“A existência em Deus implica necessariamente a
escravidão de tudo abaixo dele. Assim se Deus existisse, só haveria um
meio de servir a liberdade humana: seria o de deixar de existir.”
Mikhail Bakunin Há duas maneiras de estudar e procurar resolver o
problema da existência de Deus.
A primeiro consiste em eliminar a
hipótese Deus do campo das conjecturas plausíveis ou necessárias, por
meio de uma explicação clara e precisa, isto é, por meio de uma
exposição de um sistema positivo do Universo, das suas origens, dos seus
desenvolvimentos sucessivos, dos seus fins. Esta exposição inutilizaria
a ideia de Deus e destruiria antecipadamente a base metafísica em que
se apoiam os teólogos e os filósofos espiritualistas. Dado, porém, o
estado atual dos conhecimentos humanos, em tudo o que tem sido
demonstrado ou passa a demonstrar-se, verificado ou verificável, somos
forçados a concluir que nos falta esta exposição e que não existe um
sistema positivo do Cosmos.
Existem, é certo, várias hipóteses
engenhosas que não se chocam com o razão; sistemas mais ou menos
aceitáveis que se apoiam numa série de investigações, que se baseiam na
multiplicidade de observações contínuas e que dão um caráter de
probabilidade impressionante. Também se pode afirmar, sem receio de ser
desmentido, que esses sistemas, essas hipóteses, suportam vantajosamente
as asserções deístas. Mas a falar a verdade, não há, sobre este posto,
senão teses que não possuem ainda o valor da exatidão cientifica; — cada
um, no fim das contas, tem a liberdade de preferir tal ou qual sistema a
um outro que lhes é oposto; e a solução do problema assim apresentado
afigura-nos, pelo menos na atualidade, cheio de reservas.
Os adeptos de
todas as religiões aproveitam assim as vantagens que lhes oferece o
estudo deste problema, bem árduo e bem complexo, não para o resolver por
meio de afirmações concretas ou de raciocínios admissíveis, mas
tão-somente para perpetuar a dúvida no espírito de seus
correligionários, que é, para eles, o ponto de capital importância.
E
nesta luta titânica entre o materialismo e o deísmo, luta em que as duas
teses opostas se empenham e se reforçam para conseguir o triunfo, os
deístas recebem rudes golpes; e, conquanto se encontrem numa postura de
vencidos, ainda tem a petulância de se apresentar à multidão ignara como
dignos cantores da vitória! Uma prova concludente do seu procedimento
baixíssimo encontramo-la na maneira como se exprimem nos jornais da sua
devoção; e é com essa comédia que procuram manter, com cajado de pastor,
a imensa maioria do rebanho. Também é isto que desejam ardentemente
esses maus pastores.
Apresentação do Problema em Termos Precisos
Todavia, há uma segunda maneira de estudar e de tentar a resolução da
inexistência de Deus: consiste em examinar a existência de Deus que as
religiões apresentam à adoração dos crentes. Suponhamos que se nos
depara um indivíduo sensato e refletido, que admite a existência de Deus
— um Deus que não está envolto em nenhum mistério, um Deus que não se
ignora nenhuma particularidade, um Deus que lhe confiou todo o seu
pensamento e lhe transmitiu todas as suas confidências, e que nos diz: —
Ele fez isto e aquilo, e ainda isto e aquilo.
Ele tem precedido e
falado com tal fim e com tal razão. Ele quer tal coisa, mas também quer
tal outra coisa. Ele recompensará tais ações, mas punirá tais outras.
Ele fez isto e quer aquilo, porque é infinitamente sábio, infinitamente
justo, infinitamente poderoso, infinitamente bom! Ah! Que felicidade!
Ora aqui está um Deus que se faz conhecer. Abandona o império do
inacessível, dissipa as nuvens que o rodeiam, desce das alturas,
conversa com os mortais, expõe-lhes o seu pensamento, revela-lhes a sua
vontade e confia a alguns privilegiados a missão de espalharem a sua
Doutrina, de propagarem a sua Lei, de a representarem enfim, cá em
baixo, com plenos poderes para mandarem no Céu e na Terra.
Este Deus não
é, com certeza, o Deus Força, Inteligência, Vontade, Energia, que, como
tudo o que é Energia, Vontade, Inteligência, Força, pode ser
alternadamente, segundo as circunstancias e, por consequência,
indiferentemente, bom ou mau, útil ou inútil, justo ou iníquo,
misericordioso ou cruel.
Este Deus é o Deus em que tudo é perfeição e
cuja existência não é nem pode ser compatível — visto que ele é
perfeitamente sábio, justo, bom, misericordioso — senão com um estado de
coisas criado por ele e no qual se afirmariam a sua infinita justiça, a
sua infinita sabedoria, o seu infinito poder, a sua infinita bondade e a
sua infinita misericórdia. Este Deus é o Deus que, por meio de
catecismo, nos insuflam no cérebro quando somos crianças; é o Deus vivo e
pessoal, em honra do qual se erguem templos, a quem se rezam orações em
borda, por quem se fazem sacrifícios estéreis e a quem pretendem
representar, na Terra, todos os clérigos, todas as castas sacerdotais.
Este Deus não é o “desconhecido”, essa força enigmática, essa potência
impenetrável, essa inteligência incompreensível, essa energia
incognoscível, esse princípio misterioso: hipótese, enfim, que no meio
da impotência para explicar o “como” e o “porquê” das coisas, o espírito
do homem aceita complacente. Este Deus também não é o Deus especulativo
dos metafísicos: é o Deus que os seus representantes nos tem descrito
abundantemente e luminosamente detalhado. É o Deus das religiões, e como
estamos na França, é o Deus dessa religião que a quinze séculos domina o
nossa história: a religião católica ou cristã. É o Deus que nego e que
vou discutir.
É o Deus que estudaremos, se quisermos obter, desta
exposição filosófica, algum proveito e algum resultado prático. Quem é
Deus? Visto que os encarregados de seus negócios no Terno tiveram a
amabilidade de no-lo descrever com toda a pompa e luzimento,
aproveitemos a fineza e examinemo-lo de perto, detidamente: para
discutir uma coisa, é preciso, igualmente, conhecê-la bem. Com um gesto
potente e fecundo, este Deus fez todas as coisas do nada: o ser do
não-ser.
E, por sua própria vontade, substituiu o movimento pela
inércia, a vida universal pela morte universal. É um Deus Criador! Este
Deus é o Deus que, terminada a obra da criação, em vez de volver à
inatividade secular, ficando indiferente à coisa criada, ocupa-se de sua
obra, interessando-se por ela, intervém nela quando o julga necessário,
rege-a, administra-a, governa-a: é um Deus Governador ou Providência.
Este Deus é o Deus arvorado em Tribunal Supremo, obriga, depois da
morte, a comparecer à sua presença todos os indivíduos. Uma vez aí,
julga-as segundo os atos de suas vidas; pesa, na balança, as suas boas e
más ações e pronuncia, em último extremo — sem apelo nem agravo — a
sentença que fará do réu, pelos séculos dos séculos, o mais feliz ou o
mais desgraçado dos seres: É um Deus Justiceiro ou Magistrado.
Logo,
este Deus possui todos os atributos; e não é somente bom: é a Bondade
Infinita; não é somente misericordioso: é o Misericórdia Infinita; não é
somente poderoso: é o Poder Infinito; não é somente sábio: é a
Sabedoria Infinita. Em conclusão: tal é o Deus que eu nego e que por
doze provas diferentes (em rigor bastaria uma só), vou demonstrar a
inexistência. Divisão do Problema Dividi os meus argumentos em três
séries: a primeira trataria particularmente do Deus-Criador e
compor-se-á de seis argumentos; o segundo ocupar-se-á do Deus-Governador
ou Providência, e contém quatro argumentos; a terceira apresentará o
Deus-Justiceiro ou
Magistrado, em dois argumentos. Em suma, seis
argumentos contra o Deus-Criador, quatro contra o Deus-Governador e dois
argumentos contra o Deus-Justiceiro. Estes doze argumentos constituem
doze provas da inexistência de Deus. Com este plano das minhas
demonstrações será mais fácil seguir o curso do meu trabalho.
