terça-feira, 30 de abril de 2013

O pai espiritual de Malafaia, Feliciano e Edir

Quem é o missionário canadense que trouxe a Teologia da Prosperidade ao Brasil.

Walter Robert McAlister

Walter Robert McAlister

Edir Macedo, Marco Feliciano e Silas Malafaia não se inventaram sozinhos. Eles pertencem a uma linhagem. Se você tiver de culpar alguém, pense num missionário canadense chamado Walter Robert McAlister, que trouxe a Teologia da Prosperidade no Brasil e pode ser definido como o pai espiritual desses meninos.
De uma família evangélica, McAlister foi pregar nas Filipinas, Hong Kong e Índia. Em 1959, veio ao Brasil. Morou em São Paulo e, em seguida, no Rio, onde se estabeleceu. Seguidor da Teologia da Prosperidade americana, especialmente do pioneiro televangelista Oral Roberts, logo viu uma oportunidade de se fazer notado no rádio. Em 1960, ganhou um programa chamado Voz da Nova Vida na Copacabana. Pouco depois comprou a Rádio Relógio, uma das primeiras emissoras evangélicas do Brasil.

Em 1961, deu forma ao culto que até hoje é praticado pelas agremiações evangélicas desse gênero: louvor, oferta, mensagem, oração e testemunho. Uma vez por ano, reunia seus fieis no Maracanãzinho. Como era inevitável, acabou na televisão, apresentando o show “Coisas da Vida”, na Tupi. Virou o “Bispo Roberto”. A Igreja de Nova Vida era um fenômeno.

Em busca de almas, McAlister atacava pesadamente a umbanda, o candomblé e demais religiões afro-brasileiras (a célebre maldição do Feliciano sobre a África não apareceu do nada). Espíritos do mal causavam doença, vício, pobreza, homossexualismo e adultério. Lançou um livro sobre uma suposta história de conversão de uma mãe de santo, libertada pelo “espírito santo”. Um de seus funcionários mais talentosos era um rapaz de 19 anos, Edir Macedo. Nos anos 70, Edir cresceu na foto, rompeu com o mentor e fundou a Cruzada do Caminho Eterno, embrião da Universal.

O canadense ainda veria a ascensão da IURD, batendo na mesma tecla da possessão demoníaca, do exorcismo e do dízimo. No início dos anos 80, talvez incomodado com a ascensão do ex-pupilo Edir, McAlister parou de pregar na TV, dizendo que ela “criava monstros”. Já era tarde demais.

McAlister morreu em 1993, do coração. Não deu tempo de testemunhar o surgimento de gigantes como a Internacional da Graça de Deus, Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra, Renascer em Cristo, entre outras – e nem a chegada de um legítimo representante da Teologia da Prosperidade à presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, o nosso querido Feliciano.

http://www.diariodocentrodomundo.com.br/o-pai-espiritual-de-malafia-feliciano-e-edir/

Garotinho dispara chumbo grosso contra a Globo

Rio 247 - Comprar uma briga com o toda-poderosa Globo é uma boa ou má escolha para um político que concorre ao governo do Rio de Janeiro? O deputado Anthony Garotinho (PR-RJ), que hoje lidera as pesquisas no estado, à frente do senador Lindbergh Farias (PT-RJ) e do vice-governador Luiz Fernando Pezão, do PMDB, já fez sua escolha. Dias depois de ser alvo de uma denúncia na revista Época (leia mais aqui), ele partiu com tudo para cima da Rede Globo e bateu pesado no império da família Marinho, ao discursar no plenário da Câmara dos Deputados. Defendeu a convocação da emissora pela Comissão da Verdade, denunciou uma suposta conta de João Roberto Marinho num paraíso fiscal e citou até o suposto envolvimento do diretor de jornalismo, Ali Kamel, no caso Banestado. "Pode vir quente que eu estou fervendo", disse o deputado, que é discípulo de Leonel Brizola, um dos poucos políticos brasileiros que ousou enfrentar a Globo – e venceu.

Abaixo, o discurso de Garotinho:

O SR. PRESIDENTE (Henrique Eduardo Alves) - Com a palavra o Deputado Anthony Garotinho, para uma Comunicação de Liderança, pelo Bloco PR.

O SR. ANTHONY GAROTINHO (Bloco/PR-RJ. Como Líder. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, meus colegas Deputados, no final de semana, fui surpreendido por uma matéria publicada na revista Época, de propriedade das Organizações Globo, uma verdadeira salada. A matéria não dizia coisa com coisa, tentando induzir o eleitor, como se eu tivesse feito alguma coisa errada ao alugar, com a quota parlamentar, um carro aqui em Brasília, para meu uso pessoal,de uma empresa que licitamente ganhou a concorrência na Prefeitura de Campos.

As Organizações Globo, Sr. Presidente, há muito tempo, têm essa mania de afrontar as pessoas, de mentir, de caluniar. Alguns recuam. Eu, como não devo nada à Globo e sei que aquela matéria é mentirosa, falsa e eleitoreira, quero fazer aqui um desafio aos autores da matéria e aos proprietários das Organizações Globo.
Sr. João Alberto Marinho, Sr. José Roberto Marinho — seu irmão —, quem comprou a TV Globo de São Paulo com uma procuração falsa foi o seu pai, não foi ninguém da família Garotinho, e ninguém toma atitude contra vocês porque neste País a Justiça tem medo das Organizações Globo. O processo se arrasta há anos, trocando de juiz para juiz, de desembargador para desembargador, e ninguém dá a sentença de uma televisão comprada com uma procuração falsa, Sr. Presidente.

Quero dizer mais: a família Garotinho, a D. Rosinha Garotinho, atacada injustamente na matéria; a minha filha, a Deputada Clarissa Garotinho; e eu fomos eleitos pelo povo. O que vocês têm vocês ganharam prestando favores à ditadura militar. Vocês ganharam canal de rádio e canal de televisão prestando serviços aos ditadores de plantão. 

Fala-se aí em convocar Fulano, Beltrano, para ir à Comissão da Verdade. Quem tem que ir à Comissão da Verdade explicar porque mentiram nas Diretas, quando tinha um comício em São Paulo e disseram que era comemoração do aniversário da cidade... O Deputado Arlindo Chinaglia sabe disso. Mentiram no Jornal Nacional.

Eu queria ir um pouquinho mais além. O Sr. João Roberto Marinho deveria explicar porque no ano de 2006 tinha uma conta em paraíso fiscal não declarada à Receita Federal, com mais de 100 milhões de reais, e porque a Receita Federal não fez nada em 2006. Deveria explicar mais: o Sr. Ali Kamel estava na lista dos que estavam com dinheiro no escândalo do BANESTADO. O Sr. Ali Kamel é o editor do Jornal Nacional, Diretor de Jornalismo da Globo

Olhem o rabo de vocês. Vocês não têm autoridade moral para criticar ninguém na política deste País, muito menos alguém que foi Prefeito da sua cidade duas vezes, Governador de Estado, Secretário de Estado três vezes, Deputado Estadual, Deputado Federal, minha esposa é Prefeita pela segunda vez, minha filha é Deputada, e eu moro na mesma casa em que nasci, na Rua Saturnino Braga, 44, no Bairro da Lapa. 
Então, estou hoje aqui indignado e peço que V.Exa. e os colegas votem o projeto de direito de resposta sumário, porque se não essa gente vai continuar fazendo isso. Mentem e daqui a 5 anos, nós vamos ganhar o direito de resposta. 

Se a Globo pensa que vai fazer comigo o que ela faz com Sérgio Cabral, com Eduardo Paes e aquele bando de frouxos do PMDB do Rio de Janeiro, que não aguentam uma notinha no Jornal Nacional, que não aguentam uma notinha na Coluna do Ancelmo Gois, estão muito enganados. Pode vir quente que eu estou fervendo.

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Se aprovada, a PEC 37 é um grande retrocesso



O ministério público está a quem das expectativas que temos acerca de sua atuação. Seus membros a grosso modo só gostam de fazer investigações midiáticas que rendem coberturas espalhafatosas em rede nacional de televisão que depois não correspondem ao esperado najustiça.
 
Frequentemente as cortes superiores de justiça, o STJ e o STF derrubam tais investigações, às vezes com fortes reprimendas ao modus operandi do MP. Seu membro mais representativo, pelo cargo que ocupa de PGR, Roberto Gurgel faz uma gestão catastrófica à frente da instituição, se utilizando de investigações para chantagear autoridades que têm prerrogativas de foro. Tudo isso ensejou a apresentação da PEC 37.

No entanto, com toda deficiência do MP, seria um retrocesso cassar-lhe os poderes de investigação dos quais se investiu mesmo a constituição não lhe conferindo essas atribuições.

Aos membros do MP é conferida pela constituição, INAMOVIBILIDADE. Significando que um procurador que estiver à frente de uma investigação, mesmo uma investigação que seja contrária ao interesse de um governante poderoso, como um presidente da República, um governador de Estado ou um ministro de uma corte de justiça, por exemplo, não poderá ser removido da investigação e nem transferido de um local onde está servindo para outro, em função da investigação que está fazendo desagradar aos investigados.

INDEPENDÊNCIA FUNCIONAL. Siginificando que o procurador diante de uma investigação não está subordinado a ninguém, nem mesmo ao chefe do ministério público, o Procurador Geral da República, podendo tomar os atos que quiser sem dá satisfação a quem quer seja durante o curso da investigação.

ISONÔMIA. Pode investigar a quem quiser, desde o mais humilde cidadão do povo ao mais poderoso político ou empresário.

Se os poderes de investigação passarem para os delegados de polícia, o presidente da República e os governadores de Estado influirão se quiserem na investigação.

Nenhum delegado de polícia é inamovível, independente funcionalmente, nem tem isonomia pra abrir investigação. O escândalo da quebra do sigilo telemático do governador Cid Gomes, do Estado do Ceará,  prova como uma investigação policial pode ficar ao sabor dos humores do governante.

