleceu. Com isso, sempre se
soube, com óbvia antecedência, os próximos presidentes. Eles serão,
depois de Peluso, conforme a linha sucessória, Ayres Britto, Joaquim
Barbosa, Lewandowski, Cármen Lúcia e Toffoli. Se não fosse sair do
Supremo por força da aposentadoria compulsória dos 70 anos, que completa
neste agosto, Eros Grau substituiria Joaquim Barbosa. (Grau já
resmungou que a raia miúda o serviria melhor se ele estivesse na linha
de sucessão.)
Por que simular uma
eleição cujo resultado é conhecido? “É uma coisa simbólica, que nos
evita desgastes desnecessários”, disse o presidente Cezar Peluso,
sentado numa cadeira dos tempos do Império. Ela faz parte do acervo do
antigo Supremo que ainda estava no Rio. Trazê-lo a Brasília antes mesmo
da sua eleição foi a primeira marca do estilo Peluso. Autorizado pelo
presidente que saía e que não teve interesse pela mobília antiga –
“Achei que havia coisas mais importantes a fazer”, espetou Gilmar Mendes
–, Peluso mobilizou primeiro a seção de documentação e acervo. Depois,
acionou o departamento de Arquitetura (há um, sim), para que
redesenhasse a planta com os velhos móveis.
“Vou
propor que o gabinete seja tombado”, disse o ministro, satisfeito com a
nova decoração. As duas outras cadeiras do conjunto, as para as
visitas, ficam a alguma distância da mesa imperial. Atrás dela, Peluso
defendeu com ardor o critério por antiguidade. “A eleição formal é
importante, porque, como o voto é secreto, há sempre a possibilidade da
divergência”, disse. Agora, se a votação secreta levar à eleição de um
ministro mais moço, sabe-se lá o que acontecerá.
“Estou
feliz, sim, e gostando muito”, admitiu Peluso na sua segunda semana
como presidente. “É uma honra pessoal.” Pensou um pouco, e acrescentou:
“O que me incomoda é a incompreensão das pessoas.”
Era
uma reclamação contra pequenos aborrecimentos, como o ocorrido durante a
sua posse, numa cerimônia solene para 1 500 políticos, juízes,
advogados e governantes, entre eles o presidente Luiz Inácio Lula da
Silva. Mesmo ciente de que o regimento limita em três os discursos na
posse – o do decano, Celso de Mello, o do líder da Ordem dos Advogados
do Brasil e o do novo presidente – Peluso queria que um advogado em
particular o saudasse, o seu amigo Pedro Gordilho. O jeito era tentar
convencer o presidente da oab, Ophir Cavalcante Junior, a abrir mão da
fala.
Roberto Rosas, outro
advogado amigo de Peluso, convidou Ophir Cavalcante para um jantar em
sua casa e, pela conversa, achou que o tinha convencido a deixar que
Pedro Gordilho fizesse o discurso de saudação dos advogados. Na posse, o
apresentador chamou Gordilho a falar “em nome da comunidade jurídica”,
mas em seguida o presidente da oab o desautorizou, dizendo que só a
Ordem podia representar os advogados.
“Eu
me contive quando ouvi aquilo”, disse Peluso. “Fiz um esforço de
contenção terrível: ele rompeu um acordo.” Esforço titânico, mas não
totalmente eficaz, pois quando Ophir Cavalcante terminou o discurso,
Peluso fez a plateia rir ao dizer que seu amigo Gordilho falara “em nome
dos espíritos livres”, e não da oab.
Peluso
ainda não era da casa quando a escolha do presidente provocou a redução
dos seus poderes. O motivo foi a próstata dos membros do Supremo.
Ocorreu em 2001, quando Marco Aurélio Mello estava fadado a substituir
Carlos Velloso, e avisou que demitiria todos os aposentados lotados nos
gabinetes dos ministros. “Sempre defendi que a aposentaria é para o
ócio, e não para acumular renda”, explicou.
O
aposentado mais conspícuo, quase um patrimônio tombado, era o médico
Célio Menicucci. “Um homem que examinava a próstata dos ministros”,
observou a advogada Guiomar Feitosa de Albuquerque Lima, então assessora
de Marco Aurélio e hoje casada com o ministro Gilmar Mendes. Ela avisou
o novo presidente que Menicucci era imexível, seja pelas próstatas,
seja pela amizade que o ligava ao ministro Moreira Alves, um dos
baluartes da corte. Carlos Velloso foi outro a alertá-lo: “O Moreira não
vai aceitar isso de jeito nenhum.”
Como
a indicação do segundo escalão era atribuição exclusiva do presidente,
Marco Aurélio fechou questão. Avisados, todos os aposentados
demitiram-se. Menos o médico. Só redigiu sua carta de demissão quando o
próprio Marco Aurélio o intimou, ao cumprimentá-lo numa cerimônia:
“Doutor Célio, o Supremo espera uma atitude sua.” A carta de demissão
veio, mas a revolta capitaneada por Moreira Alves já estava em curso.
À
exceção do ministro Celso de Mello – e, obviamente, de Marco Aurélio –
os demais aprovaram uma emenda regimental que tirava do presidente o
direito de indicar o segundo escalão. Este, pe-la emenda aprovada, teria
que passar pela votação do plenário. “Foi um verdadeiro ai-5 contra
mim”, disse Marco Aurélio ao lembrar-se da história, ainda exalando
emoção. “Ou eu aceitava, ou eles não me levariam à presidência. Aceitei,
mas aquilo foi uma violência.”
A
grande figura do Supremo Tribunal Federal em seus primeiros anos não
foi nenhum ministro, e sim o advogado Rui Barbosa. Batendo-se por habeas
corpus para prisioneiros da ditadura de Floriano Peixoto, ele lotou as
galerias com discursos abrasadores. Foi o único advogado, na história do
Tribunal, a quem se concedeu o privilégio de não ter limite de tempo
para falar. Está certo que foi quase à força. Advertido pelo presidente
de que o regimento concedia apenas quinze minutos aos advogados – como
hoje – Rui, que mal começara a peroração, ameaçou: “Observo a Vossa
Excelência que desse modo prefiro não defender a causa.” E falou, em
seguida, pelo tempo que quis. Rui Barbosa perdeu a causa, os habeas
corpus não foram concedidos, não houve revolta alguma: o que acontece no
Supremo raramente provoca comoção fora dele.
O
sSTF foi, primeiro, Supremo Tribunal de Justiça – sucessor de uma Casa
da Suplicação do Brasil, instalada por dom João vi, em 1808, quando a
corte portuguesa fugiu das tropas napoleônicas para o Rio. Criado pela
Constituição de 1824, foi efetivado cinco anos depois, em 1829, composto
por dezessete juízes. Passou a ter o nome que tem – Supremo Tribunal
Federal – no começo da República, primeiro por decreto, e, depois, pela
Constituição de 1891. Sua primeira sede foi o prédio do Senado da Câmara
do Rio, na atual Praça da República. Depois funcionou na rua 1º de
março. Eram quinze juízes, a maioria oriunda do Império.
Floriano
Peixoto foi o primeiro presidente a violentar o Supremo – sem maior
reação. Impôs ministros e deixou de indicá-los a seu bel-prazer. Lá
meteu dois generais e um médico. Este, Barata Ribeiro, dá nome a uma das
ruas mais conhecidas de Copacabana. Foi ministro por quase um ano sem
que o Senado aprovasse a sua indicação, e saiu quando o Senado o
rejeitou. Essa e quatro outras, no mesmo governo Floriano, foram as
únicas rejeições de ministros pelo Senado em toda a história do STF.