Primeira
série de argumentos: contra o Deus criador 1º argumento: O gesto criador
é inadmissível Que se entende por criar? É tomar materiais diferentes,
separados, mas que existem, e, valendo-se de princípios experimentados e
aplicando-lhes certas regras conhecidas, aproximá-los, agrupá-los,
associá-los, ajustá-los, para fazer qualquer coisa deles? Não! Isso não é
criar. Exemplos: podemos dizer que uma casa foi criada?
Não, foi
construída; podemos dizer que um móvel foi criado? Não, foi fabricado;
podemos dizer que um livro foi criado? Não, foi composto e depois
impresso. Assim, pegar materiais que já existem e fazer qualquer coisa
com eles não é criar. Que é, pois, criar? Criar… com franqueza,
encontro-me indeciso para poder explicar o inexplicável, definir o
indefinível. Procurei, contudo, fazer-me compreender. Criar é tirar
qualquer coisa do nada; é, com nada, fazer qualquer coisa do todo; é
formar o existente do não-existente.
Ora, eu imagino que é impossível
encontrar-se uma única pessoa dotada de razão que conceba e admita que
do nada se possa tirar e fazer qualquer coisa. Suponhamos um matemático.
Procurai o calculador mais autorizado; colocai-o diante de uma lousa e
pedi-lhe que escreva zero sobre zeros. Terminada a operação,
solicitai-lhe que os multiplique da forma que entender, que os divida
até se cansar, que faça enfim toda a sorte de operações matemáticas, e
haveis de ver como ele não extrairá, desta acumulação de zeros, uma
única unidade. Com nada, nada se pode fazer; de nada, nada se obtém. É
por isso que o famoso aforismo de Lucrécio ex nihilo nihil é de uma
certeza e de uma evidência manifesta.
O gesto criador é um gesto
impossível de admitir, é um absurdo. Criar é, pois, uma expressão
místico-religiosa, que pode ter algum valor aos olhos das pessoas a que
agrada crer naquilo que não compreendem e a quem a fé que se impõe tanto
mais quanto menos o percebem. Mas devemos convir que a palavra criar é
uma expressão vazia de sentido para todos os homens cultos e sensatos,
para quem uma palavra só tem valor quando representa uma realidade ou
uma possibilidade. Consequentemente, a hipótese de um ser
verdadeiramente criador é uma hipótese que a razão repudia.
O ser
criador não existe, não pode existir. 2º argumento: O “puro espírito”
não podia determinar o Universo Aos crentes que, a despeito de todo o
raciocínio, se obstinam em admitir a possibilidade da criação, direi
que, em todo o caso, é impossível atribuir esta criação ao seu Deus.
O
Deus deles é puro espírito. Portanto, é inteiramente impossível
sustentar-se que o puro espírito, o imaterial, tenha podido determinar o
Universo, o Material. Eis o porquê: O puro espírito não está separado
do universo por uma diferença de grau, de quantidade, mas sim por uma
diferença de natureza, de qualidade. De maneira que o puro espírito não
é, nem pode ser, uma ampliação do Universo, assim como o Universo não é,
nem pode ser, uma redução do puro espírito.
Aqui a diferença não é
somente uma distinção; é uma oposição: oposição de natureza — essencial,
fundamental, irredutível, absoluta. Entre o puro espírito e o Universo
não há somente um fosso mais ou menos largo e profundo, fosso que possa,
a rigor, encher-se ou franquear-se. Não. Entre o puro espírito e o
Universo há um verdadeiro abismo, duma profundidade e de uma extensão
tão imensos, que por colossais que sejam os esforços que se empreguem,
não há nada nem ninguém que consiga enchê-lo ou franqueá-lo.
Reportando-me ao meu raciocínio, desafio o filósofo mais sutil, bem como
o matemático mais consumado, a estabelecer uma relação, qualquer que
ela seja (e, com a mais forte razão, uma relação tão direta quanto
estreita, como a que liga a causa ao efeito) entre o puro espírito e o
universo. O puro espírito não suporta nenhuma aliança material. O puro
espírito não tem forma nem corpo, nem linha, nem matéria, nem
proporções, nem extensão, nem dureza, nem profundidade, nem superfície,
nem volume, nem cor, nem som, nem densidade. Ora, no Universo, tudo é
forma, corpo, linho, matéria, proporção, extensão, dureza, profundidade,
superfície, volume, cor, som, densidade.
Como admitir que isto tenha
sido determinado por aquilo? Impossível. Chegando a este ponto da minha
demonstração, a conclusão seguinte: Vimos que a hipótese de um Deus
verdadeiramente criador é inadmissível; que persistindo mesmo na crença
desse poder, não pode admitir-se que o Universo, essencialmente
material, tenha sido determinado por um puro espírito, essencialmente
imaterial. Mas se os crentes se obstinam em afirmar que foi o seu Deus o
criador do Universo, nos impõe-se o dever de lhes fazer esta pergunta:
segundo a hipótese Deus, onde se encontrava a Matéria, na sua origem, no
seu princípio?
De duas, uma: ou a matéria estava fora de Deus, ou era o
próprio Deus (a não ser que lhe queiram dar um terceiro lugar). No
primeiro caso, se a matéria estava fora de Deus, Deus não teve
necessidade de criá-la, visto que ela já existia; e, se ela coexistia
com Deus, estava concomitantemente com ele, do que se depreende que Deus
não é o criador. No segundo caso, se a matéria não estava fora de Deus,
encontrava-se no próprio Deus.
E, daqui, tiro a conclusão seguinte: 1º
Que Deus não era puro espírito, porque encerrava em si uma partícula de
matéria — e que partícula! A totalidade dos mundos materiais! 2º Que
Deus, encerrando em si próprio a matéria, não teve a necessidade de
criá-la, porque ela já existia. Assim, existindo a matéria, Deus não fez
mais do que retirá-la de onde estava; e, neste caso, a criação deixa de
ser um ato de verdadeira criação para se reduzir a um ato de
exteriorização. Nos dois casos não existe, pois, criação.
3º argumento: O
perfeito não pode produzir o imperfeito Estou plenamente convencido de
que se eu fizer a um religioso a pergunta: “Pode o imperfeito produzir o
perfeito?”, ele responderia sem vacilar: — Não, o imperfeito não pode
produzir o perfeito! Pelas mesmas razões, e com a mesma força de
exatidão, eu posso afirmar — O perfeito não pode produzir o imperfeito!
Mais: entre o perfeito e o imperfeito não há somente uma diferença de
grau, de quantidade, mas uma diferença de qualidade, de natureza, uma
oposição essencial, fundamental, irredutível, absoluta. E mais ainda:
entre o perfeito e o imperfeito não há somente um fosso, mais ou menos
largo e profundo, mas um abismo tão vasto e tão estonteante, que ninguém
o pode franquear ou entulhar.
O perfeito é o absoluto, o imperfeito o
relativo. Em presença do perfeito que é tudo, o relativo, o contingente
não é nada; em presença do perfeito, o relativo não tem valor, não
existe. E nem o talento de um matemático e nem o gênio de um filósofo
serão capazes de estabelecer uma relação entre o relativo e o absoluto: a
fortiori sustentamos a impossibilidade de evidenciar, neste caso, a
rigorosa concomitância que deve necessariamente unir a Causa ao Efeito.
É, portanto, impossível que o perfeito haja determinando o imperfeito.
Além disso, há uma relação direta, fatal e até matemática entre uma obra
e seu autor: tanto vale a obra quanto vale o autor, tanto vale o autor
quanto vale a obra. E pela obra que se conhece o autor, como é pelo
fruto que se conhece a árvore.
