Não se trata apenas
de uma manobra de ocasião para compor maiorias parlamentares e estreitar
o espaço da oposição nas eleições de 2014. Estamos diante de uma
sofisticada tática política, capaz de contentar aliados à esquerda e à
direita e de se colocar como esquerda e direita ao mesmo tempo, sem
assumir claramente nenhum dos lados.
Um exemplo mais claro desse comportamento pode ser visto no vídeo disponível neste link (
http://www.youtube.com/watch?v=td1ywn3SoWchttp://www.youtube.com/watch?v=td1ywn3SoWc).
Ele
não é novo, dura um minuto e capta um trecho do discurso do
ex-presidente Lula nas festividades de 35 anos da Embrapa (Empresa
Brasileira de Pesquisa Agropecuária), em abril de 2008.
Nas
palavras de Lula, o ex-presidente Emílio Garrastazu Médici, que governou
o Brasil entre 1969 e 1974, fez o país viver “o momento mais crítico da
história do país”. Mas também permitiu que “o Brasil encontrasse seu
rumo”.
A fala pode gerar várias controvérsias, mas, acima de
tudo, mostra como funciona o discurso lulista, seguido pela direção do
PT. Parece atacar alguém, mas não ataca. Parece elogiar, mas também não
elogia. Parece ser de esquerda, mas não se assume como tal. Às vezes soa
de direita, mas, habilmente, não deixa marcas explícitas.
No
caso da Embrapa, o ex-metalúrgico parece elogiar a ditadura, mas faz uma
leve ressalva. A ressalva parece crítica, mas tampouco é.
Veja a contradição
Na intervenção, o então presidente diz literalmente o seguinte:
“(...)
É com muito orgulho que de vez em quando as pessoas falam “Lula defende
... elogia o governo Geisel, elogia o não sei das quantas. Pois eu
agora – veja a contradição, Requião – um dos presidentes que permitiu
que a gente vivesse um momento político mais crítico da historia do
país, o presidente Médici, foi o homem que assinou a Embrapa e foi o
homem que assinou Itaipu. (...) Os outros gestos que as pessoas fizeram
que permitiram que o Brasil encontrasse seu rumo. Cada um de nós será
julgado um dia. Cada um de nós será julgado por aquilo que fizemos e
pelo que deixamos de fazer”.
O que Lula quis dizer, exatamente?
Atacar
sua fala como sendo uma rendição ao legado da ditadura ou alienação
sobre o período 1964-85 simplifica o problema e não vai ao âmago da
questão.
A conduta ambígua não indica dúvida, hesitação ou falta
de clareza sobre posição a tomar ou rumo a seguir. Trata-se de discurso
bem pensado e sofisticado para o tipo de projeto que o assim chamado
lulismo vem implantando no país há dez anos.
É sofisticado porque
dialoga com os vários interesses em disputa na sociedade. Contenta
progressistas e conservadores, direitistas e esquerdistas e... não toca
no status quo.
Inúmeros gestos
Intervenções como essa
se desdobraram em inúmeros gestos, falas e iniciativas ao longo dos dois
mandatos de Lula e na gestão de sua sucessora, Dilma Rousseff (menos
competente que seu patrono, nesse quesito).
Ao mesmo tempo em
que usou o boné do MST em manifestação dos sem-terra, Lula praticamente
paralisou a reforma agrária. Deu força à Secretaria de Direitos Humanos
da presidência da República e nomeou um quadro da direita, como Nelson
Jobim, para a pasta da Defesa, o que freou qualquer investigação sobre
os anos de chumbo nos quartéis. Colocou um desenvolvimentista moderado
na Fazenda e soltou as rédeas da ortodoxia no Banco Central. Apoiou a
gestão de Hugo Chávez na Venezuela, para possibilitar a entrada de
empreiteiras e outras empresas brasileiras no país. Mas tratou de
esvaziar propostas de integração estatal, como as da Telesur, Gasoduto
do Sul, Banco do Sul etc. Reclamou da imprensa, mas não tomou nenhuma
iniciativa para formular uma nova regulação para o setor. Fala como
homem de esquerda, mas abrigou figuras egressas da fina flor do
conservadorismo nacional em seus governos.
Os exemplos são
infindáveis e representam a materialização de uma habilíssima política
conservadora de novo tipo. Não se trata de uma modalidade heavy metal do
neoliberalismo, como a dos governos do PSDB (1995-2003). É algo que dá
concessões secundárias a um lado e mantém a essência do modelo
estruturado pelo outro.