O delegado que se recusar a aceitar a influência do governador nas decisões do inquérito poderá ser substituido já que não tem indepência funcional, transferido de uma delegacia para outra nos cafundós do Judas, já que não possui inamovibilidade, pode até ficar sem função administrativa, como retaliação por ter sido inconveniente aos interesses do governante. Por aí percebe-se que é inaceitável que esta famigerada PEC prospere.

quinta-feira, 25 de abril de 2013

Câmara de vereadores de Fortaleza aprova via em área de relevante interesse ecológico



O sistema político vigente no Brasil é de fazer corar em face de sua completa desmoralização pela falta de coerência partidária e de atuação de seus mais ilustres próceres que não escondem que são movidos pela participação no poder, de influir através de sinecuras estendidas a correligionários na máquina pública, em troca de apoio incondicional ao governante de plantão que estiver temporariamente comandando as ações do executivo independentemente da esfera de poder, seja municipal, estadual ou federal.

Tomemos como exemplo a câmara de vereadores de Fortaleza com relação a atual e a composição passada, com relação a prefeita Luizianne Lins e o prefeito em exercício Roberto Cláudio.

Todos os vereadores, exceto os do PT, por razões óbvias, que fizeram parte da base aliada de Luizianne Lins, hoje estão na base de apoio de Roberto Cláudio. Tudo aquilo que Luizianne considerava que não deveria ser votado e aprovado na câmara, foi obtido pela ex-prefeita, desde matérias que causaram imensas polêmicas, como as que a prefeita simplesmente determinou por uma questão de autoridade que não deveria e os vereadores aceitaram sem maiores discussões.

As mais simbólicas diz respeito ao meio ambiente especialmente com relação a área de preservação do Parque do Cócó que ensejou uma queda de braço entre a ex-prefeita e o governador Cid Gomes  que tem um projeto de mobilidade urbana associado as obras da copa para ser executado e que a base aliada de Luizianne sistematicamente boicotou e muito discutiu por ser um tema de relevante interesse social por envolver o meio ambiente.

Subitamente eis que esta mesma base aliada que está com Roberto Cláudio e na gestão Luizianne encontrou tantos obstáculos e entabulou inúmeros argumentos para justificar mais discussões aprovou de afogadilho na gestão Roberto Cláudio o mesmo projeto antes rejeitado na gestão Luizianne. Os mesmos vereadores que disseram não, agora dizem sim.

Isto rebaixa a política, a desqualifica porque demonstra que não há convicção nos argumentos dos edis e que estão na câmara não para discutirem com determinação e seriedade os assuntos pertinentes aos interesses da cidade.

O que norteia o caminho que eles seguem é o compartilhamento do poder, é ter cargos e sinecuras para distribuirem com eleitores e garantirem mais um mandato.

Pouco estão se importando em terem apresentado um argumento para serem contra a aprovação de uma matéria, recusando que fosse colocada em discussão e num giro de 360 graus voltando a aceitar a discussão e sua aprovação em curto espaço de tempo.

O inusitado está em constatar que se Roberto Cláudio quiser desaprovar tudo que foi aprovado por Luizianne na câmara de vereadores de Fortaleza, os mesmos vereadores que aprovaram, porque faziam parte da base aliada da ex-prefeita, desaprovarão porque fazem parte da base do prefeito em exercício Roberto Cláudio.

É ou não um sistema arcaico, ultrapassado, que não obriga que os parlamentares sigam uma linha programática baseada num mínimo de coerência não permitindo mudanças abruptas de posição, apenas determinante por quem esteja exercendo o poder?

Os vereadores que antes tinham uma posição contrária a aprovação desses projetos deveriam manter-se alinhados com essa posição sob pena de perderem os  mandatos por violarem sua honra em troca de espaço de poder e enxovalhar sua reputação sem nenhum trauma de consciência e sem dá nenhuma justificativa aos seus eleitores quer seja porque nada os obrigue a isso, quer porque achem que é algo insignificante, de somenos importância.

quarta-feira, 24 de abril de 2013

O juiz inglês versus os juízes brasileiros

 Por Por paulo Nogueira

Depois de ver Leveson comandar as discussões sobre a mídia inglesa, dói ver nosso STF.


Leveson em ação

DE LONDRES

Acompanhei, em Londres, o trabalho sereno, lúcido, inteligente do juiz Brian Leveson, incumbido de comandar as discussões sobre a mídia britânica.

Leveson, para lembrar, foi chefe de um comitê independente montado a pedido do premiê David Cameron depois que a opinião pública disse basta, exclamação, às práticas da mídia. Já havia um mal estar, parecido aliás com o que existe no Brasil, mas a situação ficou insustentável depois que se soube que um jornal de Murdoch invadira criminosamente a caixa postal do celular de uma garota de 12 anos sequestrada e morta. O objetivo era conseguir furos.

Leveson e um auxiliar interrogaram, sempre sob as câmaras de televisão, personagens como o próprio Cameron, Murdoch (duas vezes), editores de grande destaque, políticos e pessoas vítimas de invasão telefônica, entre as quais um número expressivo de celebridades.

Em seu relatório final, Leveson recomendou a criação de um órgão independente que fiscalize as atividades jornalísticas. Os britânicos entendem que a auto-regulação fracassou. O “interesse público” tem sido usado para encobrir interesses privados, e a “liberdade de expressão” invocada para a prática de barbaridades editoriais.

Um grupo de políticos conservadores publicou uma carta aberta que reflete o sentimento geral. “Ninguém deseja que nossa mídia seja controlada pelo governo, mas, para que ela tenha credibilidade, qualquer órgão regulador tem que ser independente da imprensa, tanto quanto dos políticos”, diz a carta.

Este Diário defende vigorosamente isso no Brasil, aliás: um órgão regulador independente — sem subordinação a governo nenhum e nem a políticos de qualquer naipe. Mas — vital — também independente das empresas de mídia. A Inglaterra marcha para isso, e a Dinamarca — ah, sempre a Escandinávia — já tem um sistema exemplar desses há anos. A auto-regulação é boa apenas para as empresas de mídia. Para a sociedade, como se observou na Inglaterra e como se observa no Brasil, pode ser muito danosa.

Você vê Leveson e depois vê nossos juízes do STF e o sentimento que resulta disso é alguma coisa entre a desolação e a indignação. Por que os nossos são tão piores?


Mello

Leveson, para começo de conversa, fala um inglês simples, claro, sem afetação e sem pompa. Não se paramenta ridiculamente para entrevistar sequer o premiê: paletó e gravata bastam. Ninguém merece a visão das capas que fizeram Joaquim Barbosa ser chamado, risos, de Batman.

Leveson guarda compostura, também. Se ele fosse a uma festa de um jornalista com um interesse tão claro nos debates que ele comanda, seria fatalmente substituído antes que a bagunça fosse removida pelas faxineiras.

Nosso ministro Gilmar Mendes foi, alegremente, ao lançamento do livro do colunista Reinaldo Azevedo, em aberta campanha para crucificar os réus julgados por Gilmar, e de lá saiu com um livro autografado que provavelmente jamais abrirá e com a sensação de que nada fez de errado.

Leveson também mede palavras. Há pouco tempo, nosso Marco Aurélio Mello disse que a ditadura militar foi um “mal necessário”. Mello defendeu uma ditadura, simplesmente – e ei-lo borboleteando no STF sem ser cobrado para explicar direito isso.

Necessário para quem? O Brasil tinha, em 1964, um presidente eleito democraticamente, João Goulart. Os americanos entendiam, então, que para cuidar melhor de seus interesses em várias partes convinha patrocinar golpes militares e apoiar ditadores que seriam fantoches de Washington.

Foi assim no Irã e na Guatemala, na década de 1950, e em países como o Brasil e o Chile, poucos anos depois. O pretexto era o “risco da bolchevização”. Uma pausa para risos.

Recapitulemos o legado do golpe: a destruição do ensino público, a mais eficiente escada para a mobilidade social. A pilhagem dos trabalhadores: foram proibidas greves, uma arma sagrada dos empregados em qualquer democracia. Direitos trabalhistas foram surrupiados, como a estabilidade.

De tudo isso nasceu uma sociedade monstruosamente injusta e desigual, com milhões de brasileiros condenados a uma miséria sem limites. Quem dava sustentação ideológica ao horror que se criava era o poderoso ministro da economia Delfim Netto. Ele dizia que era preciso primeiro deixar crescer o bolo para depois distribuir.

São Paulo, a minha São Paulo onde nasci e onde pretendo morrer, era antes da ditadura uma cidade dinâmica, empreendedora, rica – e bonita. Menos de 1% de sua população vivia em favelas. Com vinte anos de ditadura, já havia um enxame de favelas na cidade, ocupadas por quase 20% dos residentes.
Este o mundo que adveio do “mal necessário” defendido por Marco Aurélio Mello. Não tenho condições de avaliar se ele entende de justiça. Mas de justiça social ele, evidentemente, não sabe nada, e muito menos de história — a despeito de uma retórica pomposa, solene, pretensamente erudita e genuinamente arrogante.
Se a ditadura foi um mal necessário, aspas, Mello pode ser classificado como um mal desnecessário, exclamação.

terça-feira, 23 de abril de 2013

Onde foi parar o sonho do SUS?




Brasil - Le Monde Diplomatique - [Ana Maria Costa, Ligia Bahia e Mário Scheffer] Depois de tantas promessas frustradas de redenção da rede assistencial pública, a tendência de governantes tem sido delegar cada vez mais atribuições estatais à iniciativa privada. Essa inclinação privatizante não reverteu e nem sequer amenizou o quadro de dificuldades da população em utilizar os serviços de saúde.

No documentário Sicko, de Michael Moore, ao ser abordado sobre o fim hipotético do sistema universal de saúde inglês, o NHS, um dos entrevistados foi incisivo: “Haveria uma revolução”. Orgulho nacional britânico, homenageado na cerimônia de abertura da Olimpíada de Londres, o NHS sempre inspirou o Sistema Único de Saúde (SUS).

Mas, afinal, onde foi parar o sonho do SUS de uma cobertura pública universal que não deixaria, por definição, nenhuma pessoa sem atenção à saúde? Ao mesmo tempo que os cidadãos deveriam financiar o sistema por meio de impostos, de acordo com a capacidade contributiva, poderiam acessá-lo conforme a necessidade de saúde, não em função da possibilidade de pagar ou da inserção no mercado formal de trabalho. No sonho de tantos, inscrito na Constituição brasileira, o SUS seria a expressão de solidariedade que une todos os brasileiros, ricos e pobres, sadios e doentes, moradores dos centros e dos grotões, em resposta coletiva ao essencial do ser humano, a saúde.

