domingo, 14 de julho de 2013

SBT infantil


Enquanto as demais emissoras se distanciam dos programas para crianças, a tevê de Silvio Santos aposta no público mirim e atinge a vice-liderança pela manhã e à noite

Tamara Menezes
 

O SBT vem investindo na programação voltada para crianças, enquanto outros canais, como a Rede Bandeirantes e a Rede Globo, eliminam aos poucos as atrações infantis da grade. Resultado: a emissora de Silvio Santos alcançou a vice-liderança em audiência e consolida o público mirim como alvo principal de sua estratégia comercial. Atualmente, exibe pela manhã “Bom Dia & Cia”, em que os palhaços Patati Patatá e Bozo se revezam entre as atrações. Na parte da tarde, ataca com séries americanas dos anos 1980 voltadas para o segmento infanto-juvenil e, no horário nobre, com as novelas “Carrossel” e “Chiquititas”, que estreia na segunda-feira 15 – sendo que a primeira chega ao final duas semanas depois. A grade infantil já bateu em audiência o programa matinal “Encontro com Fátima Bernardes”, da Globo, e à noite costuma perder apenas para o “Jornal Nacional”. “A direção decidiu pela nova adaptação de “Chiquititas” com base nas pesquisas que indicavam a carência de programação do gênero no horário nobre”, diz Íris Abravanel, autora das versões e diretora do núcleo infantil.

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ESCOLINHA
O orfanato de "Chiquititas": tentativa de repetir o sucesso de "Carrossel"

A versão nacional da novela custará R$ 54 milhões e seguirá na linha enredo ingênuo e musicais.
“A previsão é de que os números vão superar os ótimos resultados da antecessora”, estimou o diretor comercial Glen Valente. Especialmente em razão do aumento da publicidade e da renda extra com licenciamento de produtos e mais televisores sintonizados.
O dado surpreendente é que, entre os espectadores das novelinhas do SBT, mais da metade – 53% – é maior de 25 anos.

“O canal ainda atende pelo menos metade da população, que não tem tevê por assinatura”, afirma Dirceu Lemos, professor da Universidade Metodista de São Paulo (Umesp).

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No novo cenário em que o SBT nada de braçada, mudanças de hábitos são sensíveis. Para o crítico Ricardo Feltrin, a aposta da Globo na programação paga (com o canal Gloob) responde a um segmento: “Ela acha que as crianças com poder aquisitivo, que podem comprar brinquedos, estão no cabo.” Do seu lado, o SBT se mantém conservador. Mas o que desagrada parte dos telespectadores é a escolha das séries americanas, reprisadas à tarde.

“São seriados velhos. Se melhorasse a qualidade da programação, a audiência seria muito melhor”, afirma Feltrin.

Um vovô apressado e protegido

Cheio de amigos no Paquistão, Osama bin Laden passava o tempo no esconderijo cuidando dos netos. Escapou de uma blitz de trânsito que flagrou seu carro em alta velocidade e construiu uma fortaleza, sem nunca levantar suspeitas

Mariana Queiroz Barboza
 

Um guarda de trânsito paquistanês poderia ter encerrado a caçada pelo homem mais procurado do mundo menos de dois anos depois do atentado de 11 de setembro de 2001. Durante uma blitz em Swat, no Paquistão, um policial parou, por excesso de velocidade, o carro que levava o líder da rede terrorista Al-Qaeda, Osama bin Laden. Uma conversa rápida com um dos capangas de Bin Laden, então sem sua barba característica, fez o militar liberar a passagem – e, assim, a perseguição ao terrorista continuaria ainda por quase uma década. A revelação está no relatório de 336 páginas da Comissão de Abbottabad, cidade onde Bin Laden se escondeu até ser morto por americanos, que foi obtido com exclusividade pela rede árabe Al Jazeera. Formada pelo Parlamento paquistanês para investigar a missão de 2 de maio de 2011, data oficial da morte de Bin Laden, a comissão entrevistou mais de 200 testemunhas. Além de revelar como foi possível viver durante tanto tempo em segredo, sem levantar suspeitas, o documento mostra que Bin Laden só conseguiu se manter oculto graças à colaboração dos próprios paquistaneses.