Se eu examino um texto mal redigido, em
que se abundam os erros de ortografa e as frases são mal construídas, o
estilo é pobre e frouxo, as ideias raras e banais, e os conhecimentos
inexatos, eu sou incapaz de atribuir este péssimo escrito a um burilador
de frases, a um dos mestres da literatura. Se observo um desenho
malfeito, em que as linhas estão mal traçadas, violadas as regras do
perspectiva e da proporção, jamais me acudirá o pensamento de atribuir
este esboço rudimentar a um professor, a um grande mestre, a um grande
artista. Bem à menor hesitação direi: isto é obra de um aprendiz, de uma
criança, certo de que pela obra se conhece o artista. Ora, a natureza é
bela, o Universo é grandioso.
E eu admiro apaixonadamente — tanto o que
mais admiro — os esplendores e as magnificências que nos oferecem estes
espetáculos incessantes. Mas, por muito entusiasmado que eu seja das
belezas naturais, e por grande que seja a homenagem que eu lhes tribute,
não me atrevo o afirmar que o Universo é uma obra sem defeitos,
irrepreensível, perfeita. E não acredito que haja alguém que me
desminta. Sim, o Universo é uma obra imperfeita.
Consequentemente, digo:
há sempre, entre uma obra e seu autor, uma relação rigorosa, íntima,
matemática. Ora, se o Universo é uma obra imperfeita, o autor desta obra
não pode ser senão imperfeito. Esse silogismo leva-me a admitir a
imperfeição de Deus, e por consequência a negá-lo. Mas eu posso ainda
raciocinar assim: ou não é Deus o autor do Universo (exprimo desta forma
a minha convicção), ou o é, na suposição dos religiosos.
Neste caso,
sendo o universo uma obra imperfeita, vosso Deus, ó crente, é também
imperfeito. Silogismo ou dilema, a conclusão do raciocínio é esta: o
perfeito não pode determinar o imperfeito. 4º argumento: O ser eterno,
ativo, necessário, não pode, em nenhum momento, ter estado inativo ou
ter estado inútil Se Deus existe é eterno, ativo e necessário. Eterno? —
É-o por definição. É a sua razão de ser. Não se pode conceber que ele
esteja enclausurado nos limites do tempo. Não se pode imaginar como
tendo tido começo e venha a ter fim. Não pode haver aparição e
desaparição.
É de sempre. Ativo? — É, e não pode deixar de ser. Segundo
os religiosos, foi sua atividade que engendrou tudo quanto existe, como
foi a sua atividade que se afirmou pelo gesto mais colossal e majestoso
que imaginar se pode: a criação dos mundos. Necessário? — É-o e não pode
deixar de ser, visto que sem a sua vontade, nada existiria: ele é o
autor de todas as coisas, o ponto inicial de onde saiu tudo, a fonte
única e primeira de onde tudo emanou. Bastando-se a si próprio, dependeu
de sua vontade que tudo fosse tudo ou que fosse nada. Ele é, portanto:
eterno, ativo e necessário.
Mas eu pretendo e vou demonstrar que se Deus
é eterno, ativo e necessário, também deve ser eternamente ativo, e
eternamente necessário. E que, por consequência, ele não pôde, em nenhum
momento, ter sido inativo ou inútil, e que enfim, ele jamais criou.
Negar que Deus seja eternamente ativo equivale o dizer que nem sempre o
foi, que chegou a sê-lo, que começou a ser ativo, que antes de o ser não
o era. Dizer que foi pela criação que ele manifestou a sua atividade é
admitir, ao mesmo tempo, que por milhares e milhares de séculos que
antecederam a ação criadora, Deus esteve inativo.
Negar que Deus seja
eternamente necessário equivale a admitir que ele nem sempre o foi, que
chegou a sê-lo, que começou o ser necessário e que antes de o ser não o
era. Dizer que a criação proclama e testemunha a necessidade de Deus
equivale a admitir, ao mesmo tempo, que, durante milhares e milhares de
séculos, que seguramente precedeu a ação criadora, Deus era inútil. Deus
ocioso e preguiçoso! Deus inútil e supérfluo!
Que triste postura para
um ser essencialmente necessário. É preciso, pois, confessar que Deus é
de todo o tempo ativo e de todo o tempo necessário. Mas então Deus não
pôde criar, porque a ideia de criação implica, de maneira absoluta, a
ideia de começo, de origem. Uma coisa que começou é porque nem sempre
existiu. Existiu necessariamente num tempo em que, antes de o ser, não o
era. E, curto ou longo, este tempo foi que precedeu a coisa criada; é
impossível suprimi-lo, visto que, de todos os modos, ele existe.
Assim,
temos de concluir:
a) Ou Deus foi eternamente ativo e eternamente
necessário, e só chegou a sê-lo por causa da criação (e, se é assim,
antes da criação faltavam a este Deus dois atributos: a atividade e a
necessidade; este Deus era um Deus incompleto; era só um pedaço de Deus e
mais nada, que teve necessidade de criar para chegar a ser ativo e
necessário, e completar-se).
b) Ou Deus é eternamente ativo e
eternamente necessário, e neste caso tem criado eternamente.
A criação é
eterna, e o Universo jamais começou — existiu em todos os tempos, é
eterno como Deus, é o próprio Deus, com o qual se confunde. E, sendo
assim, o Universo não teve princípio — não foi criado. Em conclusão: No
primeiro caso, Deus antes da criação não era ativo nem era necessário:
era um Deus incompleto, quer dizer, imperfeito, e, portanto, não
existia. No segundo caso, sendo Deus eternamente ativo e eternamente
necessário, não pôde chegar a sê-lo, como não pôde criar.
É impossível
sair daqui. 5º argumento: O ser imutável não criou Se Deus existe, é
imutável, não se desfigura e nem se pode desfigurar. Enquanto que, na
natureza, tudo se modifica, se metamorfoseia, se transforma; que nada é
definitivo, mas que chega a sê-lo Deus, ponto fixo, imóvel no tempo e no
espaço, não está sujeito a nenhuma modificação, não se transforma, nem
pode transformar-se. É hoje o que era ontem, será amanhã o que é hoje. E
tanto faz procurá-lo nos séculos passados, como nos séculos futuros:
ele é, e será constantemente idêntico em si. Deus é imutável.
No
entanto, eu sustento que, se ele criou, não é imutável, porque, neste
caso, transmudou-se duas vezes. Determinar-se a querer é mudar de
posição. Ora, é evidente que há mudança entre o ser que quer uma coisa e
o que, querendo-a, a põe em execução. Se eu desejo e quero o que eu não
desejava e nem queria a quarenta e oito horas, é porque se produziu em
mim, ou a minha volta, uma ou várias circunstâncias que me levaram a
querê-lo. Este novo desejo ou querer constitui uma modificação que não
se pode por em dúvida, que é indiscutível.
Paralelamente: agir, ou
determinar-se a agir, é modificar-se. Esta dupla modificação — querer e
agir — é tanto mais considerável e saliente quando é certo que se trata
de uma resolução grave, de uma ação importante. Deus criou, dizeis vós,
crentes. Então modificou-se duas vezes: a primeiro, quando se determinou
a criar; a segunda, quando resolveu por em prática sua determinação,
completando o gesto criador. Se ele se modificou duas vezes, não é
imutável. E, se não é imutável, não é Deus — não existe.
O ser imutável
não criou. 6º argumento: Deus não criou sem motivo; mas é impossível
encontrar um único motivo que o levasse a criar De qualquer forma que se
pretende examiná-la, a criação é inexplicável, enigmática, falha de
sentido. Há uma coisa que salta à vista de todos: se Deus criou, como
vós dizeis, não pôde ter realizado este ato grandioso — cujas
consequências deviam ser, fatalmente, proporcionais ao próprio ato, e
por conseguinte incalculáveis — sem que fossem determinado por uma razão
de primeiro ordem.
