A facção criminosa que nasceu em São
Paulo hoje é um problema nacional. É preciso uma ação articulada de
todas as forças de segurança e do poder judiciário para combatê-la, além
de endurecer as regras na prisão,
como fizeram os italianos com os mafiosos
por Wilson Aquino e Michel Alecrim
No topo do organograma da maior rede de
crime organizado do Brasil, o Primeiro Comando da Capital (PCC), está a
Sintonia Final Geral, composta pela cúpula da bandidagem. Por apenas uma
letra, a denominação difere de sintonia fina, a palavra que reúne a
principal alternativa, segundo especialistas ouvidos por ISTOÉ, de
combate à poderosa máfia nascida no presídio de Taubaté, em São Paulo,
nos anos 1990, que, hoje, atua em 22 das 27 unidades da federação e
domina presídios no País todo, com ramificações em países como a Bolívia
e o Paraguai. Em um milimétrico estudo e cruzamento de dados, o
Ministério Público de São Paulo mostrou a fortaleza na qual o PCC se
transformou, sob as barbas de autoridades paulistas que negligenciaram o
monstro em seu nascedouro. Essa máfia, hoje, não é mais um problema só
de São Paulo. Virou um problema brasileiro. E a sintonia urgente é
justamente uma ação coordenada e inteligente de todos os poderes em prol
de uma ampla reestruturação do sistema penitenciário e de segurança.
“A principal conclusão a que chegamos
depois desse inquérito é que o PCC é uma organização nacional e, como
tal, o governo federal não pode ficar fora desse problema”, diz o
sociólogo Luiz Flávio Sapori, professor da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais (PUC-MG). Ele defende uma força-tarefa composta
pela Polícia Federal, Receita Federal, polícias estaduais e MPs
estaduais para atacar o poder de articulação e de financiamento dessa
quadrilha, que fatura R$ 120 milhões por ano, basicamente com tráfico de
drogas.
Uma das alternativas pode ser o fortalecimento da Secretaria Nacional de
Segurança Pública (Senasp), que perdeu importância estratégica.
“Reduziram os investimentos e destruíram as possibilidades de se criar
um sistema único de segurança pública, com um banco de dados que pudesse
ser compartilhado por todos os segmentos que enfrentam o crime”, diz o
antropólogo Paulo Storani, ex-oficial do Batalhão de Operações Especiais
(Bope) do Rio de Janeiro.
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Inventário do crime
As armas, os carros e a contabilidade dos bandidos
Andres Vera e Pedro Marcondes de Moura
ISTOÉ teve acesso a mais de 70 documentos
da contabilidade do Primeiro Comando da Capital (PCC) de São Paulo. De
relatório sobre a compra de metralhadora de guerra a levantamento da
frota de carros da facção, os números revelam o lado “empresa” da
organização criminosa. Maconha é “morango”. Advogado é “gravata”.
Mensalidade é “cebola”. E assim segue uma infinita e confusa lista de
nomes trocados que o PCC emprega, tanto nas ruas como em seus documentos
internos. Nesse último caso, arquivos de Word e planilhas de Excel com o
cotidiano contábil da maior facção criminosa do País. Apreendidos ao
longo de operações da Polícia Militar, eles são parte importante de uma
investigação de três anos conduzida pelo Ministério Público e pela
Polícia Federal. O vocabulário ali pode soar estranho a uma grande
empresa legalizada. Os números, não.