Getúlio
Vargas também pisou no Supremo Tribunal Federal – inclusive com a
aposentadoria compulsória de meia dúzia de ministros, e com a proibição
de apreciação dos atos do Governo Provisório instalado em 1930. Com o
golpe de 1937 e a ditadura do Estado Novo, um decreto outorgou a Getúlio
o poder de nomear o presidente e o vice-presidente da corte.
Enquanto
funcionou no Rio, os juízes do Supremo não tinham maiores regalias.
Carro, era só para o presidente. Quando ele era Orozimbo Nonato, ficava
na garagem se viesse a quebrar. No começo dos anos 60, Márcio Thomaz
Bastos, um advogado em começo de carreira, o viu tomar um bonde,
carregado de processos. Certa vez, Orozimbo Nonato ficou escandalizado
num verão lancinante, quando o ministro Luiz Gallotti pediu-lhe que
providenciasse dois aparelhos de ar-condicionado. “Até esse momento,
Gallotti, você seria o meu candidato ideal a presidente da República”,
disse-lhe Nonato. “Jamais pensei que pudesse revelar-se tamanho
perdulário com o emprego do dinheiro público.” Os gabinetes dos
ministros tinham 20 metros quadrados.
O
Supremo também baixou a cabeça no golpe militar de 1964. Seu
presidente, Álvaro Moutinho da Costa, filho de general e irmão de
coronéis, foi à posse de Ranieri Mazzilli na noite de 1º de abril,
quando João Goulart ainda estava no Brasil. É verdade que, segundo a
história oral do Tribunal, depois Moutinho da Costa reagiu a ameaças do
ministro do Exército, Costa e Silva, ameaçando fechar a casa e mandar a
chave da instituição ao Planalto. Mas nada aconteceu quando o Ato
Institucional nº 2 aumentou o número de ministros de onze para
dezesseis. Em 1968, a aposentadoria compulsória ceifou os ministros
Victor Nunes Leal, Evandro Lins e Silva e Hermes Lima. O único a
rebelar-se publicamente contra os militares foi Adauto Lúcio Cardoso: em
1971, vencido numa votação contra a censura, ele retirou-se
intempestivamente do plenário durante a sessão de julgamento. Celso de
Mello, o que mais sabe sobre a história da corte, não confirma que
Adauto Lúcio Cardoso tenha jogado a toga sobre a bancada ao se retirar.
Sem
a tv Justiça, criada nos anos 90, muita coisa ficava entre quatro
paredes. Por coincidência, a lei que a criou foi sancionada pelo
presidente da República Marco Aurélio Mello, que substituía Fernando
Henrique Cardoso por uns dias na chefia do Executivo. Mello é um
entusiasta da transmissão direta. Fernando Henrique, nem tanto. “Eu
tenho dúvida em relação à transmissão pela televisão”, disse-me ele no
seu escritório em São Paulo. “Porque a imensa maioria da população não
entende aquela linguagem. Nos Estados Unidos, duas coisas são muito
diferentes daqui: não sai nada, não pode nem fotografar, e tudo aparece
como se fosse consensual. Nós não podemos transformar a Corte Suprema em
outro congresso. Congresso é diferente: tem quer ser aberto,
transparente, refletir até mesmo a certa desordem que há no Brasil. Mas o
Supremo? Deveria ser mais litúrgico.” E o que se faz a respeito? Acabar
com a transmissão direta? “Agora é difícil”, respondeu Fernando
Henrique. “Se acabar, vão dizer que é antidemocrático.”
O
professor Conrado Hübner Mendes, da Fundação Getulio Vargas de São
Paulo, que termina o seu doutorado na Universidade de Edimburgo, na
Escócia, não tem dúvidas. “A superexposição na televisão não ajuda o
Supremo a ser mais transparente”, afirmou. “Tampouco ajuda a sociedade a
entender melhor o papel do Tribunal e da Constituição. Em geral, só tem
atrapalhado: cria um palanque para que ministros se tornem
celebridades, em prejuízo do debate franco entre eles.” Para Hübner
Mendes, “é claro que transparência é indispensável em muitos aspectos.
Mas a inexistência de qualquer reunião privada entre os juízes tem
efeitos perniciosos também, tal como o enrijecimento do debate (ninguém
gosta de admitir que esteja errado em público) e a teatralidade. Há
bastante pesquisa sobre isso na ciência política, e a recomendação, em
geral, é que se busque uma forma híbrida, que combine momentos públicos e
abertos com deliberações a portas fechadas.”
Cabe
ao Supremo zelar pela Constituição. Todas as ações e recursos que a
questionem de alguma maneira vão parar lá. A Constituição de 1988
aumentou o número dessas ações e de seus potenciais proponentes. Antes,
por exemplo, só a Procuradoria Geral da República podia propor ações
diretas de inconstitucionalidade. Hoje, muitas entidades podem fazê-lo. A
Constituição também criou o mandado de injunção, pelo qual se pode
apelar ao Supremo em casos de normas* constitucionais que ainda não
foram regulamentadas. Todos os casos que dão entrada têm que chegar a
uma decisão – ou monocrática (de um ministro), ou colegiada (de turma ou
de plenário). É diferente, por exemplo, da Suprema Corte dos Estados
Unidos, onde são os nove ministros que escolhem o que vão julgar. Os
casos, lá, não passam de algumas dezenas por ano.
O
Supremo, em contrapartida, recebe uma torrente de processos, que invade
e se amontoa nos gabinetes. O recorde foi em 2006, quando tramitaram
127 mil. No ano passado houve mais de 120 mil julgamentos. Arredondando
as contas, foram 11 mil julgamentos por ministro no ano. Ou 900 por mês,
trinta por dia. Mais de três por hora, considerando oito horas diárias
de trabalho.
“São números
obscenos”, disse Oscar Vilhena Vieira, também ele professor de direito
da Fundação Getulio Vargas de São Paulo e autor de Supremo Tribunal
Federal: Jurisprudência Política, um dos poucos livros com uma visão
crítica da Corte Maior. “Se considerarmos que 90% das decisões do STF
são tomadas monocraticamente, de forma individual, o quadro fica ainda
pior. O Supremo é um colegiado justamente para reduzir os erros e
impedir a ruptura da regra da imparcialidade. Ao invés disso,
transformou-se de fato num órgão onde os juízes proferem,
individualmente, uma quantidade enorme de decisões todos os dias. Ou
seja: a corte não é corte. O que nós temos hoje é uma somatória de onze
votos – que quase sempre já estão redigidos antes da discussão em
plenário –, e não uma decisão da corte, decorrente de um debate robusto
entre os ministros.”
Este ano, no
primeiro semestre, quase 36 mil processos foram protocolados no
Supremo. A diminuição ocorreu por causa de novos mecanismos criados com a
reforma do Poder Judiciário, de 2004. Um dos mais importantes é a
súmula vinculante, que evita a tramitação de processos com reiteradas
decisões iguais. Um exemplo é a que declara inconstitucional qualquer
lei que disponha sobre sistemas de consórcios e sorteios, inclusive
bingos e loterias. Qualquer processo que trate desse tema será resolvido
com a simples aplicação da súmula.
Nas
segundas e sextas-feiras não há julgamentos. Cada ministro, nisso como
em tudo, faz o que lhe aprouver. Alguns trabalham em casa – como quase
todos dizem que fazem –, outros vão aos gabinetes. O ministro também é
responsável pela gestão de seu gabinete – da decoração, que volta e meia
muda, ao horário do expediente. Os gabinetes são todos enormes – alguns
chegam a 500 metros quadrados – e neles trabalham, em média, trinta
funcionários. Alguns são abertos e arejados – como o de Marco Aurélio –,
e outros cheios de salas, como o de Celso de Mello. Há processos por
todo o lado, identificados por pastas de cores diferentes. Recursos
extraordinários, nas amarelas. Agravos, azuis. Criminais, laranja.