No Brasil, onde as políticas sociais universais não chegaram a se consolidar, o SUS sucumbe às pressões dos que apostam na privatização, vindas tanto de setores situados à direita quanto à esquerda do espectro político-partidário.

A privatização da saúde sempre foi escamoteada no país, o que contribuiu para a demora de uma definição clara sobre o lugar que a coletividade deve confiar ao setor privado.

Durante a redemocratização, no processo constituinte, a plataforma conservadora dos grupos empresariais privados foi confrontada com a agenda reformista do movimento sanitário. Prevaleceu a concepção da relevância pública da saúde, mas o rótulo do “privado complementar” passou a abrigar segmentos empresariais de distintas naturezas e competências.

Um quarto de século depois permanece a confusão em torno da falsa unanimidade em defesa do SUS, reconstruída na ressaca após a derrota da regulamentação da Emenda Constitucional n. 29 e na atual campanha pelos 10% de recursos da União para a saúde. A bandeira por mais recursos públicos tremula também sob a ótica contábil de grupos privados e interesses corporativos, que historicamente nunca se colocaram ao lado da proteção social ampliada.

Depois de tantas promessas frustradas de redenção da rede assistencial pública, a tendência de governantes – que buscam responder às demandas por saúde dentro do limite de seus mandatos – tem sido delegar cada vez mais atribuições estatais à iniciativa privada. Essa inclinação privatizante não reverteu e nem sequer amenizou o quadro de dificuldades da população em acessar e utilizar os serviços de saúde.

Veja-se o exemplo da cidade de São Paulo: mesmo entregue em grande parte à iniciativa privada, a rede municipal de saúde exibia, ao final de 2012, fila de mais de 660 mil pedidos de consultas, exames e cirurgias. Acrescente-se o fato de que 60% dos paulistanos sofrem nas mãos de planos de saúde excludentes e de uma rede privada em colapso, saturada e incapaz de prestar bom atendimento.
Chegamos a uma forqueadura. Nem se consegue vislumbrar o SUS como um sistema único de qualidade nem há perspectiva de seguirmos para um modelo de saúde predominantemente privado, feito o norte-americano, chileno ou colombiano.

O impasse consiste na inversão entre necessidades de saúde e uso do fundo público. O Brasil tem um sistema público universal, mas são privados, em sua maior parte, os recursos alocados na saúde. Há uma desconexão entre os valores igualitários formais e as práticas sociais concretas de apropriação dos recursos assistenciais, um cenário totalmente incompatível com a efetivação de políticas de saúde universais. Enquanto nos países europeus e até mesmo nos Estados Unidos a parcela pública dos gastos com saúde só aumenta, no Brasil assiste-se ao crescimento das despesas privadas na medida da intensificação de incentivos à privatização.

Em 2013, aos 25 anos da Constituição de 1988, há muito a ser comemorado. Os preceitos legais do SUS não soçobraram durante o tsunamineoliberal, em razão da permanente resistência dos movimentos sociais contrários às mudanças do texto constitucional. Porém, fez água a expectativa de ultrapassagem do neoliberalismo por reformas estruturantes na saúde, a começar pela negação dos tão ansiados novos recursos federais que viriam com a regulamentação da EC n. 29.

Até hoje permanecem enigmáticos os argumentos que teriam convencido a base do governo no Congresso Nacional a não ampliar o financiamento do SUS. É certo que, naquela época, as denúncias de corrupção e a malfadada tentativa de atrelar a prorrogação da CPMF à saúde criaram um clima desfavorável ao aumento de gastos públicos. No entanto, nada disso justificaria o covarde posicionamento de partidos progressistas.

O desfecho desfavorável à legislação, após arrastada tramitação, por doze anos, deixou entidades do movimento social de orelha em pé. Por isso, nem foi grande surpresa a divulgação pela imprensa de uma reunião entre a presidente Dilma Rousseff, ministros e empresas de planos de saúde, em março de 2013, para tratar da concessão de mais subsídios e desonerações fiscais destinados à expansão do mercado de assistência médica suplementar.

A novidade foi a rápida e uníssona reação em defesa do SUS de dezenas de entidades como Cebes, Abrasco, CUT, Contag, conselhos profissionais e Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados. Possivelmente, o posicionamento contrário até mesmo de setores sociais que supostamente representam futuros candidatos à obtenção de planos privados de saúde para trabalhadores e segmentos sociais que ascenderam na pirâmide de renda espantou o fundamentalismo.

Planos privados florescem no momento em que as despesas públicas com a saúde são minguadas, no lastro da evolução do consumo e renda de estratos mais pobres da população, mas não resistirão a tensões macroeconômicas e não se alinharão a um sistema de saúde comprometido com a promoção da saúde, com a atenção primária, com os atuais desafios demográficos e epidemiológicos (nossos novos velhos e doentes), e com a incorporação e o uso racional de tecnologias.

A cobertura privada suplementar jamais será uniforme e continuada, pois há diferenças abissais entre os produtos vendidos; a pessoa sai do emprego que garantia o plano; há exclusão pecuniária (idosos e doentes são expulsos porque gastam muito com saúde); há rescisão de contratos que não interessam mais às operadoras; e a agência reguladora, capturada pelo mercado que deveria controlar, faz vistas grossas ao crescimento dos planos de baixo preço (com rede restrita de prestadores) e planos “falsos coletivos” (contratados por pessoa jurídica, a partir de duas pessoas, e que escapam da regulamentação e ofertam serviços ruins).

Jogar fermento com dinheiro público no desordenado mercado de planos de saúde pode render votos e cai bem com o discurso de que o SUS para todos é inviável e com a avaliação negativa de parte da sociedade, divorciada do sistema público. A lógica é antiga: em nome da limitada capacidade do Estado, propõe-se a transferir obrigações para o cidadão e o empregador que podem pagar pelo plano privado, empobrecendo a oferta e desidratando ainda mais o financiamento público do SUS.

As experiências negativas acumuladas com o atendimento dos planos de saúde desfazem ilusões de que o mercado, só o mercado, é capaz de resolver necessidades sociais. A proximidade e a desenvoltura de empresas com a cúpula do governo podem significar interferências permanentes na agenda pública da saúde.
Os passaportes dos empresários aos centros decisórios foram adquiridos em ambientes frequentados por médicos particulares dos dignitários da República e em fóruns corporativos do setor privado, mediante apoios políticos objetivos, inclusive com generosos financiamentos para campanhas eleitorais. Tais prerrogativas indicam que não se afugentou, definitivamente, a intenção de privatizar de vez o sistema de saúde brasileiro.

O que estará em jogo daqui em diante será o choque entre um projeto societário baseado na efetivação de direitos de cidadania e uma proposta de extensão da cobertura de planos de saúde. A “solução” privatizante empinou, revestida de forte teor pragmático e apelo eleitoral, adequada, portanto, à duração e continuidade dos mandatos governamentais. Sua concretude e aparente facilidade de aplicação contrapõem-se a um SUS tido como inerte, cada vez menos vigoroso.

Trata-se de uma falsa representação, segundo a qual o mercado é portador do progresso e das inovações tecnológicas e o sistema público não passa de um apanágio do atraso. Ao longo do tempo essa inclinação ideológica produziu uma ideia síntese: o sistema universal de saúde é impossível, e seus defensores, uns românticos desatualizados. Com os requerimentos do moderno individualismo, se não incomodarem, esses sonhadores devem ser tratados com condescendência, por serviços prestados no passado.

O grande desafio será questionar esse constructo, baseado nas certezas das preferências pela privatização, em um contexto de subfinanciamento do SUS. O sonho de o Brasil garantir a igualdade de acesso em saúde para todos que precisam, em qualquer lugar, a qualquer hora, só irá adiante se os fundos públicos ganharem aportes significativos, passando a financiar apenas serviços, equipamentos e redes, públicos e privados, porém absolutamente includentes e deliberadamente universais.

Resgatar o SUS como um bem comum a ser protegido requer mobilização e novos arranjos políticos capazes de confrontar a marcha triunfal do privado. A hora é de escolhas essenciais para o futuro da saúde no Brasil. Não desistiremos de seguir lutando por um sistema de saúde moderno e justo, controlado pelos usuários, trabalhadores e agentes públicos, que traga desenvolvimento ao país e tome um lugar de destaque na vida nacional.

Ana Maria Costa é presidente do Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes)

Ligia Bahia é professora do instituto de saúde coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

Mario Scheffer é professor do departamento de medicina preventiva da faculdade de medicina da Universidade de São Paulo (USP).

sábado, 20 de abril de 2013

A longa jornada dos direitos trabalhistas






Gilberto Maringoni – de São Paulo

No próximo dia 1º de maio, comemoram-se setenta anos da promulgação da Consolidação das Leis doTrabalho (CLT), uma das maiores conquistas sociais do país. Em tempos de baixos níveis de desemprego, aumento de renda e redução das desigualdades, vale a pena examinar a história dos direitos trabalhistas no Brasil. Ela tem início nos tempos da escravidão, quando os cativos lutavam contra a brutalidade de um regime que os privava de aspectos mínimos de dignidade humana

Está em curso uma mudança sensível na estratificação social brasileira. Quatro variáveis principais marcam esse panorama: uma situação de virtual pleno emprego, o aumento da participação dos salários na renda nacional, a elevação do valor real do salário mínimo e a expansão do crédito. Milhões de trabalhadores saíram de um quadro de pobreza extrema e paulatinamente se integram ao mercado de consumo.

Pelo menos duas dessas características têm raízes nas lutas sociais da primeira metade do século 20: o empregoformal – com carteira assinada – e o salário mínimo nacional. Fazem parte do longo caminho pela conquista dos direitos trabalhistas, que muitas vezes se confunde com a própria demanda coletiva pela democracia e por melhores condições de vida.