Pois muito bem. Qual foi esta razão? Porque motivo
tomou Deus a resolução de criar? Que móbil o impulsionaria a isto? Que
desejo germinaria em seu cérebro? Qual seria o seu intuito? Que ideia o
perseguiria? Que fim perseguiria ele? Multiplicais, nesta ordem de
ideias, as perguntas; gravito, conforme quiserdes, em torno deste
problema; examinai-o em todos os seus aspectos e em todos os sentidos, e
eu desafio seja quem for a que o resolve em outro sentido que não seja o
das incoerências. Por exemplo: Eis uma criança educada na religião
cristã. O seu catecismo afirmou-lhe, e os seus mestres confirmam, que
foi
Deus que a criou e a colocou no mundo. Suponhamos que a criança faz a
si própria a pergunta: porque é que Deus me criou e me lançou no
mundo?, e que quer obter uma resposta judiciosa, racional. Nunca obterá.
Suponhamos ainda que a criança, confiando na experiência e no saber de
seus educadores, persuadida do caráter sagrado de que eles — padres ou
pastores — estão revestidos, possuindo luzes especiais e graças
particulares; convencido de que, pela sua santidade, estão mais próximos
de Deus e, portanto, melhores iniciados que elas nas verdades
reveladas; suponhamos que esta criança tem a curiosidade de perguntar
aos seus mestres por que e para que Deus a criou e a pôs no mundo, e eu
afirmo que os mestres são incapazes de contestar a essa simples
interrogação com uma resposta plausível, sensata.
Não lhe poderão dar,
porque, em verdade, ela não existe. Mas, rodeemos bem a questão e
aprofundemos o problema. Com o pensamento, examinaremos Deus antes da
criação. Tomemo-lo mesmo no seu sentido absoluto. Está completamente só;
bastando-se a si próprio. E perfeitamente sábio, perfeitamente feliz,
perfeitamente poderoso. Ninguém lhe pode acrescentar sabedoria, ninguém
lhe pode aumentar a felicidade, ninguém lhe pode fortificar o poderio.
Este Deus não experimenta nenhum desejo, visto que a sua felicidade é
infinita.
Não pode perseguir nenhum fim, visto que nada falta à sua
perfeição. Não pode ter nenhum intuito, visto que nada falta ao seu
poder. Não pode determinar-se a fazer seja o que for, visto que não tem
nenhuma necessidade. Eia! Filósofos profundos, pensadores sutis,
teólogos prestigiosos, respondei a esta criança que vos interroga e
dizei-lhe por que é que Deus a criou e lançou no mundo! Eu estou
tranquilo. Vós não lhe podeis responder, a não ser que lhe digais: “Os
mistérios de Deus são impenetráveis”! — e aceitais esta resposta como
suficiente. E fareis bem, abstendo-vos de lhes dar outra resposta,
porque esta outra resposta — previno-vos caritativamente — cava a ruína
de vosso sistema e o derribamento de vosso Deus.
A conclusão impõe-se,
lógica, impiedosa: Deus, se criou, criou sem motivos, sem saber por que,
sem ideal. Sabeis onde nos conduzem as consequências de tal conclusão?
Vamos vê-las. O que diferencia os atos de um homem dotado de razão dos
atos de um louco, o que determina que um seja responsável e o outro
irresponsável, é que um homem dotado de razão sabe sempre — ou pode
chegar o sabê-lo — quando procede, quais são os móbiles que o
impulsionam, quais são os motivos que o levam a praticar aquilo que
pensava.
Quando se trata de uma ação importante, cujas consequências
podem hipotecar gravemente as suas responsabilidades, é preciso que o
homem entre na posse de sua razão, se concentre, se entregue a um sério
exame de consciência, persistente e imparcial, exame que, pelas suas
recordações, reconstitua o quadro dos acontecimentos de que ele foi
agente. Em resumo, é preciso que ele procure reviver as horas passadas
para que possa discernir quais foram as causas e o mecanismo dos
movimentos que o determinaram a obrar. Frequentemente, não pode
vangloriar-se das causas que o impulsionaram, e que, amiúde, o levam a
corar de vergonha.
Mas, quaisquer que sejam os motivos, nobres ou vis,
generosos ou grosseiros, ele chega sempre o descobri-los. Um louco, pelo
contrário, precede sem saber por que; e, uma vez realizado o ato, por
grandes que sejam as responsabilidades que dele possam deriva-se,
interrogai-o, encerrai-o, se quiserdes, numa prisão, e apertai-o com
perguntas: o pobre demente não vos balbuciará senão coisas vagas,
verdadeiras incoerências.
Portanto, o que diferencia os atos de um homem
sensato de um homem insensato, é que os atos dos primeiros podem
explicar-se, tem uma razão de ser, distinguem-se neles a causa e o
efeito, a origem e o fim, enquanto que os atos do segundo não se podem
explicar, porque um louco é incapaz de discernir a causa e o que o levam
a realizá-los. Pois bem! Se Deus criou sem motivo, sem fim, procedeu
como um louco. E, neste caso, a criação aparece-nos como um ato de
demência. Duas objeções capitais Para terminar com o Deus da criação,
parece-me indispensável examinar duas objeções. Os leitores sabem muito
bem, sobre este assunto, abundam objeções. Por isso quando falo em duas
objeções, refiro-me a duas objeções capitais clássicas.
Estas duas
objeções têm tanto mais importância quanto é certo que, com a beldade da
discussão, se podem englobar todas as outras nestas duas. 1ª objeção:
“Deus escapa-vos!” Dizem-me: “O senhor não tem o direito de falar de
Deus segundo a forma que o faz.
O senhor não nos apresenta senão um Deus
caricaturado, sistematicamente reduzido a proporções que seu cérebro
abarca. Esse Deus não é nosso Deus. O nosso Deus não o pode o senhor
concebê-lo, visto que lhe é superior, escapando por isso à suas
faculdades intelectuais. Fique sabendo que o que é fabuloso, gigantesco
para o homem mais forte e mais inteligente, é para Deus um simples jogo
de crianças.
Não se esqueça que a Humanidade não pode mover-se no mesmo
plano que a Divindade. Não perca de vista que é tão impossível ao homem
compreender a maneira como Deus procede, como os minerais imaginar como
vivem os vegetais, como os vegetais conceber o desenvolvimento dos
animais, e como os animais saber como vivem e operam os homens. Deus
paira a umas alturas que o senhor é incapaz de atingir ocupa montanhas
inacessíveis ao senhor.
Qualquer que seja o grau de desenvolvimento de
uma inteligência humana; por muito importante que seja o esforço
realizado por essa inteligência; seja qual for a persistência deste
esforço, jamais poderá elevar-se até Deus. Lembre-se, enfim, que, por
muito vasto que seja o cérebro do homem, ele é finito, não podendo, por
consequência, conceber Deus, que é infinito. Tenha pois a lealdade e a
modéstia de confessar que não lhe é possível compreender nem explicar,
não o cabe o direito de negar”. Eu respondo aos deístas: Dais-me
conselhos de humildade que estou disposto a aceitar. Fazeis me lembrar
que sou um simples mortal, o que legitimamente reconheço e não procuro
olvidar-me. Dizeis-me que Deus me ultrapassa e que o desconheço.
Seja.
Consinto em reconhecê-lo; afirmo mesmo que o finito não pode compreender
o infinito, porque é uma verdade tão certa e tão evidente, que não está
em meu ânimo fazer-lhe qualquer oposição. Vede, pois, até aqui estamos
de acordo, com o que espero, ficareis muito contentes. Somente, senhores
deístas, permiti que, por meu turno, eu vos dê os mesmos conselhos de
humildade, para terdes o franqueza de me responder estas perguntas: Vós
não sois homens como a mim?
A vós, Deus não se depara como para a mim?