“Aqui
chegam quarenta processos por dia, mas há não muito tempo chegavam
100”, disse Marcos Paulo Meneses, assessor-chefe do gabinete de Marco
Aurélio (que tem 447 metros quadrados e vista panorâmica para o cerrado e
o lago Paranoá, e é tocado por quarenta funcionários). Menezes tem 29
anos e está há dez anos com o ministro. Dribla com fluidez as pilhas de
processos no carpete cinza, e sabe em quais armários, inclusive os que
ficam no 2º subsolo do anexo 2, estão os milhares de outros. Eram 13 mil
no começo do ano passado. Diminuíram para 8 500 no meio deste ano.
Os
processos passam, para usar a linguagem de Meneses, por três níveis de
produção. Primeiro, são separados por classe (como agravos, recursos
extraordinários e ações originárias) e por matéria (tributária, servidor
público, trabalhista, previdenciária, criminal). Depois, vão para os
analistas, a quem cabe dizer se cumprem as formalidades da lei. Se
cumprirem, verifica-se se o ministro já tomou decisão num processo
semelhante. Se sim, como acontece em grande parte dos casos, eles a
reproduzem tal e qual. Se não, vão para um dos cinco assessores
jurídicos. Eles analisam o processo e preparam um resumo de três folhas,
sem citações. Na maioria dos casos, é apenas esse resumo que o ministro
lerá – e é com base nele que tomará sua decisão. Ocorre de o ministro
pedir as peças que quiser, ou até o processo inteiro. Mas é raro.
O
bacharel João Bosco é um outro assessor de Marco Aurélio. Na mesa
atulhada de processos ele comenta que um dos graves problemas para
administrar aquelas pilhas todas é a deficiência técnica de muitos
advogados. “Cerca de 80% dos habeas corpus são mal instruídos pelos
advogados”, disse Bosco. “Muitos não trazem sequer cópia do ato que
pretendem derrubar – e tudo isso gera atraso.” O assessor tem uma boa
memória sobre os casos absurdos que chegaram ao Supremo. Um deles – o hc
74103, do Rio de Janeiro – talvez seja o campeão mundial do gênero. Um
cidadão idoso, afirmando ter lido no jornal que o então presidente
Fernando Henrique Cardoso teria mandado um ofício a todos os aposentados
com mais de 65 anos, convidando-os a se apresentarem para a
incineração, pedia garantias ao Supremo. Relatado pelo ministro Neri da
Silveira, o processo tramitou durante três meses. E foi a julgamento em
agosto de 1996.
Os julgamentos do
Supremo ocorrem na sessão plenária, nas tardes das quartas e
quintas-feiras, e nas sessões das turmas, nas tardes das terças. São
duas turmas – a Primeira e a Segunda, no jargão interno –, com cinco
ministros cada uma. A Primeira, presidida por Ricardo Lewandowski, não
aceita julgar processos em lista, sistema que agrupa dezenas ou até
centenas de casos semelhantes e decide todos de uma tacada só. “Não
somos batedores de carimbo”, disse o ministro Marco Aurélio para
explicar sua contrariedade às listas. A Segunda Turma, presidida por
Eros Grau, julga sequências de listas, uma atrás da outra. O presidente
apenas lê os números dos processos, aprova por unanimidade em segundos e
proclama o resultado. “É uma forma de aliviar a carga pesada”, disse o
ministro Joaquim Barbosa, que era contra as listas, mas acabou
capitulando.
Os julgamentos das
turmas não são transmitidos pela tv Justiça. Mas o serão, em breve,
assim como as sessões do Conselho Nacional de Justiça, se depender do
presidente Cezar Peluso. Os da plenária têm transmissão direta. Os
primeiros que aparecem, antes de começar as sessões de julgamento, são
os “capinhas”, assim chamados por causa da obrigatória capa preta,
curta, sobre os ombros.
Os
ministros também são obrigados a usar toga. É uma capa de cetim preto,
comprida, sobre a roupa. A simples, que usam no dia a dia, é sobreposta e
amarrada nas costas por duas fitas. A toga de gala, usada em cerimônias
solenes, tem que ser vestida pela cabeça. Ela tem um camisão cheio de
babados, na frente, e a cintura é cingida por uma faixa de seda. O
Supremo as compra, cinco por ano, de poucas confecções. A de gala custa
370
reais; a simples, 197. As togas ficam sob a responsabilidade dos
respectivos gabinetes. Na prática, com os capinhas. Cabe a eles, nos
dias de sessões, tirá-las dos armários, estendê-las sobre uma mesa de
jacarandá, no salão branco, adjacente ao plenário, e colocá-las nos
ministros.
Gilmar Mendes não tem
paciência de esperar a amarração. Seu capinha tem que fazê-lo enquanto
ele sai andando. A ministra Ellen Gracie proibiu seu capinha de estender
a toga na mesa de jacarandá. Acha que traz maus fluidos, porque é no
móvel que são velados os ministros defuntos, que recebem as últimas
honras da casa no salão branco.
As
duas ministras tentam harmonizar as roupas com o negrume das togas. Às
vezes, a combinação é audaz, como no dia em que a ministra Cármen Lúcia
adentrou o plenário com um terninho rosa-choque. A ministra Ellen não se
furta a mostrar, além do perfil olímpico e do perfume sempre generoso, a
pele ebúrnea dos braços à mostra.
E ambas sempre
indagam dos capinhas se, comme il faut, o bico dos sapatos está
aparecendo sob a toga. As duas ministras não conseguiram quebrar a
hegemonia masculina dos auxiliares de plenário: só há capinhas homens.
É
um cargo de confiança. Eles servem para tudo: puxar a poltrona quando
as excelências vão sentar ou levantar, arrumar livros e processos que
devem estar à mão, servir água, café ou chá, levar recados ou bilhetes,
resolver encrencas com computadores, documentos que faltaram e que tais.
Há os que já puxaram a cadeira demais (uma vez o ministro Grau foi ao
chão), que já derramaram água ou café (Grau, idem) e que já entregaram
ao ministro o relatório do processo errado (Toffoli, que só descobriu ao
ser advertido pelo advogado do caso). Mas, vendo-se a faina antes das
sessões, pode-se dizer que um bom capinha é meio ministro. Sem contar
que eles sabem tudo o que se passa na casa, e mais alguma coisa.
Mesmo
que tudo esteja pronto para os ministros entrarem na hora, e sempre
está, as duas turmas começam as sessões com atraso. E não vão a muito
mais de três horas de duração. A Primeira ainda volta depois do
intervalo. A Segunda, nem isso. A Primeira é mais agradável de ser
assistida, pela implicância e picardia do ministro Marco Aurélio. É
comum que ele fique em posição vencida – como faz questão de alardear – e
que questione os que dele divergem de maneira provocativa. Puxa
conversa com a ministra Cármen Lúcia, que senta ao seu lado. Ela
responde de modo gentil, mas formal. Do outro lado ficam Ayres Britto e
Dias Toffoli, que é quase tão silencioso quanto a ministra. Fala o
estritamente necessário. Há momentos ternos na Primeira Turma: “Nunca me
abespinho com Vossa Excelência, sendo Vossa Excelência uma flor”, disse
certa vez Cármen Lúcia a Ayres Britto.
A
Segunda Turma é mais sisuda, e raramente sai dos autos. Tirante
grunhidos e resmungos do ministro Eros Grau, resta a formalidade de
Celso de Mello e o mutismo de Ellen Gracie, Joaquim Barbosa e Gilmar
Mendes (que anda caladíssimo depois que saiu da presidência).
As
plenárias de quartas e quintas são o horário nobre do Supremo.