Governo sofisticado
Com tais
diretrizes, Lula construiu o governo mais sofisticado e complexo no
Brasil desde Getúlio Vargas (1930-45 e 1951-54). Obteve adesões à
esquerda e à direita, deixando intocados os interesses hegemônicos na
sociedade.
Para Lula e a maioria petista, ele e sua sucessora
construíram governos de coalizão, montados para superar desafios
históricos do país (como se os desafios não tivessem sido colocados
justamente por uma parcela da sociedade que o PT abrigou em suas
gestões).
Para uma facção mais à esquerda do petismo e para seu
tradicional aliado , o PCdoB, este seria um governo em disputa (como se
todos os governos não o fossem, em maior ou menor grau). Através desse
biombo vernacular, aceitam-se quaisquer manobras para se manter a
chamada governabilidade.
Governabilidade, esclareça-se, não é
uma maneira de se manter o comando para se atingir determinado objetivo.
Governabilidade é aqui um fim em si mesmo.
Para a direita – que
disputa com condições muito melhores os rumos da administração –
trata-se de manter espaços nunca perdidos historicamente. Os governos
petistas incorporaram, sem dizer que o fizeram, políticas caras aos
setores monopolistas e rentistas, como o aprofundamento do processo de
privatizações, de isenções tributárias e fiscais e a política de franco
favorecimento aos grandes grupos privados, via BNDES.
A
argumentação de parcela da esquerda lembra que o governo distribuiu uma
parcela do excedente social entre os setores miseráveis e obteve um
crescimento econômico razoável, em comparação com a administração do
PSDB (é possível que as medíocres taxas de crescimento obtidas pelo
governo Dilma quebrem esse parâmetro).
Com tudo isso, uma conclusão é clara: não é fácil se opor a uma gestão desse tipo.
Ganhos reais
Há
ganhos reais para os trabalhadores nas políticas de Lula e Dilma. Há um
aumento da renda individual de forma direta, propiciada pelos aumentos
do salário mínimo e pela elevação do nível de emprego. E há também, de
forma indireta, uma elevação do consumo popular, definida pela ampliação
do crédito pessoal. Como parte das políticas sociais, o governo lançou o
Prouni e o Fies, destinados a financiar a educação de jovens carentes,
através de subsídios indiretos a faculdades privadas e políticas focadas
de transferência de renda, como o Bolsa Família. São práticas
eficientes, mas não desconcentram renda de maneira significativa. Antes,
destinam uma parte do excedente propiciado pelo crescimento do PIB aos
pobres, propiciado por um cenário internacional extremamente favorável
para os países exportadores de commodities.
Cenário atípico
A
primeira década do século XXI constituiu-se num cenário atípico em
temos mundiais. A chegada ao mercado internacional de novos países
importadores de produtos primários – China e Índia -, um aumento
significativo da liquidez – e do crédito – internacional, combinados com
taxas de juros extremamente baixas, possibilitou a entrada de grande
volume de capital nos países do sul do mundo.
O Brasil - bem posicionado como exportador de soja, trigo, carne e etanol - soube tirar vantagens expressivas da situação.
As
ações governamentais nesse período tiveram como uma de suas metas a
ampliação do mercado interno que alavancou um miniciclo de crescimento,
entre 2006 e 2010.
Versões mais toscas da linha lulista não
prosperaram. Os exemplos são dois, Gilberto Kassab e Marina Silva. São
imitações que arranham a superfície da orientação ambígua do
ex-metalúrgico, mas não articulam o conjunto de forças sociais que ele –
montado na máquina estatal – soube tão bem fazer.
Todos se
lembram do ex-prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, fundador do
Partido Social Democrático (PSD). Suas palavras foram sinuosas à época
do lançamento de sua agremiação, em fins de 2011: “Não somos nem de
direita e nem de esquerda”. Opinião igual tem Marina Silva, para quem
sua Rede não está nem a esquerda e nem a direita, mas à frente.
Quais os limites da política lulista?
Essa
é a grande pergunta, depois de dez anos de governo. Os limites são
dados pela estrutura do Estado, que segue a serviço dos interesses
rentistas e dos grandes monopólios.
O que significa mudar a
estrutura do Estado em termos econômicos? Significa embutir custos
adicionais ao seu funcionamento, transferindo efetivamente renda de uma
classe a outra.