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BIN LADEN
A conivência dos paquistaneses ajudou o terrorista
a se esconder durante quase uma década

Segundo o relatório, o terrorista passou por seis lugares diferentes nos nove anos em que viveu incógnito no Paquistão, sendo os últimos seis na casa onde foi encontrado. Após escapar por pouco dos americanos na batalha de Tora Bora, no Afeganistão, em dezembro de 2001, acredita-se que Bin Laden tenha chegado ao país pelo noroeste. Três anos depois, ele comprou um terreno numa área residencial de Abbottabad com carteira de identidade falsa e começou a construção de um complexo cercado por muros altos. Detalhe: a casa ficava a apenas um quilômetro, em linha reta, da Academia Militar de Kakul, uma espécie de West Point do Paquistão. E, por incrível que pareça, nenhum oficial que dava expediente ali jamais notou o vizinho suspeito.

Pouco apegado a bens materiais, Bin Laden tinha apenas seis batas árabes (três para o verão e três para o inverno), uma jaqueta preta e duas blusas de frio. Como nunca saía de casa – por “falta de dinheiro”, diziam –, fora apelidado pelas crianças da casa de “tio pobre”. A comissão observa também que, para não ser identificado por satélites espiões, Bin Laden usava um chapéu de caubói. Suas mulheres disseram que ele “confiava em Alá para sua proteção”.

O chefe da Al-Qaeda era precavido. Nunca recebia visitas e não permitia que seus netos frequentassem a escola. Ele mesmo cuidava da educação religiosa das crianças, supervisionava seu tempo livre, o que incluía cultivar hortas, e premiava os melhores desempenhos. Quando se sentia mal (acredita-se que sofria com problemas de rim e coração), tratava-se com remédios tradicionais e ingeria chocolate e maçã para recuperar a energia. Na propriedade de Abbottabad, além do núcleo de Bin Laden, viviam as famílias dos irmãos Ibrahim e Abrar, seus homens de confiança. Dos 27 residentes, 11 eram adultos. Nenhum deles pagava impostos e as autoridades, ao que parece, jamais se preocuparam com isso. A família aproveitou um terremoto que danificou um dos muros da casa, em 2005, para construir ilegalmente um terceiro andar, e nem isso chamou a atenção do governo local. “Como a vizinhança toda, autoridades locais, a polícia e agentes de segurança e inteligência, todos deixaram passar o tamanho (da casa), o formato esquisito, o arame farpado, a ausência de carros e visitantes por um período de quase seis anos é inacreditável”, diz o relatório. “Todo o episódio parece, em grande parte, ser uma história de complacência, ignorância, negligência, incompetência, irresponsabilidade e possivelmente pior em vários níveis dentro e fora do governo”, conclui o documento.
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Foto abre: Al-Jazeera/AP photo

Egito, o desafio dos liberais


Após o golpe militar, surge o esboço de um governo liberal no Egito, mas a tarefa de retomar a democracia é uma árdua missão diante do caos nas ruas

Mariana Queiroz Barboza
 

Quando o general Abdul Fattah al-Sisi anunciou a deposição do presidente do Egito, Mohamed Mursi, no dia 3, ele não estava sozinho. Ao seu lado, encontravam-se o Nobel da Paz e líder da oposição liberal, Mohamed ElBaradei, representantes do movimento rebelde conhecido como Tamarod e vários outros políticos. A intenção era mostrar que a insatisfação com Mursi escrachada nas ruas pelos milhões de manifestantes tinha se generalizado e que o Exército estava comprometido em transferir o poder para as mãos de civis o mais rapidamente possível. Na semana passada, a transição começou a tomar forma. O economista Hazem al-Beblawi assumiu como primeiro-ministro e ElBaradei, ex-chefe da Agência Internacional de Energia Atômica da ONU, como vice-presidente. O cenário nas ruas, porém, continuou tenso. O movimento político-religioso ao qual Mursi pertence, a Irmandade Muçulmana, prometeu resistência e a violência se intensificou. Só na segunda-feira 8, mais de 50 pessoas foram mortas pelo Exército ao defender o retorno de Mursi, que estaria preso na sede da Guarda Republicana.