Realizadas no auditório do prédio principal, no salão de mármore com o
relevo construtivista de Athos Bulcão, também começam com grande atraso.
Os advogados se queixam muito – a maioria vem de outros estados – mas
nenhum ainda teve coragem de reclamar com os juízes.
À
entrada dos ministros, e também do procurador-geral da República,
Roberto Gurgel, numa fila puxada pelo presidente, todos se levantam. Se
alguém esquecer, ou não estiver prestando atenção, os seguranças
lembram. Eles são pelo menos uma dúzia e acordam ostensivamente quem
cochila – menos os ministros, é claro. Às vésperas de deixar a
presidência, esgotado pela ciranda das despedidas, Gilmar Mendes
cochilou em vários momentos durante uma sessão plenária, acordando
assustado. “Você viu como eu não estava aguentando?”, perguntou, depois.
Os
seguranças também admoestam os donos de celulares que tocam e os
fotógrafos que se aproximam dos juízes ou fazem barulho. Mas às vezes,
como ocorreu numa sessão de março, deixam que um maluco suba na tribuna
dos advogados para ameaçar os ministros. A sessão foi suspensa, cinco
policiais expulsaram o cidadão que, já fora do STF, gritava: “Aí só tem
ladrão, aí só tem ladrão.”
O
problema é que a tribuna fica entre os juízes e o público. Mas como as
instalações são tombadas, o Patrimônio Histórico não permite
modificações. “Vamos ter que resolver isso, antes que aconteça alguma
coisa pior”, disse o presidente Cezar Peluso. Ele trocou o chefe da
segurança e mandou restringir a circulação em algumas áreas do prédio,
como o andar da presidência.
Quem
escolhe o que vai a julgamento nas plenárias é, exclusivamente, o
presidente. A sessão começa com a leitura da ata da sessão anterior,
para a qual, cumprindo a praxe, nenhum deles dá a mínima. O presidente,
então, anuncia o processo a ser julgado e passa a palavra para o
relator. Este expõe o caso, lendo um relatório que já trouxe pronto.
Poucos ministros sabem combinar a leitura com comentários e acréscimos
improvisados. Se houver sustentação oral, os advogados sobem na tribuna
depois que o relator acabou. Eles têm no máximo quinze minutos para
falar. Se o Ministério Público quiser se manifestar, a hora é essa.
Roberto Gurgel é talvez o mais silencioso procurador que ali já pisou:
manifesta-se quando é estritamente necessário e evita apartes. Depois
que as partes se manifestaram, a palavra volta para o relator, que
então, em nova leitura, expõe o seu voto.
Um
acompanhamento regular das sessões durante um trimestre, mostrou, data
maxima venia, que o Supremo tem quatro ministros capazes de discutir uma
questão com profundidade e desenvoltura, sem se aterem à leitura de
papéis ou de tela de computador: Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar
Mendes e Cezar Peluso. Os demais, em maior ou menor grau, dependem do
papel.
É o caso das duas
ministras. Ellen Gracie porque lhe é do estilo. Cármen Lúcia, não se
sabe. Quem já a viu fazendo palestras sabe que é capaz de fazer uma
plateia rir por comentários como “essa reforma administrativa fala em
membro inativo, e eu odeio membro inativo”. Gilmar Mendes, que gosta
dela e a chama de Carminha, acha que a ministra ainda não se recuperou
da troca de e-mails com Lewandowski. Numa sessão, eles trocavam
mensagens sobre questões internas da corte – deixando mal o ministro
Eros Grau – quando o fotógrafo Roberto Stuckert Filho, de
O
Globo, clicou a tela e o jornal publicou no dia seguinte. “O
Lewandowski deu a volta por cima, mas ela ainda não conseguiu”, disse
Mendes.
Embora seja dos mais
formais – chama os colegas de “eminentes pares”– Lewandowski raramente
sai do script. Questionado, atrapalha-se. Joaquim Barbosa soma com os
mudos. Não se mete em questões polêmicas de jeito nenhum. Já suou quando
o ministro Marco Aurélio, sempre ele, em golpes sequenciais, o colocou
nas cordas com uma pergunta que não soube responder a respeito do
processo que relatava naquele momento. É menos absurdo do que possa
parecer. O acúmulo de processos leva a que, muitas vezes, ministros só
tomem conhecimento do que se trata na hora da sessão, quando leem o que
escreveram os assessores.
Joaquim
Barbosa explicou que está sempre num senta-levanta devido a dores na
coluna. Retira-se várias vezes durante a sessão e vai para a sua cama
ortopédica na sala de lanches do salão branco. Ayres Britto fala fora do
papel, mas na maioria das vezes para contribuições poéticas que
desanuviam o ambiente. O silêncio de Toffoli rescende à prudência de
quem ainda não conhece direito a celebração da missa. E o de Eros, às
vezes, sinaliza que seus pensamentos estão em outro continente.
No
intervalo – do qual sempre voltam muito atrasados – os ministros
saboreiam um lanche não tão farto quanto já o foi, objeto até de
denúncia. Ele é servido por garçons num canto, protegido por biombo, do
salão branco.
“A sessão de
julgamento do Supremo é geralmente uma farsa, um teatro
contraproducente”, opinou o professor Hübner Mendes. “Todos chegam com
seus votos prontos e gastam horas apenas para lê-los em público.
Eventualmente, até há alguma interação entre eles, uma pergunta, uma
rápida discussão, mas quase sempre superficial, que nunca muda o voto de
ninguém.”
Para o professor
Hübner Mendes, há um “ambiente de academia de letras” no Supremo,
marcado pelo pedantismo e a prolixidade: “Existe um apego à beleza
literária e, sobretudo, à erudição dos votos, e pouca atenção à
especificidade dos fatos de cada caso. Não são raros os votos que fazem
longos resumos de certos temas na história do pensamento, como liberdade
de expressão, separação de poderes etc. O problema não é somente a
péssima qualidade do resumo, versões baratas de almanaque, mas sim que
isso apenas desvia a atenção para a boa resolução do caso sobre a mesa.
Os juízes têm que ser solucionadores de problemas e fornecedores de boas
justificativas. Suas pretensões como escritores e intelectuais não
deveriam ser relevantes.”
Em
cortes superiores europeias, e também nos Estados Unidos, advogados não
podem falar com ministros. A lei proíbe. No Brasil, o direito é
constitucional. A Ordem dos Advogados bate-se por ele, mas sabe que é
uma questão polêmica desde que o ministro Joaquim Barbosa a questionou.
Barbosa não é completamente contra receber os causídicos. Tanto que os
recebe: foram 35 no ano passado e dez este ano, até sair de licença –
quantidade que outros ministros recebem em um mês, ou até em uma semana.
É contra, sim, recebê-los sem a notificação da parte contrária, para
que ela possa, querendo, comparecer. Outros ministros são simpáticos a
restrições.
No ano passado,
quando o assunto veio à baila, sete deles assinaram uma proposta de
mudança de regimento nesse sentido. Como o barulho foi grande, e como há
ministros fortemente contrários às restrições – Marco Aurélio, por
exemplo – a questão está em banho-maria. Deve retornar à pauta durante a
presidência de Peluso, que é contra receber advogados. “Não há nada que
um advogado não possa dizer nos autos, e é assim que deve ser”, disse
ele. Explicou que ainda os recebe, “porque a questão não foi resolvida e
haveria uma grita se eu não o fizesse”, mas acha que deve ser
enfrentada. “Em nenhum lugar do mundo existe isso, só no Brasil. Nos
Estados Unidos é como se eles não tivessem nem telefone, ninguém sequer
liga.”