QUATRO SÉCULOS DE ESCRAVIDÃO O Brasil, como se sabe, tem sua história marcada por quase quatro séculos de escravidão, durante os quais falar de direitos do trabalho era pouco mais que obra de ficção. Desprovido da prerrogativa básica da cidadania – a liberdade –, o cativo não figurava sequer em nossa primeira Constituição. Inspirada em ideais iluministas, ela apresenta o que seriam direitos políticos sem concretizar nenhum direito social. Descreve os membros da população como “cidadãos”. Seu artigo 1º assim classifica o país:

“O Império do Brasil é a associação política de todos os cidadãos brasileiros. Eles formam uma nação livre, e independente, que não admite com qualquer outra laço algum de união, ou federação, que se oponha à sua independência”.

A Carta repele a censura à livre manifestação do pensamento, “reconhece e garante o direito de intervir todo cidadão nos negócios da sua Província”, estipula a “inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade”, afiança a lei como “igual para todos”, resolve que “ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente e todas as mais penas cruéis” e afirma que “a instrução primária é gratuita a todos os cidadãos”.

Aparentemente, era um conjunto de regras avançado. No entanto, não havia uma só linha dedicada à escravidão. Mesmo assim, não faltaram rebeliões, revoltas e até greves durante esse período.

Se olharmos em perspectiva, o Brasil do século 19 sofreu aceleradas transformações em períodos de tempo extremamente curtos. Começou como colônia, povoada por cerca de 3,24 milhões de habitantes, e terminou como república consolidada, com uma população de 17,37 milhões de pessoas. Constitui-se num importante fornecedor de matérias-primas para o mercado internacional e importador de manufaturados.

A Abolição dos escravos, em 1888, restringiu-se à libertação, sem medidas complementares, como reforma agrária, ampliação do mercado de trabalho para os libertos, acesso à educação, saúde etc. Ou seja, sem direitos de cidadania a não ser o do fim do cativeiro. Era um progresso insuficiente para a construção de um país democrático.

No fim do Império, em 1889, existiam 55 mil operários – a maioria imigrantes – trabalhando em pequenas oficinas e poucas fábricas de grande porte. E havia cerca de um milhão de escravos recém-libertos. A abundância de mão de obra imigrante levou os ex-cativos a constituírem um imenso exército industrial de reserva, descartável e sem força política na jovem República. Num quadro desses, o nascente empresariado não via sentido em pagar salários decentes ou conceder qualquer tipo de direitos aos seus trabalhadores.

PRIMEIRAS LEIS leis Com os imigrantes, vieram as primeiras ideias socialistas e anarquistas. É nesse momento que começa a se formar o que viria a ser a classe operária brasileira. O auge da primeira fase da imigração vai de 1870 a 1914, ano do início da I Guerra Mundial. Só de italianos, o Brasil recebeu, entre 1884 e 1903, mais de um milhão.

Entre a Abolição e a Revolução de 1930, foram definidas poucas regras para mediar a relação entre capital e trabalho. O liberalismo vigente advogava o distanciamento do Estado dessas questões.

A primeira das leis promulgadas é de 1903. Trata-se do Decreto nº 979, que concedia aos trabalhadores da agricultura e de empresas rurais o direito de organizarem-se em sindicatos. Em 1907, o decreto nº 1.637 garante a sindicalização aos trabalhadores urbanos. No mesmo ano, como forma de enfrentar o crescimento dos protestos trabalhistas, o Congresso Nacional aprova a lei Adolfo Gordo. O dispositivo legalizava a expulsão de estrangeiros envolvidos em protestos. A maioria dos trabalhadores urbanos com participação política era constituída por imigrantes, o que os colocava em posição de fragilidade diante da legislação nacional.

Em 1919 é promulgada uma lei de proteção a acidentados no trabalho e, em 1923, apareceram as normas para a instituição das caixas de pensão destinadas a ferroviários.

Surge também um dispositivo que buscava disciplinar o emprego de menores de 18 anos. Ainda existia institucionalmente o trabalho infantil, algo proibido pela legislação atual.

As reivindicações mais comuns eram o aumento de salários, a redução de jornada – trabalhava-se de 12 a 16 horas diárias –, o fim da exploração de menores e mulheres e a melhoria das condições gerais de trabalho, dentre outras. Não havia legislação social abrangente. Vigorava o regulamento de cada fábrica, nas quais, não raro, os castigos físicos apareciam como norma disciplinadora usual. No fundo, apesar da Abolição, as relações entre patrões e trabalhadores eram de quase servidão.

REVOLUÇÃO E INDUSTRIALIZAÇÃO O Brasil das primeiras décadas do século 20 era uma economia exportadora de produtos agrícolas para os países desenvolvidos. A principal mercadoria – desde meados do século anterior – era o café. O capital gerado por sua comercialização irrigava toda a economia, financiava as importações e possibilitava o aumento da industriazação e a constituição de um incipiente mercado interno.

A deflagração da I Guerra Mundial (1914–18) freou as exportações e encareceu as importações. A economia mundial se retraiu, após décadas de expansão. A entrada de capital estrangeiro no Brasil sofreu uma freada brusca. Uma crise econômica batia às portas.

Em junho de 1917, uma greve geral paralisa totalmente a cidade de São Paulo por oito dias. Os trabalhadores, organizados, entram com uma nova qualidade na agenda política nacional. Vitorioso, o movimento por melhores salários assusta as elites e demonstra que os limites institucionais da primeira República estavam se tornando estreitos para enquadrar uma nova complexidade social.

Nos anos seguintes, manifestações de descontentamento com a ordem vigente se espalham. O movimento tenentista, em 1922, a Revolução de 1924, em São Paulo, e a Coluna Prestes, entre 1925 e 1927, dentre outros eventos, fustigam o arranjo de forças que dominava o país desde 1889.

Os efeitos da quebra da Bolsa de Nova York, em 1929, deterioram a economia nacional, acelerando a crise política interna. Em 24 de outubro do ano seguinte, o Presidente da República, Washington Luís, é deposto pelos ministros militares. No dia 3 de novembro, no processo que ficaria conhecido como Revolução de 30, Getulio Vargas assume o poder.
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Vargas concedeu uma série de direitos, entre eles o da formalização do trabalho
Vargas tinha duas metas iniciais: recuperar a economia cafeeira e disciplinar a organização do mundo do trabalho, que se tornara mais complexo. Começava a maior ruptura institucional brasileira desde a Independência. A partir dali, o Estado nacional seria reformulado, o país marcharia por um processo acelerado de industrialização e as relações entre as classes sociais mudariam.

CONTRADIÇÃO INSTITUCIONAL A nova administração criaria direitos sociais em escala e amplitude nunca vistas na história do país. Ao mesmo tempo, era implantado um governo ditatorial, com prisões arbitrárias, tortura, censura à imprensa e forte repressão política.

A contradição se explica pelo fato de Vargas e seu governo terem buscado resolver a complexidade que o país adquirira com respostas imediatas. Buscaram atender parte das reivindicações dos trabalhadores e construir veios institucionais por onde as demandas pudessem fluir. A arrancada industrializante seria centrada no Estado.

A iniciativa privada não tinha interesse nem condições para realizar os pesados investimentos em infraestrutura necessários para atingir os objetivos oficiais.

Poucas semanas depois de assumir o poder, em 26 de novembro de 1930, Getulio Vargas cria o Ministério do Trabalho Indústria e Comércio. Em março de 1931, é promulgada a primeira lei sindical brasileira, o Decreto nº 19.770. Seu objetivo era tornar as organizações sindicais de empresários e de trabalhadores órgãos de colaboração do Estado. As regulamentações buscavam disciplinar, reconhecer e, ao mesmo tempo, controlar as reivindicações trabalhistas.

Em 1933, Vargas aprova a concessão de férias anuais aos trabalhadores de comércio e bancos, estendida, mais tarde, a outras categorias. Inicia-se a montagem da previdência social e proíbe-se o trabalho para crianças menores de doze anos.

No ano seguinte, uma nova Constituição foi aprovada. Ela consagrava – no capítulo “Ordem Econômica e Social” – vários parágrafos relativos à organização e aos direitos do trabalhador, como salário mínimo, férias e descanso semanal remunerado. Ao mesmo tempo, estipulava-se que “A União poderá expulsar do território nacional os estrangeiros perigosos à ordem pública ou nocivos aos interesses do país”.

Em 1935, nova lei garantia a estabilidade no emprego, estipulando indenização aos assalariados demitidos sem justa causa.

Com uma mão, o governo enquadrava a chamada questão social num projeto mais geral para o país. Com outra, desatava dura repressão a qualquer contestação à ordem estabelecida.

O ESTADO NOVO Em 10 de novembro de 1937, rompendo a legalidade institucional, Getulio Vargas decreta o Estado Novo, fecha o Senado e a Câmara dos Deputados e anula as eleições presidenciais previstas para o ano seguinte.
Uma nova Constituição foi outorgada e o mandato presidencial foi prorrogado. As greves foram proibidas, a pena de morte foi estabelecida e os meios de comunicação foram colocados sob censura. O Estado se comprometeria com o ensino primário “obrigatório e gratuito”. O novo regime persegue opositores, extingue os partidos políticos e se torna uma ditadura sem máscaras.

Em 1º de maio de 1940, o governo atende a uma antiga reivindicação dos trabalhadores, a criação de um salário mínimo nacional. Finalmente, em maio de 1943, todo o conjunto de leis, decretos e normas existente é sistematizado na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Ela se voltaria basicamente para três questões: os direitos do trabalhador, a organização sindical e a Justiça do Trabalho.

A partir dali, no entanto, o regime perde apoio. Desde 1942, manifestações populares pela democracia e pela entrada do Brasil na II Guerra Mundial (1939–45) aconteceram em várias cidades. Após intensa pressão popular, o Estado Novo começa a ceder. Em abril de 1945, Vargas concede a anistia a todos os presos políticos. Finalmente, um golpe militar depõe a ditadura em 29 de outubro de 1945.

O legado desses anos é aparentemente contraditório. Mas Vargas foi hábil em conceder direitos sociais havia muito reivindicados pela sociedade e incorporá-los num projeto paternalista de poder.

DEMOCRATIZAÇÃO INQUIETA A Constituição de 1946 foi a mais democrática e abrangente de todas até então. Entre as inovações estavam a “participação obrigatória e direta do trabalhador nos lucros da empresa”, a jornada diária de oito horas de trabalho, a “proibição de trabalho a menores de catorze anos”, a “assistência aos desempregados”, a obrigatoriedade da “instituição do seguro pelo empregador contra os acidentes do trabalho” e a assistência à maternidade, à infância e à adolescência. Além disso, o direito de greve estava garantido, e a educação era reafirmada como direito de todos.