Esse Deus não vos escapa como a mim? Tereis vós a pretensão de moverdes
no mesmo plano da divindade? Tereis igualmente a mania de pensar e a
loucura de crer que, de um voo, podereis chegar às alturas que Deus
ocupa? Sereis presunçosos ao extremo de afirmar que o vosso cérebro, o
vosso pensamento que é finito, possa compreender o infinito? Não vos
faço a injuria, senhores deístas, de acreditar que sustentais uma
extravagância venal.
Assim, pois, tende a modéstia e a lealdade de
confessar que, se me é impossível compreender e explicar Deus, vós
tropeçais no mesmo obstáculo. Tende, enfim, a probidade de reconhecer
que, se eu não posso conceber nem explicar Deus, não o podendo,
portanto, negar, a vós, como a mim, não vos é permitido concebê-lo e não
tendes, por consequência, o direito de afirmá-lo.
Não julgueis, no
entanto, que, por causa disto, ficamos na mesma situação que antes.
Foste vós que, primeiramente, afirmastes a existência de Deus; deveis,
pois, ser os primeiros a pôr de parte vossas afirmações. Sonharia eu,
alguma vez, com negar a existência de Deus, se vós não tivésseis
começado a afirmá-la? E se, quando eu era criança, não me tivessem
imposto a necessidade de acreditar nele? E se, quando adulto, não
tivesse ouvido afirmações nesse sentido? E se, quando homem, os meus
olhos não tivessem constantemente contemplado os templos elevados a esse
Deus? Foram as vossas afirmações que provocaram as minhas negações.
Cessai de afirmar que eu cessarei de negar.
2ª objeção: “Não há efeito
sem causa” A segunda objeção parece-nos mais invulnerável. Muitos
indivíduos consideram-na ainda sem réplica. Esta objeção provém dos
filósofos espiritualistas: Não há efeito sem causa. Ora, o Universo é um
efeito; e, como não há efeito sem causa, esta causa é Deus. O argumento
é bem apresentado; parece, mesmo, bem construído e bem carpintejado. O
que resto saber é se tudo quanto ele encerra é verdadeiro. Em boa
lógica, este raciocínio chama-se silogismo. Um silogismo é um argumento
composto por três proposições: a maior, a menor e a consequência, e
compreende duas partes: as premissas, constituídas pelas duas primeiras
proposições e a conclusão, representada pela terceira.
Para que um
silogismo seja inatacável, é preciso: 1º que a maior e a menor sejam
exatas; 2º que a terceira proposição dimane logicamente as duas
primeiras. Se o silogismo dos filósofos espiritualistas reúne estas duas
condições, é irrefutável e nada mais me resta senão aceitá-lo; mas, se
lhe falta uma só dessas condições, então o silogismo é nulo, sem valor, e
o argumento destrói-se por si mesmo.
A fim de conhecer o seu valor,
examinemos as três proposições que o compõe. 1ª proposição (maior): “Não
há efeito sem causa”. Filósofos, tendes razão. Não há efeito sem causa:
nada mais exato. Não há, não pode haver, efeito sem causa. O efeito não
é mais do que a continuação, o prolongamento, o limite da causa. Quem
diz efeito diz causa. A ideia de efeito provoca, necessariamente e
imediatamente a ideia de causa. Se, ao contrário, se concebe um efeito
sem causa, isto seria o efeito do nada, o que equivaleria a crer no
absurdo.
Sobre esta primeira proposição, estamos, pois, de acordo. 2ª
proposição (menor): “Ora, o Universo é um efeito”. Antes de continuar,
peço explicações: Sobre o que se apoia esta afirmação tão franca e tão
categórica? Qual o fenômeno, ou conjunto de fenômenos, na qual a
verificação, ou conjunto de verificações, que permitem uma afirmação tão
rotunda? Em primeiro lugar, comecemos suficientemente o Universo?
Temo-lo estudado profundamente, temo-lo examinado, investigado,
compreendido, para que nos seja permitido fazer afirmações desta
natureza? Temos penetrado nas suas entranhas e explorado os seus espaços
incomensuráveis? Já descemos a profundeza do oceano? Conhecemos todos
os domínios do Universo?
O Universo já nos declarou todos os seus
segredos? Já lhe arrancamos todos os véus, penetramos todos os seus
mistérios, descobrimos todos os seus enigmas? Já vimos tudo, apalpamos
tudo, sentimos tudo, entendemos tudo, observamos tudo, afrontamos tudo?
Não temos nada mais que aprender? Não nos resta nada mais que descobrir?
Em resumo, estamos em condições de fazer uma apreciação formal do
Universo? Supomos que ninguém ousará responder afirmativamente a todas
estas questões; e seria digno de lástima todo aquele que tivesse a
tenebridade e a insensatez de afirmar que conhece o Universo.
O
Universo! — quer dizer não somente este ínfimo planeta que habitamos e
sobre o qual se arrastam as nossas carcaças; não somente os milhões de
astros que conhecemos e que fazem parte do nosso sistema solar, ou que
descobrimos com o decorrer dos tempos, mas ainda, esses mundos, aos
quais, com conjectura, conhecemos a existência, mas cuja distancia e o
número restam incalculáveis!
Se eu dissesse “o universo é uma causa”,
tenho a certeza que desencadeariam imediatamente contra mim as vaias e
os protestos de todos os religiosos; e, todavia, a minha afirmação não
era mais descabelada que a deles. Eis tudo. Se me inclino sobre o
Universo, se o observo quanto me permitir o homem contemporâneo, os
conhecimentos adquiridos, verificarei que é um conjunto
inacreditavelmente complexo e denso, uma confusão impenetrável e
colossal de causas e de efeitos que se determinam, se encadeiam, se
sucedem, se repetem e se interpenetram. Observarei que o todo leva uma
cadeia sem fim, cujos elos estão indissoluvelmente ligados.
Certificar-me-ei de que cada um destes elos é, por sua vez, causa e
efeito: efeito da causa que o determinou, causa do efeito que se lhe
segue. Quem poderá dizer: “Eis aqui o primeiro elo — o elo causa”? Quem
poderá afirmar: “Eis o último elo — elo efeito”? E quem poderá ainda
dizer: “Há necessariamente uma causa número um e um efeito número…
último”? À segunda proposição, “ora, o Universo é um efeito”, falta-lhe
uma condição indispensável: a exatidão.
Por consequência, o famoso
silogismo não vale nada. Acrescento mesmo que, no caso em que esta
segunda proposição fosse exata, faltaria estabelecer, para que a
conclusão fosse aceitável, se o Universo é o próprio efeito de uma Causa
única, de uma Causa primeira, da Causa das Causas, de uma Causa sem
Causa, da Causa eterna.
Espero, sem me inquietar, esta demonstração,
porque é uma demonstração que se tem desejado muitas vezes, sem que
ninguém no-la desse; é também uma demonstração, da qual se pode afirmar,
sem receio de desmentido, que jamais poderá se estabelecer de uma forma
séria, positiva e científica. Por último: admitindo que o silogismo
fosse irrepreensível, ele poderia voltar-se facilmente contra a tese do
Deus-Criador, colocando-se a favor da minha demonstração.
Expliquemos:
“não há efeito sem causa!” — Seja! — “o Universo é um efeito!” — De
acordo! — “Logo este efeito tem uma causa e é esta causa que chamamos
Deus! — Pois seja! Mas não vos entusiasmeis, deístas; escutai-me, porque
ainda não triunfastes. Se é evidente que não há efeito sem causa, é
também rigorosamente exato que não há causa sem efeito. Não há, não pode
haver, causa sem efeito. Que diz causa, diz efeito. A ideia de causa
implica necessariamente e chama a ideia de efeito. Porque uma causa sem
efeito seria uma causa do nada, o que seria tão absurdo quanto o efeito
do nada. Que fique, pois, bem entendido: não há causa sem efeito. Vós,
deístas, afirmais, enfim, que o Deus-Causa é eterno.