Lewandowski é o único a
receber os advogados, regularmente, nos intervalos das sessões da
Primeira Turma. Eles informam ao capinha do ministro que desejam falar
com ele. O capinha leva o ministro até eles, um por vez, e se afasta um
pouco. O ministro troca palavras formais, olha nos olhos, recebe os
memoriais que são entregues e diz que vai olhar tudo com atenção. Às
vezes, coincide de um desses advogados ser o deputado federal José
Eduardo Cardozo, da direção do PT e da campanha de Dilma Rousseff.
Lewandowski também é o presidente do Tribunal Superior Eleitoral.
Naqueles dias, esse tribunal havia multado o presidente Lula por
propaganda indevida. Cardozo foi recebido cordialmente, e levado para um
das poltronas da plateia, onde se sentaram.
Outro
advogado que frequenta o Supremo é José Roberto Batochio. Alguns de
seus casos são famosos, como o processo em que defendeu o ex-ministro da
Fazenda Antonio Palocci, denunciado pela quebra do sigilo bancário do
caseiro Francenildo dos Santos Costa. O advogado ganhou e o ex-ministro
lhe pagou de honorários, em cinco vezes, 500 mil reais (praticamente uma
gorjeta para os padrões do mercado).
“Se
existe uma instância digna de confiança e isenta de vícios que acometem
a ordem pública no Brasil, esta é o Supremo Tribunal Federal”, disse
Batochio. Quando Carlos Velloso ainda era do STF, coube-lhe relatar um
habeas corpus em que Batochio pedia a liberdade de Flávio Maluf, que
estava preso com o pai, Paulo Maluf. Velloso concedeu o habeas corpus a
ambos. No final da sessão, Batochio foi cumprimentar o ministro e um
fotógrafo captou a efusividade do encontro, estampado, no dia seguinte,
na maioria dos jornais. “Fizeram muita maldade com aquilo e não houve
absolutamente nada”, disse o advogado. “Foi apenas um abraço caloroso”,
explicou Carlos Velloso.
Outro
advogado que atua no Supremo é José Luis de Oliveira Lima, Juca para os
amigos. Ele é o patrono do maior e mais famoso processo que tramita na
casa – o do mensalão, relatado pelo ministro Joaquim Barbosa, no qual
defende o ex-ministro José Dirceu. No final do ano, na véspera do Natal,
em parceria com Márcio Thomaz Bastos, Oliveira Lima conseguiu do
ministro Gilmar Mendes uma liminar que tirou da cadeia um dos seus
clientes mais conhecidos, o médico Roger Abdelmassih, denunciado por
crimes sexuais contra pacientes.
Quatro
meses depois, numa segunda-feira de maio, Oliveira Lima homenageou o
ministro Gilmar Mendes com um jantar em seu apartamento. “É o mínimo que
ele merece, pela gestão revolucionária que fez no Supremo”, explicou
Oliveira Lima. Convidou trinta criminalistas, entre os mais prestigiados
de São Paulo. Gilmar Mendes foi com a esposa, Guiomar, que discursou.
Márcio Thomaz Bastos foi um dos primeiros a se retirar. “Não vejo nenhum
conflito ético em comparecer a esse jantar”, me disse Gilmar Mendes.
“Nem eu”, afirmou o anfitrião.
Poucos
comem peixe assado como o ministro Marco Aurélio. Vai na mão mesmo, não
importa o tamanho ou a quantidade de espinhas. O carapeba veio do
Maranhão, terra natal da cozinheira. “Uma delícia”, disse o ministro,
literalmente lambendo os beiços, na mesa na copa. Ele mora, com a esposa
desembargadora e um de seus quatro filhos, fora os empregados, numa
casa à beira do Lago Sul. A garagem guarda seus veículos de estimação:
um Fusca 69, um Alfa Romeu 98 e, menina dos olhos, uma moto Kawasaki 97,
com a qual já foi ao Supremo.
É
uma segunda-feira, dia em que trabalha em casa. É preciso contornar, no
chão, as pilhas de processos que atulham o escritório desarrumado. Eles
também estão nas poltronas, na estante e espalhados pela mesa. “Aqui tem
uns 100 processos”, ele estima. No gabinete do Supremo há outros, uns 8
mil.
O ministro trabalha
falando. Dita suas decisões, solitário, para um gravador pequeno. As
fitas são enroladas num papel e presas com clipes. Se há urgência, um
motorista as leva para o Supremo. “É lá que fica a mulher que mais me
ouve”, brinca o ministro. É a servidora Cláudia Borges, que degrava as
fitas para o papel, por meio de um ditafone. Ele tem um pedal que
controla a velocidade da voz, facilitando a transcrição. O ministro
mandou comprá-lo no exterior. Cláudia comanda quatro funcionários. A
equipe é robusta porque o juiz dita a valer, e tem um modo de falar
peculiar: parece que sempre lhe falta fôlego, e ele acentua o final das
palavras que terminam com “al”.
Marco
Aurélio estava chateado com uma pesquisa divulgada na imprensa sobre a
lentidão do STF, na qual ele não figurava entre os mais rápidos. “A
batalha para combinar conteúdo e celeridade é inglória”, disse. “Eu não
entro na competição de quantidade, e não aceito que juízes auxiliares
julguem os meus casos. Acho que o ofício de julgar é indelegável, porque
não basta a formação técnica. A formação humanística é mais
importante.”
Juízes auxiliares
foram introduzidos no Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos,
numa reunião administrativa, durante a presidência de Nelson Jobim.
Achou-se que eles ajudariam a dar conta das montanhas de processos –
quase 10 mil por ministro, vale lembrar. O regimento passou a estipular
que um ministro tem direito a um juiz auxiliar, em cargo de confiança,
que requisita de outros tribunais, a seu exclusivo critério. Nove
ministros têm juiz auxiliar. Marco Aurélio e Celso de Mello, que são
contrários, nunca indicaram os seus. Essa sobra, por assim dizer, foi
reivindicada por Ellen Gracie, que queria ficar com três só para ela.
Numa sessão administrativa, seu pedido foi posto em votação e recusado.
Marco
Aurélio tem 31 anos de magistratura. “O dia que eu perder o entusiasmo,
requeiro a aposentadoria”, disse. “Não me imagino saindo do Supremo,
aos 70, para advogar. Talvez a área acadêmica, na fmu. Uma reitoria,
quem sabe. De tédio eu não morrerei.” Ele tem relações profissionais e
de amizade com o dono das Faculdades Metropolitanas Unidas, de São
Paulo, Edevaldo Alves da Silva. Chama-o de “meu irmão”.
Depois
de degustar a carapeba, o ministro relembrou um dos muitos embates que
teve na corte: “Era uma discussão em que o governo tinha interesse. O
Nelson Jobim me imprensou, com aquele jeito de gaúcho trepidante.
Aparteou três vezes. Na terceira, virei-me para o Celso de Mello e
disse: ‘Confesso que eu não tenho medo de polícia governamental.’ O
Jobim reagiu: ‘Repilo, repilo!’”
Não
há ministro que não tenha tido arrufos com Marco Aurélio. Já se pegou
algumas vezes com Joaquim Barbosa – numa delas o chamou para um duelo.
Já fez o ministro Eros Grau ter um preocupante aumento de pressão. Não
dá trégua à ministra Ellen Gracie quando acha que ela está errada, e
sempre parece achar isso. Marco Aurélio gosta e repete até nas sessões
de julgamento, o apelido que lhe foi dado por Nelson Jobim: ferrinho de
dentista. Não provoca só juízes. Certa vez ele encontrou, no elevador
privativo dos ministros, um jornalista que não deveria estar lá. “E
então, ministro, quais são as novidades?”, perguntou o repórter. “A
novidade é essa nossa intimidade”, respondeu-lhe Marco Aurélio, na
bucha.