Sob o impulso de mobilizações amplas, o sindicalismo conheceu uma ascensão até 1947. Houve um expressivo aumento do número de greves. Em setembro de 1946, com a presença de 2,4 mil delegados, realiza-se o Congresso Sindical dos Trabalhadores do Brasil. Surge aí a Confederação Geral dos Trabalhadores do Brasil (CGTB).

A reação não tardou. Produto da Guerra Fria e das tendências não democráticas das elites brasileiras, o governo Eurico Gaspar Dutra (1946–51) alinha-se aos Estados Unidos no plano internacional. Os avanços democráticos alcançados na Constituição sofrem um retrocesso. O direito de greve é abolido em 1946. A CGTB é fechada, antes mesmo de conseguir estruturar-se, e 234 sindicatos sofrem intervenção até 1949.

MOBILIZAÇÕES EM ALTA Em 1950, Getulio Vargas volta à Presidência pelo voto direto. Uma de suas medidas, após a posse, é acabar com a exigência do atestado ideológico para os participantes de eleições sindicais. Houve um sensível aumento da mobilização social, e o país via crescer novamente as inquietações populares.

Em março e abril de 1953 ocorre em São Paulo uma greve de grande envergadura, deflagrada a partir de reivindicações de têxteis e metalúrgicos. Logo alcançaria outras categorias, como vidreiros, gráficos e marceneiros. As atividades estenderam-se por Santos e Sorocaba, no maior movimento paredista desde 1917. Ficou conhecida como a Greve dos 300 mil. Os anos 1950 assinalam também o crescimento das lutas no campo.

Até 1964, o país viveria uma maré montante de mobilizações sociais que assustariam as elites. O clima de agitação crescente atravessou os governos de Juscelino Kubitschek (1956–61), Jânio Quadros (1961) e João Goulart (1961–64). Em oposição a estes, o conservadorismo articulava-se nas forças armadas, nos meios empresariais, na Igreja Católica, na intelectualidade e na classe média.

No ano de 1962, João Goulart legaliza os sindicatos rurais. No ano seguinte é promulgado o Estatuto do Trabalhador Rural, referendando vários direitos sociais. A ascensão do movimento sindical chega ao auge em outubro de 1963, com a Greve dos 700 mil, em São Paulo. Além de um aumento salarial de 80%, as categorias envolvidas – metalúrgicos, têxteis, gráficos, químicos, papeleiros e sapateiros – exigem negociação conjunta com a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). A reivindicação salarial é atendida, mas não a unificação das datas-base.

DITADURA Em 1º de abril de 1964, Goulart é deposto e o país mergulha numa ditadura pelos 21 anos seguintes. O golpe militar coloca na ilegalidade as principais organizações democráticas.

A ditadura decreta o congelamento dos salários e intervenções em 342 sindicatos, 43 federações e três confederações de trabalhadores. Cerca de 90% dos sindicatos rurais criados entre 1963 e 1964 são fechados. Em 1965, o número de greves cai para 25, contra mais de 150, em 1963.

Quatro anos depois, apesar das cassações e prisões, o movimento popular – trabalhadores, estudantes, artistas e intelectuais – ainda conseguiria realizar protestos abertos e maciços, como a Passeata dos 100 mil, realizada em junho, no Rio. Era o ponto alto de uma série de manifestações públicas que colocaram o regime contra a parede.

Outras mobilizações significativas do período são as greves das cidades de Contagem (MG) e Osasco (SP). No primeiro caso, uma ação espontânea paralisa 15 mil dos 20 mil trabalhadores da cidade. Em Osasco, a mobilização liderada pelo Sindicato dos Metalúrgicos resulta em três dias da greve, a partir de 16 de junho. A entidade sofre intervenção governamental e cerca de quatrocentos trabalhadores são presos em ação violenta do Exército.

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A política econômica da ditadura, baseada em investimento estatal e entrada maciça de capital externo, gera uma expansão inédita. Entre 1970 e 1973, a população, em especial a classe média, fica inebriada com o crescimento econômico que batia os 10% ao ano. A propaganda oficial chamou o fenômeno, que legitimava o regime e isolava as vozes descontentes, de milagre brasileiro. O período coincide com a fase mais dura e repressiva da ditadura. Ao mesmo tempo, os salários tinham reajustes baseados em índices inflacionários que se mostraram maquiados mais tarde.

VOLTAM AS MOBILIZAÇÕES Na metade dos anos 1970, o milagre entraria em crise. Uma turbulência internacional bate à porta do país e reduz o fluxo de capital estrangeiro. Os juros internacionais aumentam expressivamente e o endividamento externo provoca desaceleração econômica.

A reanimação do movimento sindical aconteceria mais de uma década após o golpe, com a greve dos metalúrgicos do ABC paulista, em 1978. O impulso mobilizador se materializa na construção ou reconstrução de entidades de massa, no surgimento de novos partidos e na legalização de agremiações colocadas na ilegalidade.

O movimento popular atinge seu pico de mobilizações em 1984, através da campanha das Diretas-já! para a Presidência da República. Milhões vão às ruas exigir o fim da ditadura. Esta acaba, em 1985, com a eleição, de forma indireta, do candidato da oposição Tancredo Neves (1910–85), que morre antes de tomar posse. Seu vice, José Sarney, assumiria o governo.

O rearranjo institucional do país foi dado pela Assembleia Constituinte de 1988, que substituiria a Carta imposta pelos militares em 1967. Ela representa o ponto alto das conquistas sociais demandadas nos anos finais da ditadura. O movimento popular teve papel destacado durante o processo de elaboração da Constituição, apresentando emendas sobre os direitos sociais e pressionando por sua aprovação.

As iniciativas pelas chamadas emendas populares aconteciam concomitantemente a extensas greves, como a dos eletricitários, que atingiu sete estados, a dos petroleiros, que alcançou oito e a dos servidores federais, que mobilizou 400 mil trabalhadores em todo o país.

A Constituição de 1988 é a mais avançada da história brasileira no que toca aos direitos sociais e às garantias e direitos individuais. Sobre ela, a socióloga Maria Victoria Benevides diz o seguinte:

“Nossa Carta Magna reflete uma feliz combinação de direitos humanos e de direitos do cidadão, de tal sorte que lutar pela cidadania democrática e enfrentar a questão social no Brasil praticamente se confunde com a luta pelos direitos humanos – ambos entendidos como resultado de uma longa história de lutas sociais e de reconhecimento, ético e político, da dignidade intrínseca de todo ser humano, independentemente de quaisquer distinções”.

LIBERALISMO E RETROCESSO Se os anos 1980 assinalaram um notável desenvolvimento da democracia, a década de 1990 representa a reversão dessa tendência. Ao longo daqueles anos, um acelerado processo de privatizações, de redução do papel social do Estado e de desregulamentação iria resultar em desaceleração econômica e alta exponencial do desemprego.

Uma espécie de lema daqueles anos era “acabar com a Era Vargas”, segundo algumas lideranças políticas.

Nos últimos anos, pouco a pouco alguns dos aspectos negativos das políticas desse período vão sendo modificadas. A queda dos índices de desemprego e uma retomada ainda limitada do crescimento resulta – como assinalado no início desta matéria – em mudanças na composição social brasileira.

A luta pelos direitos trabalhistas tem um longo caminho pela frente. Ela interessa não apenas aos trabalhadores, mas a todos os que se batem pela ampliação do mercado interno e por uma convivência mais harmônica e democrática entre os brasileiros.





quarta-feira, 17 de abril de 2013

Não a PEC 37




O caso das denúncias do deputado Eudes Xavier que acusam o governador do Estado Cid Gomes de está autorizando investigações clandestinas a adversários políticos, prova a inoportunidade da aprovação da PEC 37 que retira do ministério público os poderes de investigação. 



Ao se ver acusado das mais graves denúncias, Cid Gomes logo agiu para que as investigações que ele mesmo determinou lhes fossem favoráveis e os adversários suspeitos de municiarem o deputado do PT Eudes Xavier se tornassem o alvo da investigação. 

Com a repercussão na mídia nacional do pronunciamento do deputado Eudes Xavier, Cid Gomes comparece de surpresa a assembléia legislativa do Estado, toma conta da sessão e por 4 horas discursa e responde a perguntas dos correligionários numa ação preventiva para impedir que o poder legislativo tomasse qualquer providência de investigar as denúncias pelo instrumento que lhe é próprio, uma CPI, fato absolutamente desnecessário já que dos 46 deputados, 42 fazem parte da base aliada do governo. 

A presença de Cid antecipando-se a qualquer medida investigatória tinha na opinião de alguns analistas, o condão de abafar as acusações assacadas contra si.

Durante sua presença na Assembléia o governador anunciou com tons de indignação que mandaria investigar as denúncias e que pediria a Polícia Federal que assumisse as investigações. A polícia federal pelo visto declinou da competência de investigar posto que não se tem notícias de nenhum procedimento investigativo com o fito de esclarecer as acusações do deputado Eudes Xavier, dirigidas ao governador Cid Gomes. Para o espanto geral, a única investigação aberta e com consequências negativas não para o governador mas para os seus desafetos, foi a da polícia civil do Estado que no presente caso não tem nenhuma isenção.

Não se sabe como, mas a polícia do Estado do Ceará chegou ao nome de 13 pessoas que estariam envolvidas na quebra do sigilo telemático do governador, o que possibilitou a violação da correspondência eletrônica de Cid Gomes divulgada durante pronunciamento de Eudes Xavier no plenário da câmara dos deputados federal, ensejando que o delegado que estava comandando as investigações autorizadas pelo governador apresentasse ao ministério público e este a justiça o pedido de busca e apreensão nas residências dos investigados.