Desta afirmação
concluo que o Universo-Efeito é igualmente eterno, visto que a uma causa
eterna, corresponde, indubitavelmente, a um efeito eterno. Se pudesse
ser de outro modo, quer dizer, se o Universo tivesse começado, durante
os milhares e milhares de séculos que, talvez, precederam a criação do
Universo, Deus teria sido uma causa sem efeito, o que é impossível; uma
causa de nada, o que seria absurdo. Em conclusão: se Deus é eterno, o
Universo também o é: e, se o Universo também é eterno, é porque ele
nunca principiou, é que jamais foi criado. É clara a demonstração?
Segunda série de argumentos: Contra o Deus-governador 7º argumento: O
governador nega o criador São muitíssimos — formam legiões — os
indivíduos que, apesar de tudo, se obstinam em crer. Concebo que, a
rigor, se possa crer na existência de um criador perfeito, como também
concebo que se possa crer na existência de um governador necessário.
Mas, o que me parece impossível é que, ao mesmo tempo, se possa crer
racionalmente num e noutro, porque estes dois seres perfeitos se excluem
categoricamente: afirmar um é negar o outro; proclamar a perfeição do
primeiro é confessar a inutilidade do segundo; sustentar a necessidade
do segundo é negar a perfeição do primeiro.
Por outras palavras: pode-se
crer na perfeição ou na necessidade do outro; mas o que não tem a menor
sombra de lógica é crer na perfeição dos dois. É preciso, pois,
escolher qualquer deles. Se o Universo criado por Deus tivesse sido uma
obra perfeita; se, no seu conjunto, como nos seus pormenores, esta obra
não apresentasse nenhum defeito; se o mecanismo desta criação gigantesca
fosse irrepreensível; se a sua perfeição fosse de modo que a ninguém
despertasse a menor suspeita de qualquer desarranjo ou de qualquer
avaria; se, enfim, a obra fosse digna deste operário genial, deste
artista incomparável, desse construtor fantástico a que chamam Deus, a
necessidade de um governador nunca se teria sentido. É que é lógico
supor que, uma vez a formidável máquina fosse posta em movimento, nada
mais haveria a fazer do que abandoná-la a si própria, visto que os
acidentes seriam impossíveis.
Não seria preciso este engenheiro, este
mecânico, para vigiar a máquina, para a dirigir, para a reparar, para a
afinar, enfim. Não, este engenheiro seria inútil, este mecânico não
teria razão de ser. E, neste caso, o Deus-Governador era também inútil.
Se o Governador existe, é porque a sua intervenção, a sua vigilância são
indispensáveis. A necessidade do Governador é como que um insulto, como
um desafio lançado ao Criador; a sua intervenção corrobora o
desconhecimento, a incapacidade, a impotência desse criador.
O
Deus-Governador nega a perfeição do Deus-Criador. 8º argumento: A
multiplicidade dos deuses prova que não existe nenhum deles O
Deus-Governador é, e não pode deixar de ser, poderoso e justo,
infinitamente poderoso e infinitamente justo. Ora, eu afirmo que a
multiplicidade das religiões atesta que falta a este Deus poder ou
justiça, se não, ambas as coisas. Não falemos dos deuses mortos, dos
cultos abolidos, das religiões esquecidas, que se contam por milhares e
milhares. Falemos somente das religiões de nossos dias. Segundo os
cálculos mais bem fundados, há, presentemente, oitocentas religiões, que
se disputam o império das mil e seiscentas milhões de consciências que
povoam o nosso planeta.
Ninguém pode duvidar que cada uma destas
religiões reclama para si privilégio de que só o seu Deus é que é o
verdadeiro, autêntico, o indiscutível, o único, e que todos os outros
Deuses são Deuses risíveis, Deuses falsos, Deuses de contrabando e de
pacotilha, e que, portanto, é uma obra piedosa combatê-los e
pulverizá-los. A isto, ajunta: Se em vez de oitocentas religiões, não
houvesse senão cem ou dez, ou duas, o meu argumento teria o mesmo valor.
Pois bem, afirmo novamente que a multiplicidade destes Deuses atesta
que não existe nenhum, certificando, ao mesmo tempo, que Deus não é
todo-poderoso nem sumamente justo.
Se fosse poderoso teria podido falar a
todos os indivíduos com a mesma facilidade com que falou isoladamente a
alguns. Ter-se-ia mostrado, ter-se-ia revelado a todos sem empregar
mais esforços do que o que empregou para se apresentar a poucos. Um
homem — qualquer que seja — não pode mostrar-se nem falar senão a um
número reduzido de indivíduos: os seus órgãos vocais têm uma
persistência que não pode exceder certos limites. Mas Deus… Deus pode
falar a todos os indivíduos — por muito grande que seja o número — com a
mesma facilidade que falaria a uns poucos. Quando se eleva, a voz de
Deus pode e deve perpetuar-se nos quatro pontos cardeais!
O verbo divino
não conhece distâncias nem obstáculos. Atravessa os oceanos, escala as
alturas, franqueia os espaços, sem a menor dificuldade. E visto que ele
quis — é a religião que o afirma — falar com os homens, revelar-se-lhes,
confiar-lhes os seus desejos, indicar-lhes a sua vontade, fazer-lhes
conhecer a sua lei, bem teria podido fazê-lo a todos e não a um punhado
de privilegiados. Mas Deus não fez assim, visto que uns o negam, outros o
ignoram, e outros, enfim, opõe tal Deus a tal outro Deus dos seus
concorrentes.
Nestas condições não será mais sensato pensar que ele não
falou a ninguém, e que as múltiplas revelações que me atribuem, não são,
senão, múltiplas imposturas, ou arma que, se ele falou a uns poucos, é
porque era incapaz de falar com todos? Sendo assim, eu acuso-o de
impotência. E se não quiserdes que o acuse de impotência, acuso-o de
injustiça. Que pensar, com efeito, de um Deus que se mostra a um
reduzido número e que se esconde das outras? Que pensar de um Deus que
fala para uns e que, para outros, guarda o mais profundo silêncio?
Não
esqueçais que os representantes desse Deus afirmam que ele é o pai de
todos: e que todos, qualquer que seja o seu título ou grau, são os
filhos bem amados desse Pai que reina lá no céu! Pois, muito bem, que
pensais desse pai que, exuberante da ternura para alguns privilegiados,
os desperta, revelando-se-lhes evitando-se as angustias da dúvida,
arrancando-o das torturas da hesitação, enquanto que, violentamente,
condena a maioria de seus filhos aos tormentos da incerteza?
Que pensais
desse pai que, no meio de seu esplendor de Majestade, se mostra a uma
parte de seus filhos, enquanto que, para a outra, fica envolto nas mais
profundas trevas? Que pensais desse pai que, exigindo de seus filhos a
prática de um culto, com o seu contingente de respeitos e adorações,
chama só alguns deles para escutarem a sua palavra de Verdade, enquanto
que, com um propósito deliberado, nega aos demais esta distinção, este
insigne favor? Se julgais que este pai é justo e bom, não vos
surpreendas com a minha apreciação, que é muito diferente: A
multiplicidade de religiões proclama que a Deus faltou poder ou justiça.
Ora, Deus deve ser infinitamente poderoso e infinitamente justo — são
os religiosos que o afirmam. E se lhe falta um destes dois atributos —
poder ou justiça — não é perfeito: não sendo perfeito, não tem razão de
ser, não existe. A multiplicidade dos Deuses e das religiões demonstra
que não existe nenhum deles. 9º argumento: Deus não é infinitamente bom:
é o inferno que o prova O Deus-Governador ou Providência é, deve ser,
infinitamente bom, infinitamente misericordioso. Mas a existência do
Inferno demonstra-nos que não é assim.