No seu gabinete, um cróton
enorme, de folhagem exuberante, que já vai para uns trinta anos de
vida, chama a atenção. É o começo de uma noite de quinta-feira. Não
houve a costumeira sessão plenária da tarde, por falta de quorum. “Esse
cróton é o meu amuleto”, comenta o ministro Marco Aurélio. “Aonde eu
vou, ele vai atrás.” Só de Supremo a planta tem vinte anos, contados de
junho de 1990, quando ele chegou lá, indicado pelo primo presidente da
República, Fernando Collor de Mello. “Eu não sou primo dele”, disse uma
vez no programa Roda Viva, deixando em dúvida, por alguns segundos, o
jornalista que lembrara o parentesco. “Ele é que é meu primo, porque
nasceu depois”, emendou. Ri do gracejo até hoje, achando que foi uma
grande tirada.
O viço do cróton
contrasta com a tensão do ministro. Ele já foi três vezes ao banheiro do
gabinete para, conforme disse, “aumentar a autonomia”. “Uma vez o
Peluso me disse que essa era a melhor expressão que ele ouvira para
fazer xixi”, disse. Em boa parte das histórias contadas por Marco
Aurélio aparece alguém lhe fazendo um elogio. Se não aparecer, ele
próprio não se furta, com verve e prazer. O assunto que o deixa
apreensivo é um segredo do Supremo Tribunal Federal: em 2001, quando era
o presidente da corte, três ministros pelejaram para levá-lo ao
impeachment, no Senado, única instância que pode afastar um ministro do
Supremo Tribunal Federal.
A
ameaça de destituição ocorreu porque Marco Aurélio alterou o conteúdo de
uma decisão colegiada. Era um pedido de habeas corpus para um oficial
da Aeronáutica flagrado, com outros colegas, com 33 quilos de cocaína no
momento da decolagem de um avião da Força Aérea Brasileira, no Recife.
Como relator do caso, Marco Aurélio levou o habeas corpus a julgamento
da Segunda Turma. Votou pela concessão, obtendo a unanimidade dos dois
ministros presentes, o presidente da Turma, Néri da Silveira, e Nelson
Jobim. Celso de Mello e Maurício Corrêa, que completavam a Segunda
Turma, estavam ausentes.
Cabia a
Marco Aurélio a redação do acórdão, nos termos votados. Quais sejam:
considerar ilegal a prisão preventiva, por excesso de prazo, assegurando
ao acusado o direito de aguardar o julgamento em liberdade. Uma decisão
a mais, como milhares de outras.
Só
que Marco Aurélio acrescentou no acórdão uma expressão não formulada no
julgamento: “Torno definitiva a liminar, para que o paciente aguarde em
liberdade o julgamento dos citados processos e, na hipótese de
condenação, a imutabilidade do ato processual formalizado.” Em outros
termos: ele dizia que o réu deveria ficar em liberdade mesmo em caso de
condenação.
Veio a condenação, a
17 anos de reclusão, e o juiz federal mandou prender o réu. O advogado
do condenado recorreu novamente ao Supremo, pedindo outro habeas corpus.
Arguiu, justamente, que a frase final do acórdão deveria garantir a
liberdade de seu cliente. Ao reassumir o caso, Marco Aurélio deu a
liminar, reafirmando o acórdão da Segunda Turma, inclusive em sua parte
final.
O habeas corpus foi para o
tribunal pleno em 12 de setembro de 2001, agora com Marco Aurélio na
presidência do Supremo. A transcrição dos debates mostra que Nelson
Jobim questiona o teor de decisão da Segunda Turma – e acusa Marco
Aurélio de ter acrescentado, no acórdão, uma tese em que fora vencido.
“Não gosto é que se traspassem, por dentro de uma decisão, situações
vencidas na turma”, disse Jobim ao plenário.
Marco
Aurélio respondeu que não havia contrabando algum, e que a Segunda
Turma, inclusive Jobim, decidira tal e qual ele relatara no acórdão.
Diante da dúvida, e do impasse, a ministra Ellen Gracie pediu vista dos
autos. Duas semanas depois, após examinar o que acontecera na reunião da
Segunda Turma, a ministra afirmou que “houve uma particularidade no
julgamento”, a de, “por lapso no voto condutor” (o de Marco Aurélio),
ter-se acrescentado que, na hipótese de condenação, o habeas corpus
permanecesse em vigor. Escreveu Ellen Gracie: “Não está inserido em
qualquer dos dispositivos constitucionais que o Supremo Tribunal Federal
tenha poderes para ditar as decisões futuras do magistrado de primeiro
grau, impondo-lhe que deixe de aplicar a letra expressa da lei.”
Marco
Aurélio não admitiu o “lapso”. Explicou o trecho final do acórdão como
coerente com a sua posição liberal naquela matéria. A ministra, que
havia sido elegante, deixou de ser: “Gostaria de esclarecer, e por isso
mencionei que possivelmente fosse uma falha, que retornei ao julgamento
da Turma, inclusive revisando notas taquigráficas do julgamento, e a
questão não foi levada por Vossa Excelência. A Turma não deliberou a
respeito dessa intenção.”
Marco
Aurélio insistiu: “Perdão. A minha fidelidade é absoluta.” Mas Jobim
reforçou a ministra e, novamente, pediu vista. Só um mês depois, em 25
de outubro, Marco Aurélio admitiu a “discrepância” apontada pela
ministra Ellen Gracie, reconsiderou o voto e reconheceu que o seu
acréscimo ao acórdão não fora deliberado na votação da Turma.
“Foi
um erro perfeitamente cabível diante do nosso acúmulo de processos, mas
nunca um motivo para quererem o meu impeachment e me levar ao Senado”,
disse Marco Aurélio em seu gabinete, olhando para o cróton. Os três
ministros a quem acusa de querer destruí-lo – o verbo é dele – são
Nelson Jobim, hoje ministro da Defesa, Carlos Velloso, que voltou a
advogar, e Ellen Gracie, ainda ministra da casa.
“O
caso era gravíssimo”, disse Jobim em seu gabinete ministerial. “Fui eu
que salvei o Marco Aurélio, para preservar a instituição.” No escritório
do filho advogado, onde dá expediente, Carlos Velloso usou o mesmo
superlativo e o mesmo argumento: “Recuamos do caso gravíssimo pela honra
da corte.” A ministra Ellen Gracie não quis dar entrevista.
Nas
sessões plenárias das quartas e quintas-feiras, ela se senta na bancada
oposta à de Marco Aurélio, de frente para ele. Comentei com o ministro
ter sentido, em meia dúzia de sessões em que estiveram face a face, um
ódio quase palpável entre ambos. “Você tem percepção”, ele disse. “Como é
que posso gostar de uma pessoa que queria o meu fim?”, perguntou,
apontando a papelada sobre o caso, trazida, a seu pedido, pelo chefe de
sua assessoria.
Jobim, Ellen
Gracie e Carlos Velloso – o presidente que Marco Aurélio substituíra,
desfazendo muito do que ele fizera – quiseram levar o reconhecido erro
de Marco Aurélio para discussão em uma sessão administrativa, na qual o
voto da maioria por um pedido de impeachment poderia mandá-lo ao Senado.
“Eu vi a conspiração crescendo”, disse Marco Aurélio. “Eles queriam me
intimidar ou retaliar, mas decidi agir.”
Num
gesto incomum, ele procurou o ministro Sepúlveda Pertence em sua
própria casa, e depois, nos respectivos gabinetes, os ministros Moreira
Alves, Néri da Silveira e Sydney Sanches. “Eu reconheci que era chato,
insuportável, ferrinho de dentista, o que eles quisessem, mas jamais,
como estava se insinuando, desonesto ou desleal”, disse Marco Aurélio
acentuando a tal ponto a última sílaba de desleal a ponto de a palavra
soar como desleár. “Defendi-me, como pude, situando o erro em seus
aspectos formais. Era um acréscimo, realmente, mas refletia uma posição
minha, de ser liberal nesses casos para garantir o mais amplo direito de
defesa. Se foi parar no acórdão, foi por acidente.”