À menos que estas pessoas viessem sendo investigadas clandestinamente e um inquérito policial anteriormente aberto às escondidas, não é possível que a justiça tenha expedido um mandado de busca e apreensão, se ninguém tinha sido ouvido, nem o denunciante, o deputado Eudes Xavier, nem o principal desafeto do governador, Roberto Pessoa, nem muito menos quaisquer das pessoas que foram objetos da busca e apreensão da polícia do Estado, dado os poucos dias que separaram a denúncia da busca e apreensão, sendo o mandado diretamente relacionado ao pedido de investigação anunciado pelo governador na Assembléia Legislativa, não se tendo notícia de que outro inquérito tivesse sido aberto antes para apuração dos fatos que vieram à tona, até porque além do governador, o deputado Eudes Xavier não havia citado nenhuma outra pessoa. Logo não se sabe de onde surgiu o nome daqueles que foram alcançados por um mandado de busca e apreensão concedido de afogadilho pela justiça.

Fica a suspeita de que os que tiveram suas casas invadidas para que o mandato de busca e apreensão fosse cumprido, vinha há muito tempo sendo monitorados pelo aparato policial do Estado, notadamente o setor de inteligência da secretaria de segurança pública que deu uma resposta imediata as determinações do governador, contando com o apoio providencial do Ministério Público do Estado que deu parecer favorável e da justiça que autorizou a busca e apreensão num ineditismo e rapidez que não se coadunam com a justiça morosa que ainda é marca maior deste país.


Isto prova que um delegado de polícia pode ficar à mercê de um governante e usar do cargo que ocupa para perseguir adversários políticos ou mesmo deixar-se influenciar pelo clamor público, em caso de uma investigação de grande repercussão.

Com todos os abusos que o ministério público tem cometido ao longo do tempo, com seu chefe maior fazendo uso político de investigações em conluio com a direita conservadora do Brasil, sentando-se em cima de investigações que não lhe são de interesse pessoal ou chantageando autoridades em troca de benesses corporativas ou fazendo às vezes de braço político de governadores ou ainda cometendo os mais vis desvios éticos e funcionais, ainda assim é com o ministério público que podemos contar para que as grandes investigações contra a corrupção e outras de importância semelhantes sejam feitas.

Antes de se pensar em passar a investigação para a competência dos delegados, como determina a constituição, primeiro é preciso que se lhes garantam isonomia, independência funcional, inamovibilidade. Sem este tripé, estaremos retrocedendo para um atraso inaceitável de um passado recente que nos envergonha a todos e nos lembra como um chefe político pode influenciar uma investigação. Até os dias presentes isto ainda está a demonstrar que não mudamos tanto assim. Esta investigação do caso Eudes Xavier é apenas uma pequena amostra do poder que um governador tem de direcionar uma investigação para seus desafetos políticos.

Os delegados não podem ficar à mercê dos humores do governante de plantão que tem uma função de governo, ao passo que os delegados têm uma carreira de Estado, estando sob a obrigação de dá cumprimento à constituição em suas atividades diárias.

terça-feira, 16 de abril de 2013

Sistema Financeiro - O gargalo do crédito


O Brasil tem bancos modernos, mas que emprestam pouco e a um custo muito alto. Essa realidade precisa mudar para que o país possa crescer de forma sustentável.

Sérgio Sister

noticias-2-ImagemNoticiaJato 190 da Embraer: a indústria brasileira produz e exporta muito, mas poderia estar ainda melhor se houvesse crédito farto
Jato 190 da Embraer: a indústria brasileira produz e exporta muito, mas poderia estar ainda melhor se houvesse crédito farto
Se o Brasil tem um sistema financeiro moderno, eficiente, um dos mais informatizados do planeta, como se explica que o crédito bancário seja escasso e tão caro no País? Essa é uma questão complexa e fundamental, já que o crédito é um dos fatores determinantes do crescimento econômico. O tema é motivo de análise de Armando Castelar Pinheiro, economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) no Rio de Janeiro e autor do estudo "Uma agenda pós-liberal de desenvolvimento para o Brasil"."A redução do custo doinvestimento é essencial para aumentar o ritmo de acumulação do capital e acelerar o crescimento econômico", diz. Ele propõe um conjunto de mudanças essenciais para garantir um crescimento econômico sustentável.
Os dados do Banco Mundial revelam a limitada oferta de crédito no Brasil, se comparado com outros países que ostentam saudáveis taxas de crescimento econômico. Em 2002 o volume de crédito ao setor privado representava 35% do PIB brasileiro, segundo o Banco Mundial. No Japão, a taxa era de 175% do PIB.No Chile, de 68% do PIB.

Não bastasse a oferta restrita, os juros cobrados pelos empréstimos concedidos no país estão entre os mais altos do planeta. A taxa básica de juro real descontada a inflação) gira em torno dos 9,5% ao ano. Só perde para a Turquia, onde o custo do dinheiro está na casa dos 11,6% anuais. Na China, país cuja economia é campeã em crescimento, a taxa real é negativa em 0,7%. "O sistema financeiro brasileiro oferece baixo volume de crédito como proporção do Produto Interno Bruto e cobra taxas recordes de intermediação financeira, o spread", afirma Castelar.

Spread é a diferença entre o que os bancos cobram pelos empréstimos e o custo de captação do dinheiro. O spread cobrado pelos bancos brasileiros é da ordem de 38% e está entre os mais altos do mundo, segundo os cálculos de Erivelto Rodrigues, presidente da Austin Rating, empresa especializada em análise de risco de crédito.Em seu trabalho,Castelar constata que a modernização do sistema financeiro brasileiro, a entrada de bancos estrangeiros no mercado nacional, a privatização de bancos públicos e a melhoria do controle oficial não foram suficientes para alterar esse quadro de crédito caro e escasso. Os bancos existentes no Brasil são modernos, têm gestão sofisticada, tecnologia de ponta, mas só emprestam para quem tem condições de pagar em curto prazo e de arcar com juros altíssimos.

É muito fácil constatar que o sistema financeiro brasileiro não é exatamente um craque de empréstimos. Em junho, o saldo das operações de crédito do País, segundo o Banco Central, era de 442 bilhões de reais, o equivalente a 26,1% do PIB.A mais importante fonte de recursos para investimentos não-habitacionais de longo prazo de maturação é o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que garante 20% do bolo total de crédito. O banco oferece o dinheiro mais barato do mercado. O custo de seus empréstimos varia entre 16% e 17% ao ano. Mesmo assim, a taxa é bastante superior à rentabilidade sobre o patrimônio que as 500 maiores empresas brasileiras registraram em 2002: 13%.

Alternativas de crédito Fora do BNDES restam poucas alternativas de crédito de longo prazo. Uma delas são os repasses de recursos do exterior,que têm um custo da ordem de 20% ao ano, mais a desvalorização cambial, mas são acessíveis apenas a um seleto grupo de empresas.Em junho,esse tipo de operação movimentou 17,2 bilhões de reais, ou 11% do crédito bancário com recursos livres para empresas. A oferta de crédito concentra-se no curto prazo e os juros são ainda mais salgados. Linhas de curta duração como contas garantidas, financiamentos de capital de giro e descontos de títulos, movimentaram 67 bilhões de reais em junho, ou 44% dos empréstimos com recursos livres para empresas. As taxas variam de 34% a 67% ao ano.

A área em que existe maior competição entre os bancos e oferta farta é o crédito pessoal para pessoas físicas, que movimentou 36,7 bilhões de reais em junho. Esse tipo de operação é o que mais cresce, justamente por garantir maior rentabilidade para os bancos, que cobram uma taxa média de 72%."As pessoas só querem saber se a prestação cabe em sua renda familiar", diz Antonio Borges Matias, da ABM Consulting, empresa de gestão de riscos financeiros. Agora, começa surgir uma alternativa para as pessoas mais pobres, sem conta bancária, fazer compras, sem pagar as altíssimas taxas de juros do crédito direto ao consumidor.Bancos montam estruturas para oferecer o chamado microcrédito e as cooperativas de crédito crescem, especialmente nas cidades menores.

A eficiéncia do sistema financeiro A ironia da história é que apesar de tão fortes,modernos e lucrativos,os bancos brasileiros são considerados ineficientes quando se trata de crédito. Devido à falta de escala, é muito grande o peso de seus custos administrativos e de pessoal diante da carteira de empréstimos. Esses custos ficam acima de 20% nos quatro maiores bancos brasileiros, quando a média nos bancos de primeira linha nos países desenvolvidos é da ordem de 5%.Os bancos brasileiros são muito eficientes nas áreas de onde extraem a maior rentabilidade, como a gestão de recursos de terceiros ou a captação de recursos.Na área de crédito deixam a desejar.

O Brasil nem sempre foi assim, como lembra Paulo Sérgio Cavalheiro, diretor de fiscalização do Banco Central. "Há 30 nos o forte dos bancos era a carteira de crédito, não existia open market, e assim surgiram os grandes bancos nacionais. Hoje os bancos brasileiros são modernos e seu sistema de gestão pode ser comparado aos das melhores instituições dos países desenvolvidos."Mas essa modernidade não se reflete na oferta de crédito, que é muito inferior a de outros países.

O coro de protestos, quase uma unanimidade nacional, culpa os bancos privados pela escassez de crédito e pelos juros altos e se apóia numa evidência: as instituições que operam no Brasil acumularam lucros que variam de 17% a 23% de seu patrimônio líquido nos últimos dez anos, um resultado que ofusca o de seus pares dos países desenvolvidos. Uma análise mais acurada do problema, no entanto, mostra que a resposta não é assim tão simples.Outras personagens também concorrem para formar o quadro negativo do crédito no Brasil.Uma delas é o governo.

Nas últimas décadas o Estado brasileiro,quebrado,precisou aumentar muito seu endividamento para fazer frente a suas despesas. Em junho último a dívida pública representava 56% do PIB. Para conseguir financiar e rolar essa dívida, o Tesouro Nacional vende títulos federais pagando juros de 16% ao ano, que é o piso das taxas cobradas pelos bancos privados e oficiais. "O governo é o principal tomador de recursos no Brasil. É ele que retém a maior parte do crédito disponível", afirma Gabriel Jorge Ferreira,presidente da Confederação Nacional das Instituições Financeiras (CNF) e ex-presidente da Federação Brasileira de Bancos (Febraban). "O governo absorve grande parte das poupanças com uma taxa de remuneração muito alta", concorda Castelar, do Ipea. "Seus títulos competem com muita vantagem sobre as outras modalidades de investimento."