O Estado brasileiro sofreu quatro grandes
reformas ao longo do século XX. Ou seja, por quatro vezes rompeu-se o
círculo das mudanças sem mudanças.
A primeira se deu entre 1930 e
1945. Getúlio Vargas alterou a política fiscal, direcionando parte da
arrecadação para iniciativas industrializantes, para a adoção de
políticas sociais permanentes – CLT e previdência social – e para a
reforma da própria máquina pública. Criou um Estado com maior poder de
intervenção na economia.
A segunda reforma do Estado aconteceu por obra da ditadura militar (1964-1985).
Embora
seus governos não tenham sido uniformes, ela aumentou o poder de
intervenção na economia, através da criação de centenas de empresas
estatais e órgãos públicos.
A terceira não chegou a ocorrer
totalmente. Foi esboçada pela Constituição de 1988, através da ampliação
de direitos sociais universais, especialmente nas áreas de saúde (SUS) e
previdência social. Havia na Carta uma tentativa de se criar uma versão
nacional de Estado de Bem Estar Social. No capítulo da ordem econômica,
a Constituição estabelecia diferenças entre empresa estrangeira e
nacional, retiradas no governo FHC.
A quarta e radical mudança
veio nos anos de 1990, nos governos Collor de Mello e Fernando Henrique
Cardoso. Ela pode ser sintetizada como uma tentativa de desconstrução da
primeira (Vargas) e terceira (Carta de 1988) intervenção. Essa mudança
começa com a aprovação do Programa Nacional de Desestatização (
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8031.htm), em 1990, renovado em 1997 (
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9491.htm).
A lei pretendia “reordenar a posição estratégica do Estado na economia,
transferindo à iniciativa privada atividades indevidamente exploradas
pelo setor público”. Ela possibilitou uma radical alteração do papel do
Estado. Juntamente com 34 emendas constitucionais, aprovadas entre 1995 e
2002 (http://www.dji.com.br/constituicao_federal/ec.htm), o governo
Cardoso ajustou o país à nova ordem mundial, pautada pelos preceitos do
Consenso de Washington.
O papel de Lula
O governo Lula
não apenas manteve todas essas mudanças – inclusive o Programa Nacional
de Desestatização -, como tomou iniciativa de realizar mais 28 emendas
constitucionais, que não se contrapuseram às diretrizes da administração
anterior. No caso, por exemplo, da reforma na Previdência Social
(http://www.dji.com.br/constituicao_federal/ec047.htm),
de 2005, a intenção foi de aprofundar o modelo liberal. O mesmo pode
ser dito de iniciativas na legislação ordinária, começando pela Lei de
Falências (2003), até as privatizações realizadas pelo governo Dilma,
sob o eufemismo de “concessões”, sem contar as dezenas de setores que
foram agraciados com desonerações na folha de salários.
Assim, as
melhorias sociais – que são reais – em vários aspectos da vida da
população mais pobre, obtidas nos governos petistas, foram alcançadas
graças a um cenário de crescimento econômico, sem tocar na organização
do Estado, sem ampliar serviços públicos universais – como saúde e
educação públicas -, que se constituem em ganhos indiretos, mas
universais. Aliás, na saúde pública, o que se nota é um avanço dos
planos de medicina privada, das organizações sociais e um paulatino
sucateamento do SUS, estabelecido na Constituição de 1988.
Cabe tudo
Repetindo:
a justiça social lulista se faz via mercado, via crédito e aumento da
massa salarial que dependem de cenários de crescimento econômico.
Para
esse tipo de modelo, não é necessário uma nova repartição de renda e da
riqueza social. O discurso político para essa situação não deve
incentivar o confronto e a luta de classes, pois não é um discurso
mudancista. É o discurso que exalta ganhos, ao mesmo tempo em que mostra
o valor da estabilidade. Aliás, é a apologia da estabilidade que
possibilita ganhos.
Cabe tudo nessa formulação, desde avaliações
incompreensíveis sobre o período mais pesado da ditadura até o líder do
movimento das pequenas e médias empresas.
É uma fala marcadamente ambígua, sofisticada e, sobretudo, conservadora.
Gilberto Maringoni, jornalista e
cartunista, é professor de relações internacionais da Universidade
Federal do ABC. Doutor em história pela Universidade de São Paulo, é
autor de “A Venezuela que se inventa – poder, petróleo e intriga nos
tempos de Chávez” (Editora Fundação Perseu Abramo).