É o que prova, por exemplo, o arsenal de 88 fuzis, 42 pistolas, quatro
rifles, três metralhadoras, uma dinamite e 178 pentes de munição. Eis o
balanço do “setor das ferraduras”. Trata-se do armamento de parte do PCC
paulista em outubro de 2011. O poder de fogo é grande a ponto de
desprezar o revólver 38, mais comum e barato, nas estatísticas
“oficiais”. Na coluna dos fuzis, no entanto, a profusão de letras e
números é digna de quartel militar – os modelos AK-47, AR-15 e M-16
estão entre os preferidos. No relatório do mês seguinte, novembro de
2011, o bando vai às compras: a lista ganha 12 fuzis e 25 pistolas. O
PCC tem inventários de dar inveja a muita empresa legalizada. Outra
planilha, também de outubro de 2011, segue os moldes de uma locadora de
carros. O título é sugestivo: “setor dos pés de borracha”. São 55 carros
e oito motos na frota do crime. Ao lado de Celtas e Corsas, chamam a
atenção uma Cherokee blindada e um micro-ônibus. O arquivo descreve
tudo. Motorista responsável, ano de fabricação, existência de
documentação e estado de conservação. Sobre um Vectra GT sem documento,
há uma nota de rodapé: “estava com o Dr. Rogério, foi mandado para os
gravatas e o recibo não veio”. “Gravatas”, como se sabe, são os
advogados que trabalham para a facção. Apenas em setembro de 2011, como
mostram os documentos a que ISTOÉ teve acesso, eles receberam R$ 220
mil das mãos do PCC. Os defensores dos criminosos também têm um “setor”
próprio, o “setor dos gravatas”. São parte importante do extenso
universo da contabilidade da facção, ao lado das “ferraduras” e “pés de
borracha”, entre outros.
No “setor do progresso”, por exemplo, é
controlado todo o dinheiro do tráfico de drogas. Listadas sob o codinome
de frutas (em uma planilha igualmente colorida), as drogas são o
carro-chefe do faturamento. Segundo estimativa do Ministério Público,
rendem R$ 8 milhões mensais ao PCC. Há também um “setor” dedicado apenas
ao cigarro. Menor, mas não menos importante. A venda de maços nos
presídios paulistas movimenta mais de R$ 100 mil mensais. O valor é
baixo se comparado ao lucro dos entorpecentes, mas revela o poder de
influência da facção nas prisões de São Paulo. Na cadeia, o cigarro
representa uma importante moeda de troca entre os detentos. Um documento
revela, em valores e quantidade, quanto entrou e quanto saiu de 43
prisões paulistas. A lista é grande. Vai de centros de detenção
provisórios, como Osasco e Vila Prudente, até penitenciárias para
detentos especiais, como a de Tremembé, no interior de São Paulo.
Segundo o Ministério Público, o PCC controla 90% dos presídios de São
Paulo. Por fim, há ainda o curioso “setor da cebola”. Por “cebola”
entenda-se a mensalidade de R$ 600 que os integrantes devem pagar aos
líderes regionais do tráfico. Novamente, o arquivo é preciso e rico em
detalhes. Em um documento de novembro de 2011, a facção lista 25 nomes
de grandes devedores e um montante de R$ 2 milhões não pagos. Em
destaque, há a descrição de prazo de pagamento e a situação de cada um:
“ainda não assumiu”, “foi preso pela Rota” ou “foi roubado em casa”. Em
alguns casos, membros do grupo tentam intervir em favor de amigos ou
familiares “na mira”, como mostra uma ligação telefônica interceptada
pela polícia. “Onde já se viu querer cobrar uma dívida de uma criança de
13 anos? Tá com brincadeira?”, diz um traficante.
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Os documentos obtidos não revelam apenas
parte da dinâmica contábil da maior organização criminosa do País em seu
quartel-general, o Estado de São Paulo. Entre as planilhas de Excel
reunidas pela investigação, há também mensagens trocadas entre líderes
da facção e seus subordinados. São os chamados “salves”. Alguns trazem
mensagens genéricas para motivar os integrantes. Frases como: “É
necessário se doar em tempo de dificuldade.” Logo em seguida, o texto
pede responsabilidade aos bandidos menos assíduos.
“A vida do crime sempre foi louca. Não aceitamos desculpas.”A mensagem,
sem data, é assinada pela “Sintonia Final”, cúpula do PCC liderada por
Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola. Sob seu comando, o grupo
atingiu mais de 11 mil integrantes e expandiu as operações para 22
Estados brasileiros. “A disciplina tem que ser seguida para o bom
andamento da família”, conclamava, ainda, o comunicado da liderança
criminosa. “Família”, neste caso, diz respeito a outro tipo de laço – o
do crime organizado.