Márcio Cypriano, atual presidente da Febraban e diretorpresidente do Bradesco, lembra que o grosso dos títulos públicos não fica com os bancos,mas com as pessoas físicas e empresas que aplicam seus recursos em fundos de investimento. "Temos recursos para emprestar, basta que as empresas apresentem projetos bons e viáveis, que tenham um plano de negócios consistente",diz Cypriano.No caso das pequenas e médias empresas, ele reconhece que será preciso um conjunto regulatório mais eficiente de garantia aos credores.

A máquina pública Os impostos também têm um efeito perverso sobre o próprio custo dos empréstimos. Há um aparato que inclui várias cobranças de CPMF, Imposto de Renda na Fonte, IOF e PIS/Cofins. O economista-chefe da Febraban, Roberto Luis Troster, acha que os compulsórios que incidem sobre os depósitos à vista, sobre as aplicações obrigatórias na agricultura e sobre os títulos públicos,num total de 131 bilhões de reais em março, representariam "tributos implícitos".

Mudar esse cenário não é tarefa simples. Enquanto a variável macroeconômica não muda, o trabalho de Castelar propõe uma série de providências para que o custo de intermediação financeira seja reduzido. É preciso diminuir a inadimplência dos empréstimos tomados no sistema financeiro. Para tanto, é necessário garantir aos credores melhores informações sobre os devedores. Também serão necessárias "reformas legais e jurídicas que facilitem a execução de garantias em caso de inadimplência", propõe o trabalho do Ipea. Isso para dar mais segurança aos agentes financeiros. É preciso também "adotar uma política mais ativa de promoção da concorrência no setor financeiro". Finalmente, numa terceira frente, será preciso reduzir a carga de impostos que pesa sobre a intermediação financeira.

Da maneira como as coisas estão, o dinheiro disponível no país, em vez de ser investido no setor produtivo, gerando empregos e mais riqueza para todos, é gasto no financiamento da máquina administrativa do Estado, cujo poder multiplicador é infinitamente inferior. Em fevereiro, de um total de 543 bilhões de reais aplicados em fundos de investimentos, 60%, ou 327 bilhões de reais, estavam investidos em títulos públicos federais. Apenas 42 bilhões de reais, ou 7,7%, foram destinados a ações de empresas negociadas nas bolsas de valores.A rentabilidade e a segurança dos títulos públicos também atrai outro tipo de investidor,os fundos de pensão,que têm enorme poder de fogo. No final de 2003, 62% dos ativos dos dez maiores fundos de pensão estavam aplicados em títulos públicos e 29% em participações empresariais.

A dívida pública e a cunha fiscal não explicam sozinhas, segundo Castelar, toda a complexidade da baixa oferta de crédito de longo prazo no Brasil e do alto custo do dinheiro."Os bancos vão continuar restringindo o crédito pelo temor do risco de inadimplência", adverte Castelar. O calote é o fantasma que assombra os banqueiros.Os dados do Banco Central apontam para uma inadimplência média de 7,7% em abril, para operações com recursos livres, abaixo dos 8,8% registrados no mesmo mês de 2003.

Ações de cobrança A aprovação da Lei de Falências ajudará a reverter este quadro, mas há outras razões para o temor dos banqueiros. A principal delas está no sistema judiciário. As leis e a Justiça dificultam a recuperação dos bens e valores em caso de inadimplência.Pelo atual Código de Processo Civil, qualquer ação de cobrança depende de um "processo de conhecimento", em que o juiz vai decidir se a dívida realmente existe e qual o seu valor. Só depois disso o credor entra com o processo de cobrança, que pode envolver leilão público. Considerando a morosidade dos trâmites judiciários e as possibilidades de ações protelatórias, José Barreto, especialista em direito bancário e comercial do escritório de advocacia Levy & Salomão, calcula que se pode esperar oito anos para conseguir que um mau pagador salde sua dívida.

Atualmente existe no Brasil um tipo de garantia que funciona e tem reflexos sobre as taxas de juros: é a alienação fiduciária, usada principalmente nos financiamentos de veículos. Por esse sistema, o bem fica em nome do credor até a liquidação total da dívida, e ele pode reavê-lo em caso de inadimplência. A alienação também existe para imóveis, mas só agora começa a ser regulamentada, por isso o financiamento de construção de imóveis representa apenas 5,5% do total de empréstimos concedidos.

Outras reformas estão em andamento.A nova lei de falências aumenta as chances de sobrevivência das empresas em dificuldades. Na fila de credores, os bancos ficarão logo atrás dos trabalhadores. Serão pagos antes dos órgãos de governo. O Ministério da Justiça já propôs uma alteração no processo de reconhecimento e cobrança de dívidas. E a Reforma do Judiciário, com a súmula vinculante, poderá inibir decisões de instâncias mais baixas da magistratura,quase sempre favoráveis aos devedores.

Removidos os entraves jurídicos, resta a questão macroeconômica. Somente uma queda expressiva da dívida pública, por um programa contínuo de ajuste fiscal,permitirá reduzir as necessidades de financiamento do setor público e as taxas de juros.A agenda de reformas é complexa,mas abre espaço para o desenvolvimento econômico sustentável.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Qual o limite da taxa de juros?


Marcel Gomes – de São Paulo
Diante de novas turbulências na economia internacional e da retração de mercados consumidores no exterior, o governo brasileiro promoveu ao longo dos últimos meses algumas correções de rota na política econômica. A marca mais visível foi a queda das taxas de juros ao patamar mais baixo da história recente. No entanto, outras variáveis, como o regime de metas de inflação e o câmbio, também apresentam nuances em relação a períodos anteriores, diante de uma meta prioritária: reativar a economia
Entre agosto de 2011 e outubro de 2012, o Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central (BC) realizou um longo ciclo de redução da taxa básica de juros da economia, a Selic, com dez cortes consecutivos, até que o histórico patamar de 7,25% fosse atingido. A nova taxa, que segue em vigor, é baixíssima para os padrões brasileiros, mas ainda elevada, segundo o cenário internacional.

Mesmo assim, o movimento gerou efeitos profundos em nossas relações econômicas internas: instituições financeiras foram pressionadas a reduzir juros cobrados de clientes, aplicadores a diversificarem investimentos, o governo federal viu cair o gasto com o financiamento da dívida pública, e até empresários puderam recalcular, para cima, a rentabilidade de novos projetos, diante da queda do custo do capital.

Mas o ciclo de corte da Selic também suscitou dúvidas sobre sua sustentabilidade. Não foram poucos os economistas e comentaristas na mídia que questionaram a viabilidade de mantermos uma taxa em níveis historicamente baixos, sob uma inflação que insiste em se posicionar, desde 2010, acima do centro da meta do IPCA – que é de 4,5%, com margem de tolerância de dois pontos percentuais para cima ou para baixo.
Foto: Divulgação
“Administrartudo isso não é fácil.
As incertezas são muitas, e o
Banco Central precisa agir como
um bom cozinheiro que tem de
acertar o tempero, pôr sal,
pimenta, mas sem deixar picante
demais e estragar o sabor da comida”



Luiz Gonzaga Belluzzo,
economista
Afinal de contas, um país que já foi viciado em inflação alta não estaria pondo em risco a estabilidade monetária conquistada a duras penas? – é pergunta recorrente.

A taxa de juros desperta todo esse interesse porque ela é o instrumento central do regime de metas de inflação, adotado pelo país desde 1999, ano da maxidesvalorização do real. Através dela, os técnicos conseguem aproximar o crescimento projetado ao crescimento potencial de um país, evitando que eventuais gargalos reflitam na evolução dos preços.

Oficialmente, o regime não prevê metas para o câmbio e crescimento econômico, que, no entanto, são considerados na construção do cenário prospectivo para a inflação – e, assim, na definição da Selic.

O problema é que apesar da existência de muitas equações econômicas para auxiliar o cálculo da taxa de juros, elas sempre possuem um grau de incerteza. As decisões dependem da estimativa de variáveis sujeitas a fatores políticos, comerciais, climáticos, entre tantos outros, nacionais e internacionais.

“Administrar tudo isso não é fácil. As incertezas são muitas, e o Banco Central precisa agir como um bom cozinheiro que tem de acertar o tempero, pôr sal, pimenta, mas sem deixar picante demais e estragar o sabor da comida”, compara o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, que considera até aqui positivo o esforço da autoridade monetária para baixar os juros.

MOVIMENTO NATURAL Ciente da importância de legitimar tecnicamente a queda dos juros no país, o BC – cuja assessoria disse à reportagem que não daria entrevista sobre o assunto – vem trazendo nos relatórios trimestrais de inflação estudos e equações econômicas que sustentam tal movimento como algo natural. No relatório divulgado em setembro de 2012, por exemplo, o órgão embasou parte de sua análise nas teses de J. Archibald e L. Hunter presentes no artigo “What Is the Neutral Real Interest Rate and How Can We Use it?”, de 2001.
Foto: Neiva Daltrozo/Secom
Audiência pública de governadores sobre a dívida com a União, no Senado Federal em abril de 2012. Entre outros, estão Geraldo Alckmin (São Paulo), Raimundo Colombo (Santa Catarina) e Tarso Genro (Rio Grande do Sul). Mandatários alegam que contratos firmados em épocas de juros altos comprometem orçamentos dos estados
Nesse trabalho, Archibald e Hunter argumentam que a taxa básica de uma economia é determinada por fundamentos que afetam as decisões de poupança e de investimento dos agentes econômicos, assim como pelo prêmio de risco do país e pela existência de entraves aos fluxos de capitais internacionais. A questão é que, na visão exposta pelo BC no relatório de inflação, mudanças estruturais da economia brasileira têm influenciado essas variáveis a ponto de permitir o corte da Selic. São elas:

1) PRÊMIOS DE RISCOComponente da taxas de juros, incertezas relacionadas à inflação e à credibilidade da moeda se refletem nos prêmios de risco e, portanto, podem elevar o custo dos empréstimos. Para o BC, a estabilização da economia brasileira e a consolidação do regime de metas para a inflação – com cumprimento das metas estabelecidas por oito anos consecutivos – levaram a redução significativa das incertezas macroeconômicas e, por conseguinte, do prêmio de risco. Não é à toa que influentes agências de classificação de risco concederam ao Brasil grau de investimento em anos recentes.
Foto: Francisco Antunes
Sede do BC em Brasília: para o banco, queda na atividade econômica mundial contribuiu para reduzir a taxa de juros doméstica


2) FLUXO DE CAPITAIS A consolidação da estabilidade macroeconômica e a redução dos prêmios de risco renderam ao Brasil acesso aos mercados de capitais internacionais a custos menores. Mais recentemente, esse processo foi intensificado. Em 2011, o ingresso líquido de investimentos estrangeiros diretos no Brasil atingiu o valor recorde de US$ 66,7 bilhões.