Atentai bem ao meu raciocínio:
Deus podia — porque é livre — não nos ter criado; mas criou-nos. Deus
podia — porque é todo poderoso — ter-nos criado todos bons; mas
criou-nos bons e maus. Deus podia — porque é bom — admitir-nos todos,
após a morte, no seu Paraíso, contentando-se, como castigo, com o tempo
de sofrimento e atribulações que passamos na Terra. Deus podia, em suma —
porque é justo — não admitir em seu Paraíso senão os bons, recusando
ali lugar aos perversos; mas, neste caso, deveria destruir totalmente os
maus com a morte, e jamais condená-lo aos sofrimentos do Inferno. E
isto porque quem pode criar, pode destruir; quem tem poder para dar a
vida, também tem o poder para tirá-la, para aniquilá-la.
Vejamos: vós
não sois deuses. Vós não sois infinitamente bons, nem infinitamente
misericordiosos. Sem vos atribuir qualidades que não possuís, eu tenho a
certeza de que, se estivesse em vossas mãos — sem que isso vos exigisse
um grande esforço, e sem que, de aí, resultasse para nós algum prejuízo
moral ou material — evitar a um ser humano uma lágrima, uma dor, um
sofrimento, eu tenho a certeza, repito, que o faríeis imediatamente, sem
vacilar nem titubear. E, todavia, vós não sois infinitamente
misericordiosos.
Sereis, por acaso, melhores e mais misericordiosos que o
Deus dos cristãos? Porque, enfim, o Inferno existe. A Igreja faz alarde
dele: é a horrível visão, com a ajuda da qual semeia o pavor no cérebro
das crianças e dos velhos, e entre os pobres de espírito e os medrosos;
é o espectro que se estala na cabeceira dos moribundos, na hora em que a
morte os arrebata toda a coragem, toda a energia, toda a lucidez.
Pois
bem, o Deus dos cristãos, esse Deus que dizem cheio de piedade, de
perdão, de indulgência, de bondade e de misericórdia, precipita para
todo o sempre, uma parte dos seus filhos, num antro de torturas as mais
cruéis, e de suplicias as mais horrendas. Oh! Como ele é bom! Como ele é
misericordioso! Vós conheceis certamente estas palavras das escrituras:
“Muitos serão os chamados, mas poucos os eleitos”.
Bem abusos do seu
valor, estas palavras significam que o número de salvos será ínfimo,
enquanto que o número de condenados há de ser considerável. Esta
afirmação é de uma crueldade tão monstruosa que os deístas têm procurado
dar-lhe um outro sentido. Mas pouco importa: o Inferno existe, e é
evidente que os condenados — muitos ou poucos — aí sofrerão os mais
dolorosos tormentos. Agora, pergunto eu: a quem podem beneficiar os
tormentos dos condenados? Aos eleitos? — Evidente que não.
Por
definição, os eleitos serão os justos, os virtuosos, os fraternais, os
compassivos: e seria absurdo supor que a sua felicidade, já
incomparável, pudesse ser aumentada com o espetáculo de seus irmãos
torturados. Aos próprios condenados? — também não, porque a igreja
afirma que o suplicio desses desgraçados jamais acabará; e que, pelos
séculos dos séculos, os seus sofrimentos serão tão horripilantes como no
primeiro dia. Então?…
Então, aparte os eleitos e aparte os condenados,
não há senão Deus, não pode haver senão ele. É, pois, Deus, quem obtém
benefícios aos sofrimentos dos condenados? É, pois, ele, esse pai
infinitamente bom, infinitamente misericordioso, que se regozija
sadicamente com as dores e que voluntariamente condena os seus filhos?
Ah! Se isto é assim, esse Deus aparece-nos como carrasco mais feroz,
como o inquisidor mais implacável que imaginar se pode. O inferno prova
que Deus não é bom nem misericordioso — a existência de um Deus de
bondade é incompatível com a existência do inferno.
E de duas uma: ou o
inferno não existe, ou Deus não é infinitamente bom. 10º argumento: O
problema do mal É o problema do mal que me fornece material para o meu
último argumento contra o Deus-Governador, e, simultaneamente, para o
meu primeiro argumento contra o Deus-justiceiro. Eu não digo que a
existência do mal — mal físico e mal moral — seja incompatível com a
existência de Deus; o que digo é que é incompatível com o mal a
existência de um Deus infinitamente poderoso e infinitamente bom. O
argumento é conhecido, ainda que o não seja senão pelas múltiplas
refutações — sempre impotentes — que se lhes tem apresentado.
Remontam-no a Epicuro.
Tem, portanto, mais de vinte séculos de
existência: mas, por velho que seja, conserva ainda todo o seu vigor.
Esse argumento é o seguinte: O mal existe. Todos os seres sensíveis
conhecem o sofrimento. Deus, que tudo sabe, não pode ignorá-lo. Pois
bem, de duas, uma: Ou Deus quer suprimir o mal e não pode; ou Deus pode
suprimir o mal e não quer. No primeiro caso, Deus pretendia suprimir o
mal, porque era bom, porque compartilhava das dores que nos aniquilam,
porque participava dos sofrimentos que suportamos. Ah! Se isso
dependesse dele! O mal seria suprimido e a felicidade reinaria sobre a
Terra… Mais uma vez Deus é bom, mas não pode suprimir o mal — não é todo
poderoso. No segundo caso, Deus podia suprimir o mal.
Bastava que o
quisesse para que o mal fosse abolido. Ele é todo poderoso e não quer
suprimir o mal; portanto, não é infinitamente bom. Aqui, Deus é todo
poderoso, mas não é bom; acolá, Deus é bom mas não é todo poderoso. Para
admitir a existência de Deus, não basta que ele possua uma destas
perfeições: poder ou bondade. É indispensável que possua as duas. Este
argumento nunca foi refutado. Entendamo-nos: ao dizer nunca foi refutado
quero dizer que, racionalmente, ninguém a pode ainda refutar, embora
tenham ensaiado isso muitas vezes. O ensaio de refutação mais conhecido é
este: Vós apresentais em termos errôneos o problema do mal. É um
equivoco atirar para cima de Deus toda a responsabilidade. Bem, é certo
que o mal existe — é inegável; mas só o homem é responsável por ele.
Deus não quis que o homem fosse um autômato, uma máquina, que obedece
cega e fatalmente.
Ao criá-lo, Deus deu-lhe completa liberdade — fez
dele um ser inteiramente livre; e, conforme com essa liberdade, que
generosamente lhe outorgou, concedeu-lhe a faculdade de fazer dela, em
todas as circunstâncias, o uso que quisesse. E se o homem, em vez de
fazer uso nobre e justiceiro deste bem inestimável, faz dele um uso
criminoso, porque seria injusto: devemos acusar mais é o homem, o que é
razoável. Eis a clássica objeção. Que é que ela vale? Nada! Eu
explico-me: façamos distinção entre o mal físico e o mal moral. O mal
físico é a doença, o sofrimento, o acidente, a velhice, com o seu
cortejo de vícios e enfermidades; é a morte, que implica perda de seres
que amamos.
Há crianças que nascem e que morrem, dias depois de seu
nascimento, e cuja vida foi um sofrimento permanente. Há uma enorme
multidão de seres humanos para quem a vida não é mais do que uma longa
série de dores e aflições: seria preferível que não tivessem nascido. E,
na ordem natural, as epidemias, os cataclismos, os incêndios, as secas,
as inundações, as tempestades, a fome, constituem uma soma de trágicas
fatalidades que originam a dor e a morte. Quem ousará dizer que o homem é
o responsável por este mal físico? Quem não compreende que se Deus
criou o Universo, dotando-o com as formidáveis leis que o regem, o mal
físico não é senão uma destas fatalidades que resultam de um jogo normal
das forças da natureza? Quem não compreende que o autor responsável
destas calamidades é, com toda a certeza, quem criou o Universo e quem o
governa? Suponho que, sobre este ponto, não há contestação possível.