Percebendo
que esses ministros que procurara não adeririam à proposta de
impeachment, Marco Aurélio aguardou a próxima reunião administrativa.
Mal ela começou, dirigiu-se ao ministro Velloso, para ele o cérebro da
“conspiração”. Marco Aurélio lhe disse: “Então, Carlos, porque você está
fazendo isso, querendo me levar ao Senado? Por que você quer me
destruir? O que foi que eu lhe fiz?” Velloso não o enfrentou. Jobim e
Ellen deixaram por menos. Ficou tudo como antes. Pouquíssima gente soube
da história fora do Supremo. “Eu entrei no Supremo depois, mas fui
informado”, disse Gilmar Mendes. “Achei grave o que Marco Aurélio fez, e
achei mais grave ainda terem botado panos quentes.”
O
s ministros dispõem de infraestrutura, remuneração e mordomias
excelentes. O orçamento do Supremo para este ano é de 510 milhões de
reais. Trabalham lá, no prédio principal e nos dois anexos, 1 135
servidores concursados, 1 250 terceirizados e 176 estagiários. A frota
tem 70 veículos, que gastam 35 mil de combustível e rodam cerca de 13
mil quilômetros por mês. Dezenove deles – os Ômegas de luxo – são para
os onze ministros. O presidente tem sempre dois carros à disposição,
fora os da segurança. Todos os juízes dispõem de segurança, inclusive
nas residências, por 24 horas. Têm direito a apartamento funcional – dos
grandes – ou a auxílio-moradia, no limite de 2 750 reais. Se viajarem
pelo Brasil, a diária é de 614 reais. Para o exterior, são 485 dólares.
O
salário de um ministro é de 26 mil reais. O presidente recebe uma
gratificação adicional de 1 700 reais. E os que atuam cumulativamente no
Tribunal Superior Eleitoral recebem jeton de 3 mil. Continuam recebendo
depois que se aposentam, e também depois que morrem, por seus
dependentes. É a vitaliciedade, à qual a Constituição agrega a
inamovibilidade e a irredutibilidade de vencimentos. Podem nomear nove
cargos de confiança no gabinete, com salários que variam entre 8 mil e
12 mil reais, fora o juiz auxiliar.
O
almoxarifado do Supremo fica num prédio emprestado, na Asa Norte. Do
papel higiênico ao café, 3 mil itens estão catalogados lá. Em maio,
havia 1,4 milhão de produtos em estoque, no valor de 2,5 milhões de
reais. O consumo de papel sulfite é de 1 800 resmas por mês. De papel
higiênico vão, mensalmente, para 145 banheiros, 700 rolos de 250 metros
cada um. Ao informar esse último dado, o coordenador de material e
patrimônio, Edmilson Lima, pediu que não se fizesse nenhum comentário.
De café, são 680 quilos por mês. E aí não está incluído o melindre do
ministro Peluso – que traz o seu próprio pó de casa, assim como o bule e
as xícaras.
Estão previstos,
para este ano, investimentos de 61 milhões de reais. A maior parte é
para compra de equipamentos de informática e de televisão, e 14 milhões
para modernização e reparo. Esbelto por fora, o prédio de Oscar
Niemeyer, com seus 64 mil metros quadrados de área construída, é um poço
sem-fim de problemas. Mesmo muito já tendo sido feito e gasto para
consertar deficiências estruturais, várias ainda persistem: lajes
infiltradas, estruturas comprometidas, condutos elétricos e hidráulicos
pedindo socorro, acústica cava no plenário, elevadores à beira do
colapso. Só de vidros, há quase 14 mil metros quadrados, e parte da
estrutura que os sustenta precisa ser trocada.
Os
desalinhamentos têm provocado episódios prontos para um Edgar Allan
Poe. É o caso da mítica ninhada de gatos que habitaria túneis entre as
paredes, e cujos miados assustam funcionários. Como se não bastassem os
gatos – se é que são, ou eram, gatos – a área da Rádio Justiça sofreu há
pouco uma inundação. No ano passado, as obras de engenharia custaram 4
milhões de reais.
O responsável
pela administração do Supremo é o diretor-geral Alcides Diniz. Entrou na
presidência de Gilmar Mendes e, caso raro, foi mantido na gestão
Peluso, com a obrigatória aprovação do plenário. Mineiro (de Vazante) no
que isso tem de bom (o laconismo) e de ruim (o laconismo), foi criado
na roça, onde pegou no cabo da enxada, e mudou-se para Brasília aos 16
anos. Foi contínuo e passou num concurso para a Justiça Federal como
datilógrafo. Com dois cursos superiores – economia e administração de
empresas – subiu de posto e de responsabilidade no Conselho da Justiça
Federal, onde trabalhou 26 anos. Em 1997, a política o atraiu. Foi
eleito prefeito de Vazante, pelo pfl. Perdida a reeleição, voltou à
carreira, até chegar a diretor-geral do Superior Tribunal de Justiça.
Foi ali que Gilmar Mendes, mal o conhecendo, o levou para o Supremo.
“Procuro fazer uma gestão impessoal e estritamente técnica”, disse
Diniz.
“O Supremo é um ninho de
vaidades e de pouca lealdade”, disse o ministro Eros Grau em seu
gabinete. “Alguns são terrivelmente inseguros e precisam se afirmar”,
complementou, passando a mão nos suspensórios azuis. Era o começo da
noite de uma terça-feira. Horas antes, ele havia sido eleito presidente
da Segunda Turma, em substituição ao ministro Cezar Peluso, que assumira
a presidência do Tribunal.
“Entendo,
com grande alegria e extrema honra, que a presidência cabe ao ministro
Eros Grau”, disse Celso de Mello na abertura da sessão de eleição,
expondo o combinado. O novo presidente disse que a generosidade do
proponente confirmava “a ideia do direito como um registro do cérebro e
do coração”, e assumiu os trabalhos. Em quase duas horas de sessão, com a
presença de apenas três ministros e um público de menos de dez pessoas
(incluindo seguranças, bombeiros e jornalistas) foram julgados sete
habeas corpus. Um deles tratava de um furto de duas canaletas plásticas
cujo valor não chegava a 30 reais.
Pouco
antes das cinco, antes que se completassem duas horas, a sessão foi
encerrada. Houve gente que pensou que seria um intervalo – como acontece
na Primeira Turma – mas era realmente o fim do expediente. Eros Grau e
sua inseparável bengala subiram para o gabinete. “Eu ia realmente
processar o Lewandowski”, foi a primeira frase que disse depois do
comentário sobre vaidades e deslealdades.
Referia-se
ao caso da troca de e-mails, em agosto de 2007, durante uma sessão do
pleno, entre os ministros Cármen Lúcia e Lewandowski. Era a primeira
sessão de julgamento do mensalão. A foto da tela do computador publicada
na imprensa mostrava que os dois ministros chamavam Eros Grau de
“Cupido”. Isto por que Grau estaria patrocinando a indicação do advogado
Menezes Direito para o Supremo – e se o governo nomeasse seu amigo,
Grau votaria pelo arquivamento da denúncia do mensalão. “Procurei o José
Gerardo Grossi e pedi que ele abrisse um processo, mas ele achou melhor
pedir que o Lewandowski me mandasse uma carta de desculpas”, contou
Grau. “Ele mandou a carta, mas era muito chocha, não falava nada. Só que
eu dei uma entrevista dizendo que ele se desculpara cabalmente, de
forma nobre e gentil. Como ele ficou calado, dei o caso por encerrado.”