3) MUDANÇAS FISCAIS A dívida pública pode ter impacto significativo sobre a taxa de juros. No Brasil, houve consolidação do regime fiscal, com adoção de metas para superávit primário e a Lei de Responsabilidade Fiscal, sancionada em maio de 2000. Essas mudanças ajudaram a reduzir a dívida pública em proporção do PIB. A dívida líquida do setor público consolidado, que em 2002 ultrapassou o patamar de 60% do PIB, foi reduzida recentemente para níveis próximos a 35% do PIB. Além disso, houve mudança substancial no perfil da dívida, agora majoritariamente vinculada à moeda nacional e não mais ao dólar, o que reduz os riscos para o Tesouro Nacional.
4) POUPANÇA A taxa de poupança bruta doméstica como proporção do PIB tem se mantido razoavelmente constante ao longo do período recente, tendo alcançado 17,2% em 2011, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No entanto, a trajetória decrescente da dívida pública, potencializada pela redução dos custos de financiamento, gera condições para que recursos adicionais sejam direcionados para investimento.
5) ESTRUTURA DOS MERCADOS FINANCEIROS Melhorias na estrutura dos mercados financeiros e de crédito podem aumentar a eficiência na alocação de recursos disponíveis na economia, diminuindo a taxa de juros. Para o BC, houve transformações importantes na estrutura dos mercados no Brasil nos últimos anos, como o aumento da participação do crédito no PIB, que passou de aproximadamente 25%, no início de 2001, para cerca de 50%, em junho de 2012.

6) MUDANÇAS INSTITUCIONAIS A “incerteza jurisdicional” na economia brasileira era vista por estudiosos como um dos fatores a explicar os níveis de taxa de juros no país. Mas isso melhorou, não apenas com a consolidação democrática, marcada por seguidas eleições presidenciais, mas também através de reformas específicas como a nova lei de falências, de 2005, e a introdução da alienação fiduciária de imóveis no novo Código Civil.

7) CENÁRIO EXTERNO Diante da integração econômica cada vez maior dos países, a evolução das taxas em outras nações gera efeitos internos. Diante da crise financeira mundial recente, iniciou-se um amplo cenário de baixa dos juros no mundo desenvolvido. De acordo com o BC, estimativas dos modelos estruturais feitos pelo órgão indicam que a queda na atividade econômica mundial, a partir da crise de 2008, também contribuiu para reduzir a taxa de juros doméstica.

TRAJETÓRIA DA INFLAÇÃOMesmo com todas essas mudanças conjunturais, a definição da taxa Selic pelo BC também depende de dois fatores principais: a opção política da autoridade monetária em fazer uma gestão monetária contracionista ou expansionista, e a estimativa de inflação futura.
Foto: Bel Pedrosa
Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central: em sua gestão, a Selic chegou a 45%
Quanto ao primeiro fator, como já foi dito aqui, os economistas definem que há uma taxa de juros considerada de equilíbrio, ou seja, aquela consistente, no médio prazo, com inflação estável e crescimento real do PIB igual ao seu crescimento potencial.

Mas, em determinado momento, é possível que os gestores da economia decidam não buscar o equilíbrio e optem por outra estratégia. Isso ocorreu, por exemplo, em março de 1999, durante a presidência de Armínio Fraga no BC, quando o órgão elevou a Selic a 45% ao ano, com o intuito de segurar uma fuga de capitais e desaquecer a atividade econômica, após a maxidesvalorização do real.
A respeito da estimativa de inflação, é possível dizer que esse é um passo-chave dentro da metodologia do BC para definir a Selic. Para isso, o órgão analisa a evolução – e a estimativa de evolução – dos preços de itens fundamentais para o consumo das famílias, como combustíveis e alimentos.

A ata da reunião do Copom que definiu em outubro de 2012 o último corte da Selic, por exemplo, projetava que não haveria aumento da gasolina e do gás de botijão até o final do ano; reduzia a projeção de alta da tarifa de telefonia fixa a 1,0% em 2012, ante os 1,3% estimados na reunião anterior do órgão; mantinha a alta prevista da eletricidade em 1,4%; e ainda previa um choque de oferta de commodities agrícolas.

Todos esses fatores embasaram a decisão do órgão de cortar a Selic, na ocasião, de 7,50% para 7,25%. “Considerando o balanço de riscos para a inflação, a recuperação da atividade doméstica e a complexidade que envolve o ambiente internacional, o Comitê entende que a estabilidade das condições monetárias por um período de tempo suficientemente prolongado é a estratégia mais adequada para garantir a convergência da inflação para meta, ainda que de forma não linear”, dizia a nota oficial.
HIATO DO PRODUTO Ainda para dimensionar as pressões inflacionárias, as metodologias do BC dependem do cálculo do chamado “hiato do produto”, que é a diferença entre a produção de bens efetiva e potencial. Com ele, é possível antecipar, evidentemente com margem de erro, eventuais pressões de demanda sobre os preços, e tomar medidas.

Para aperfeiçoar a metodologia, o BC vem ao longo do tempo adicionando uma série de novidades no cálculo, que é feito através de métodos distintos e chamados tecnicamente de extração de tendência linear, filtro Hodrick-Prescott (HP), função de produção, e filtro de Kalman – todos também usados pelas autoridades monetárias das principais economias do mundo.
Foto: Adenilson Nune
Posto de gasolina em Salvador: ata do Copom que definiu último corte da Selic projetava que não haveria aumento do combustível até o fim de 2012
Uma das novidades é o emprego da Utilização da Capacidade Instalada (UCI), fornecida na Sondagem Conjuntural da Indústria de Transformação da Fundação Posto de Getulio Vargas (FGV), como alternativa à UCI divulgada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI).

Recente estudo feito por técnicos do BC aponta que o resultado do hiato varia a depender da base de dados utilizada, se da FGV ou da CNI. Agora, com dois resultados distintos, é possível avançar em outras pesquisas que avaliem erros de previsão do passado e permitam fazer uma sintonia fina para o futuro.
A “nova ordem” da política monetária: regime de metas com medidas macroprudenciais
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Foto: Divulgação
“Os bancos centrais foram obrigados
a serem mais pragmáticos com a crise.
Antes, bastava conduzir a política
monetária pensando nos fluxos da
economia. Agora, é preciso ficar de
olho no preço dos ativos” Roberto
Messenberg, técnico de planejamento
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Roberto Messenberg,
técnico de planejamento e pesquisa do Ipea
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Se, até 2008, o regime de metas de inflação, baseado no controle de preços através da taxa de juros, produzia efeitos consistentes, sobretudo em economias estáveis, o mesmo não se pode dizer que ocorra a partir do início da crise financeira internacional, naquele mesmo ano. Como explica o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, o Federal Reserve (FED), banco central dos EUA, executava sua política monetária basicamente mediante o manejo da taxa de juros de curto prazo, controlando, assim, os preços dos ativos.

Mas esse tipo de gestão tornou-se insuficiente após o estouro da bolha imobiliária. Não se tratava mais de uma crise de liquidez, mas da insolvência de famílias e bancos, seguida de declínios do consumo e do investimento. Para recuperar o preço dos ativos e reaquecer a economia, baixar os juros norte- -americanos, a ponto de ter taxas reais negativas, não se mostrou suficiente.

Ben Bernanke, presidente do FED, optou por tornar mais complexa a política monetária e autorizou o órgão a comprar títulos públicos e privados com o objetivo final de recuperar os preços de ativos, sobretudo imóveis residenciais. Dentro dessa política de “relaxamento monetário”, tão criticada pelo governo brasileiro, comentaristas econômicos chegaram sugerir até que o FED oferecesse diretamente dinheiro a empresas e pessoas físicas, a fim de levantar a economia.

“Os bancos centrais foram obrigados a serem mais pragmáticos com a crise. Antes, bastava conduzir a política monetária pensando nos fluxos da economia. Agora, é preciso ficar de olho no preço dos ativos”, explica Roberto Messenberg, técnico de planejamento e pesquisa do Ipea. Essa mudança se refletiu no Brasil com a adoção das chamadas medidas macroprudenciais, em dezembro de 2010. “O regime de metas de inflação não era mais suficiente para resolver todos os problemas, precisávamos de outros instrumentos”, diz ele.

As medidas macroprudenciais anunciadas pelo BC eram focadas nas operações de crédito, tornando mais rígidos os controles dos empréstimos a pessoas físicas e empresas. Além disso, elevaram o compulsório de depósitos nas instituições financeiras e ainda ampliavam a garantia de correntistas com investimentos nos bancos. Com essa estratégia, o BC queria atingir objetivos para os quais antes dependeria apenas de movimentos da Selic.

Na “nova ordem” da política monetária, o regime de metas não foi abandonado, mas o BC passou a utilizar outras armas para defender a moeda, reunidas no arsenal das medidas macroprudenciais. Assim, a inflação deixou de ser a única obsessão dos técnicos, que passaram a olhar também para nível de câmbio, mercado de trabalho e crescimento econômico.

A estratégia deve ser mantida no curto prazo. Em 2013, Messenberg aposta em um cenário de estabilidade da taxa Selic, não apenas porque a estratégia das medidas macroprudenciais veio para ficar, mas também pelo cenário de variáveis positivas previsto para os próximos meses: entrada de capital intensa, índices de inflação pouco pressionados e ausência de choque nas cotações das commodities.

“Ao contrário de gestões passadas, o BC aproveitou bem o espaço que teve, mesmo diante da crise, para reduzir os juros. Agora é importante manter isso”, diz o economista do Ipea. Para ele, a manutenção das taxas nos atuais patamares é importante para que as expectativas dos atores econômicos se acomodem. Afinal, os mesmos que por anos se acostumaram à inflação elevada também têm gravado na memória o histórico dos juros altos. Mudar isso é tarefa para anos.