Deus que governa o Universo, é o responsável pelo mal físico. Esta
resposta seria suficiente, e, no entanto, vou continuar. Eu entendo que o
mal moral é tão imputável a Deus quanto o mal físico. Se Deus existe,
foi ele que presidiu à organização do mundo físico. Por consequência, o
homem, vítima do mal moral, como do mal físico, não pode ser responsável
por um nem por outro. Vamos, pois, ver agora na terceira e última série
de argumento, o que tenho a dizer sobre o mal moral. Terceira serie de
argumentos:
Contra o Deus justiceiro 11º argumento: Irresponsável, o
homem não pode ser castigado nem recompensado Que somos nós? Presidimos
às condições de nosso nascimento? Fomos consultados sobre se queríamos
nascer? Fomos chamados a traçar o nosso destino? Tivemos, sobre qualquer
destas questões, voz ou voto? Se cada um de nós tivesse voz e voto para
escolher, desde o nascimento, a saúde, a força, a beleza, a
inteligência, a coragem, a bondade, etc…, seguramente que todos estes
benefícios nos teríamos outorgado.
Cada um de nós seria, então, em
resumo de todas as perfeições, uma espécie de Deus em miniatura. Mas,
afinal, que somos nós? Somos aquilo que queríamos ser? Não,
incontestavelmente. Na hipótese Deus, somos — visto que foi ele que nos
criou — aquilo que ele quis que fôssemos. Deus é livre, não podia nos
ter criado. Ou podia ter-nos criado menos perversos, porque é bom.
Ou,
então, podia ter-nos criado virtuosos, bem comportados, excelentes,
enchendo-nos de todos os dotes físicos, intelectuais e morais, porque é
todo poderoso. Pela terceira vez: Que somos nós? Somos o que Deus quis
que fôssemos, visto que ele criou-nos segundo o seu capricho e o seu
gosto. Se se admite que Deus existe e que foi ele que nos criou, não se
pode dar outra resposta a pergunta “quem somos nós?”. Com efeito, foi
Deus que nos deu os sentidos, as faculdades de compreensão, a
sensibilidade, os meios de perceber, de sentir, de raciocinar, de agir.
Ele previu, quis determinar as nossas condições de vida; coordenou as
nossas necessidades, os nossos desejos, as nossas paixões, as nossas
crenças, as nossas esperanças, os nossos ódios, as nossas ternuras, as
nossas aspirações. Toda a máquina humana corresponde àquilo que ele
quis. Ele arranjou e concebeu todas as peças do meio em que vivemos,
preparando todas as circunstâncias que, a cada momento, dão um assalto a
nossa vontade, determinando as nossas ações. Perante este Deus
formidavelmente armado, o homem é, portanto, irresponsável.
O que não
está sob a dependência de ninguém é inteiramente livre; o que está um
pouco sob dependência de um outro é um pouco escravo, e livre só para a
diferença; o que está muito sob a dependência de um outro é muito
escravo, e não é livre senão para o resto; enfim, o que esta em absoluto
sob a dependência de outro, é totalmente escravo, não gozando de
nenhuma liberdade. Se Deus existe, é nesta última postura — a do escravo
— que o homem se encontra em relação a Deus; e sua escravidão é tanto
maior quanto maior for o espaço entre o Senhor e ele. Se Deus existe, só
ele é que sabe, pode, quer, só ele é livre.
O homem nada sabe, nada
pode, nada quer, a sua dependência é completa. Se Deus existe, ele é
tudo — o homem, nada. O homem, submetido a esta escravidão, aniquilado
sob a dependência, plena e inteira de Deus, não pode ter nenhuma
responsabilidade. E, se o homem é irresponsável, não pode ser julgado.
Todo o julgamento implica um castigo ou uma recompensa; mas os atos de
um irresponsável, não possuindo nenhum valor moral, estão isentos de
qualquer responsabilidade.
Os atos de um irresponsável podem ser úteis
ou prejudiciais. Moralmente não são bons nem maus, como não são
meritórios nem repreensíveis; julgados equitativamente, não podem ser
recompensados nem castigados. Portanto, Deus, erigindo-se em justiceiro,
castigando e recompensando o homem irresponsável, não é mais do que um
usurpador, que se arroga um direito arbitrário, usando dele contra toda a
justiça.
Do que fica escrito, concluo:
a) Que a responsabilidade do mal
moral é imputável a Deus, como igualmente lhe é imputável a
responsabilidade do mal físico;
b) Que Deus é um juiz indigno, porque,
sendo o homem irresponsável, não pode ser castigado nem recompensado.
12º argumento: Deus viola as regras fundamentais de equidade Admitamos
por um instante que o homem é responsável, e veremos como, dentro desta
hipótese, a justiça divina viola constantemente as regras mais
elementares da equidade. Se se admite que a prática de justiça não pode
ser exercida sem uma sanção; que o magistrado tem, por mandato, fixá-la;
e que há uma regra, segundo o qual o sentimento deve pronunciar-se
unanimemente, é evidente que, da mesma forma, tem de haver uma escala de
mérito e culpabilidade, assim como uma escala de recompensas e de
castigos.
Admitindo este princípio, o magistrado que melhor pratica a
justiça é aquele que proporciona o mais exatamente possível a recompensa
ao mérito e o castigo a culpabilidade. E o magistrado ideal, impecável,
perfeito, seria aquele que estabelece uma relação rigorosamente
matemática entre o ato e a sanção. Eu penso que esta regra elementar de
justiça é acerta por todos. Pois bem, Deus, distribuindo o Céu e o
Inferno, finge conhecer esta regra e viola-a.
Qualquer que seja o mérito
do homem, esse mérito é limitado (como o próprio homem); e, no entanto,
a sanção da recompensa não o é: o Céu não tem limites, ainda que não
seja senão pelo seu caráter de perpetuidade. Qualquer que seja a
culpabilidade do homem, esta culpabilidade é limitada (como o próprio
homem); e, no entanto, o castigo não o é: o Inferno o é: o Inferno é
ilimitado, ainda que não seja senão pelo seu caráter de perpetuidade.
Há, pois, uma grande desproporção entre o mérito e a recompensa, entre a
falta e a punição: o mérito e a falta são limitados, enquanto que a
recompensa e o castigo são ilimitados. Deus viola, pois, as regras
fundamentais da equidade. Finda aqui a minha tese.
Resta-me apenas
recapitulá-la e conclui-la. Recapitulação Prometi uma demonstração
terminante, substancial, decisiva, da inexistência de Deus. Creio poder
afirmar que cumpri esta promessa. Não percais de vista que eu não me
propus dar-vos um sistema do Universo que tornasse inútil todo o recurso
à hipótese de uma Força sobrenatural, de uma Energia ou de uma Potência
extramundial, de um Princípio superior ou anterior do Universo. Tive a
lealdade, como era o meu dever, de vos dizer com toda a franqueza:
apresentado assim, o problema não admite, dentro dos conhecimentos
humanos, nenhuma solução definitiva; e que a única atitude que conheço.
PS. A visão do autor e de seu respectivo expositor no texto, não representam minha opinião pessoal. Creio em Deus e na validade de sua palavra. Acho, contudo que nenhum debate deve ser interdidato para o bem do esclarecimento da verdade. O respectivo texto foi retirado de uma lista de comentários do sitio Brasil 247 cujo link segue abaixo:
(http://www.brasil247.com/pt/247/midiatech/85950/M%C3%ADdia-proclama-somos-todos-Policarpos.htm?ls-acm0=20&f_comment_nickname=Jansen&recaptcha_challenge_field=03AHJ_VusWfl7amHW6uP8WoLZjC4e5AYqqQF9SHkURTAjJJ8Yxivuw-DbA1Xb8NjZFqOXs2UMTGEQss8CVVsyg_7MdG3bBHoN4S7cQhmlI1lLFbl38bpVSZMy8rp2IWI6xEqwt6IloA2Cf7jI-hsnJKY_2aRRYUXOpSw_rZdPlhsDBeuzFH8NB0x4&recaptcha_response_field=collapse+nyiodd&f_captcha_handler=ReCAPTCHA&acid=252235)