Grau detesta Lewandowski até hoje. Com a ministra Cármen Lúcia, que se
senta ao lado dele no plenário, o mal-estar parece encerrado.
Eros
Roberto Grau foi o quarto ministro indicado por Lula. Um advogado amigo
do presidente, Sigmaringa Seixas, acha que ele foi o único que saiu da
cota pessoal do próprio Lula, sem precisar de outros cacifes. “O
presidente gosta muito dele”, disse Seixas.
Professor
de direito – inclusive de universidades francesas, como visitante – e
autor renomado de pareceres caríssimos, Grau teve uma passagem pelo
Partido Comunista Brasileiro durante a ditadura. Foi preso e torturado,
mas não gosta de falar sobre o assunto. Adora a França, onde tem dois
apartamentos – um em Paris e outro em Honfleur, na costa normanda. “São
pequenos”, esclareceu, “e não estou comprando um terceiro.” Vai com
tanta frequência que alguns amigos o chamam de “Eurograu”. É figura
querida pelos garçons do Café de Flore, no boulevard Saint-Germain. Está
escrevendo um livro sobre sua fascinação por Paris, com destaque para a
área gastronômica, que aprecia e pratica.
Ele
também recebe em Tiradentes, a cidade histórica mineira, onde tem um
casarão. Alguns dos jantares que oferece têm o cardápio enviado
previamente aos amigos. O ministro tem um filho advogado, Werner Grau,
que trabalha em um dos maiores escritórios de São Paulo, o Pinheiro
Neto. Declara-se impedido, como manda a lei, quando ele assina a
petição. Sua data-limite no Supremo é agora, em 19 de agosto, quando
completa 70 anos.
Quando Gilmar
Mendes era presidente, Grau certa vez furtou-lhe um dos sapatos durante
uma sessão plenária. “Puxei com a bengala e levei para debaixo da minha
mesa”, contou, divertido. Mendes costuma tirar os sapatos onde quer que
possa, para aliviar os pés. “Não percebi quando ele levou”, disse
Mendes. “Depois foi um sufoco, porque os capinhas não achavam o sapato, e
eu tinha que encerrar a sessão. Até que o Eros riu, e se entregou. Eros
é muito brincalhão”, disse Mendes.
O
Supremo é das poucas cortes superiores do mundo a ter ministros
condenados pela Justiça. O caso mais recente é o do ministro Dias
Toffoli, condenado no Amapá a devolver 420 mil reais aos cofres públicos
por contrato ilegal entre seu escritório e o governo do Estado. O
ministro recorreu da sentença e, em junho, foi absolvido na segunda
instância.*
O outro caso, em que
os valores são muito maiores, é o do ministro Eros Grau. Ele exerceu
grande parte do mandato sob a vigência uma sentença que o condenou a
devolver 2,7 milhões de reais ao erário paulista por contratos ilegais
com o Metrô.
A sentença foi
proferida em 19 de setembro de 2005, quando Grau já estava no Supremo,
pela juíza Alexandra Fuchs de Araújo, de São Paulo. A juíza considerou
parcialmente procedente uma ação popular do advogado e ex-deputado Samir
Achôa contra contratos administrativos firmados entre o Metrô e
escritórios de advocacia, entre eles o de Eros Grau. Ele foi contratado,
entre 1992 e 1998, pelo critério da notória especialização, que
dispensaria o processo licitatório. Os valores pagos pelo Metrô ao
escritório de Grau somaram 4,8 milhões de reais. A sentença considerou
parte dos contratos ilegais. Entre esses, os que previam consultoria
verbal. “Como pode o Ministério Público, ou mesmo o Tribunal de Contas,
exercer o controle sobre o serviço prestado, se este foi verbal?”,
perguntou a juíza Fuchs de Araújo na sentença.
“A
sentença foi reformada na segunda instância”, disse Grau, manipulando o
cachimbo. “E é isso que conta nas democracias que consideram o trânsito
em julgado como a última palavra.” A mudança da sentença, no entanto,
foi feita quase quatro anos depois, em julho de 2009. O que significa
que Grau esteve cinco anos sub judice como ministro do Supremo. Nessa
situação, não se declarou suspeito quando foi relator de uma ação penal
pública muito semelhante, que questionava a legalidade da contratação
emergencial de advogados por uma prefeitura catarinense. O ministro
considerou a ação penal improcedente.
“Depois
que sair daqui vou advogar”, disse. “Mas não darei mais parecer
recebendo remuneração do poder público, porque a gente faz o que é
melhor, e dá nisso”, afirmou. O ministro já decidiu que voltará à banca
quando deixar a toga. “Estou alugando um escritório pequeno”, contou.
Grau
viveu um momento singular durante uma sessão da Segunda Turma. Deixando
os colegas espantados, quis trazer de volta à pauta uma questão votada,
inclusive por ele, decidida e proclamada em sessão anterior. Disse aos
pares que tinha obtido novas informações a respeito daquele caso, e que
talvez fosse interessante voltar a discuti-lo. Peluso, pasmo, não deixou
a sugestão prosperar. “Onde já se viu isso?”, comentou.
Cármen
Lúcia tentou algo parecido em maio: propôs uma segunda votação sobre
questão há pouco vencida. Sua explicação: “Temos que voltar ao caso,
porque o ministro Toffoli, que não podia votar, porque estava impedido,
acabou votando.” Marco Aurélio, escarninho, explicou que aquilo era
absolutamente impossível. A ministra não insistiu.
Eros
Grau candidatou-se a imortal na mais recente eleição da Academia
Brasileira de Letras, em junho, e foi derrotado. A sua obra é jurídica,
exceto pelo romance Triângulo no Ponto, do qual gosta, mas já gostou
mais. É uma ficção erótico-política. Ele reclama que a imprensa deu mais
atenção ao primeiro aspecto, quando o segundo é, em sua opinião, o mais
importante. É que o segundo não tem nenhuma frase como “Costa explora o
território, inspeciona os pelos pubianos, o pote de mel, acaricia as
nádegas estreitas, separa-as, experimenta um dedo amanteigado.” Poucos
romances do mesmo tamanho – 142 páginas – registram tantas referências
culturais. Só da pintura, Grau cita sete: Degas, Dali, Bosch, Goya,
Seurat, Monet, Manet. Do cinema, dezenas. Da literatura, centenas.
Triângulo
no Ponto gerou constrangimentos internos. Grau queria lançar a obra lá,
mas esbarrou no pudor calado, mas ativo, da ministra Ellen Gracie,
então presidente da casa. Gracie saiu do mutismo quando o ministro Marco
Aurélio disse a ela, para chocar, que estava lendo a obra erótica de
Eros. “Eu não acredito, ministro”, ela respondeu, olhando-o de cima.
Quando terminou a leitura, Marco Aurélio, com a intenção de chocá-la,
deu seu veredito sobre o romance: “É fino na forma e grosso no
conteúdo.” Maior rubor a corte jamais viu.
“Aprendi
muito aqui no Supremo – e mais da vida do que do direito”, disse Eros
Grau, fazendo um balanço antecipado. “Fiquei mais tolerante e prudente.
Entendi que é grave e sublime tomar decisões que vão ser determinantes
na vida de outras pessoas.” Autor de votos polêmicos e retoricamente
trabalhados – que às vezes ele mesmo considera maçantes – Grau levou
alguma irreverência para o Tribunal. É comum dizer a assessoras “não me
telefonem e não me encham o saco na próxima meia hora” – e a atender
carinhosamente ligações de Tânia, sua mulher. “Amo você, princesa da
minha vida”, diz ele ao telefone para todos ouvirem.
Data Venia, o Supremo
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