No entanto, talvez ainda mais urgente é eliminar a força que a facção
conquistou dentro das cadeias. Graças à frouxidão dentro dos presídios, o
grau de articulação entre os bandidos é imenso e, por isso, é
necessária atuação conjunta de todos os Estados. Uma dos maiores
autoridades em crime organizado no País, o desembargador aposentado do
Tribunal de Justiça de São Paulo, ex-secretário Nacional Antidrogas
(1999/2000) e fundador do Instituto Brasileiro Giovanni Falcone de
Ciências Criminais, Walter Maierovitch diz que as penitenciárias
brasileiras devem adotar o mesmo rigor que os italianos para isolar
mafiosos. “Lá, os presídios têm câmeras, as visitas só acontecem através
de vidro e com microfone, mesmo com advogado, tudo é gravado e a
polícia penitenciária é especializada, capaz de analisar todos os
sinais”, explica. As medidas foram aprovadas pela Corte Europeia de
Direitos Humanos, que entendeu que o rigor não representa violação de
direitos fundamentais em função da grave ameaça à população e ao Estado
Democrático de Direito.
Durante anos, as administrações dos
governos paulistas minimizaram o poder do PCC, que ganhou musculatura,
graças à ausência do Estado. “Não é possível que o governo de São Paulo
conseguisse manter pacificada e estável uma população carcerária de
quase 200 mil pessoas em unidades hiperlotadas, sem condições básicas de
higiene, saúde nem alimentação decente”, afirma a socióloga Camila
Nunes Dias, do Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São
Paulo (USP) e autora de “PCC – Hegemonia nas Prisões e Monopólio da
Violência”.
Vista grossa ao problema permitiu que a organização se conectasse com
outras facções criminosas, como o igualmente temível Comando Vermelho
(CV), no Rio – e, dessa associação, o crack chegasse às bocas de fumo
cariocas. “Foi o PCC que fez o Fernando Beira-Mar (chefe do CV, preso)
mudar de ideia. Ele barrava o crack para evitar mortes de seus ‘soldados
do tráfico’, que também são viciados”, diz Storani, ex-integrante do
Bope.
O procurador de Justiça Antonio Carlos Biscaia, ex-secretário Nacional
de Segurança Pública no governo Lula, afirma que a investigação do
Ministério Público paulista interrompe uma cadeia criminosa muito forte.
Biscaia, que ajudou a mandar para a cadeia os chefões do jogo do bicho
do Rio, em 1993, acredita que o PCC tenha se ramificado para outros
Estados seguindo a mesma lógica dos bicheiros: lucro alto e aliados
comprados dentro do poder oficial. “O crime organizado, seja tráfico de
drogas ou bicho, pratica crimes para auferir lucros e alcança o poder
cooptando integrantes de instituições policiais, e outros acima”,
explica. É fundamental identificar quem seriam os integrantes do crime
organizado dentro do próprio Estado, ou seja, identificar quantos
agentes públicos estão entre os 11 mil integrantes do PCC.
As escutas telefônicas dão pistas
importantes, mas não devem ser superdimensionadas, segundo o sociólogo
Ignacio Cano, membro do laboratório de análise da violência da
universidade do Estado do Rio de Janeiro (LAV-Uerj). “Não é porque uma
pessoa fala alguma coisa que isso deve ser considerado verdade.” Para se
ter certeza, diz, é necessária a convergência entre muitos grampos. “O
suposto plano para matar o governador de São Paulo (Geraldo Alckmin) é
fundamentado em evidências que não são evidentes, são frágeis”, diz o
sociólogo. Gravações também registraram conversas de criminosos
planejando ataques durante a Copa do Mundo, em 2014, se a cúpula da
facção fosse transferida para o Regime Disciplinar Diferenciado, muito
mais duro com os presos. Mais do que nunca, a sintonia fina também é
necessária para saber descartar factoides e concentrar no que realmente
representa perigo, os tentáculos do PCC na sociedade brasileira.
http://istoe.com.br/reportagens/330506_COMO+DERROTAR+O+EXERCITO+DO+PCC