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NOVO GOVERNO
Mohamed ElBaradei (acima) e Hazem al-Beblawi
têm a missão de restabelecer a democracia

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Menos organizados que os muçulmanos conservadores, os liberais seculares agora devem provar que o rumo da democracia é possível e que o país pode ter um destino diferente da Argélia e do Irã. Não é uma tarefa simples. Na Argélia, uma guerra civil matou cerca de 200 mil pessoas nos anos 1990, depois que um golpe militar impediu que os islâmicos assumissem o poder. No Irã, desde a Revolução de 1979 os islâmicos nunca mais deixaram o poder, o aiatolá é um líder supremo e a democracia continua a ser um sonho distante. Equilibrar-se entre os extremos parece ser uma tentativa do presidente interino Adly Mansour, que sinalizou que abriria espaço para a Irmandade Muçulmana num governo tecnocrata. Com seus líderes perseguidos e presos, entretanto, o grupo mostrou-se pouco disposto ao diálogo.

As apostas dos gigantes na briga do Pré-sal


Grandes petrolíferas internacionais se preparam para disputar o leilão de um dos maiores campos de petróleo do mundo. Saiba como isso vai ajudar a economia brasileira

Michel Alecrim e Wilson Aquino
 

O leilão da maior descoberta de petróleo no pré-sal já feito no Brasil, o campo de Libra, na Bacia de Santos, será uma espetacular queda de braço entre as gigantes petrolíferas internacionais. Pelo menos 30 empresas de 21 países devem fazer lances, isoladamente ou em consórcios, para lutar pelo direito de explorar um volume estimado entre 26 bilhões e 42 bilhões de barris. Lançado na semana passado, o edital prevê a entrega de documentos até setembro e a realização do leilão no dia 21 de outubro. Entre as principais concorrentes, é considerada certa a participação da anglo-holandesa Shell, das americanas ExxonMobil e Chevron, da britânica BP e da chinesa Sinopec. Para especialistas, todas elas de alguma forma devem assediar a Petrobras, parceira ideal diante de sua expertise na exploração da camada do pré-sal. Por lei, a petrolífera brasileira tem direito a 30% do campo a ser leiloado e pode disputar os 70% restantes. “A Petrobras é uma referência em tecnologia de exploração em águas profundas, mas terá que se capitalizar para retirar petróleo de Libra”, diz Adriano Pires, consultor do Centro Brasileiro de Infraestrutura. “Por isso, uma parceria com os chineses, que têm disponibilidade de capital, é cada vez mais provável.”
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EXPERTISE
Plataforma da Petrobras: empresa é parceira
estratégica para os estrangeiros interessados no pré-sal

O vice-presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobras (Aepet), Fernando Siqueira, explica por que os gigantes do petróleo estão tão interessados no leilão, considerado o mais importante do setor em muitos anos: “As maiores economias do mundo têm reservas limitadas e a produção no Mar do Norte decaiu muito de uns tempos para cá”, diz. Segundo ele, os chineses são os mais preocupados com o futuro, pois seus estoques de 12 bilhões de barris duram, no máximo, dois anos. A Inglaterra, que passou a ser importadora, também precisa ampliar seu potencial de exploração. “Elas virão com tudo sobre Libra, onde não há risco. É um bilhete premiado”, afirma o engenheiro Siqueira, que prevê um grande acordo entre as chamadas big oils, Exxon, Shell e Chevron. “Existe uma tentativa de procurar novos campos em certas áreas como o Golfo do México, mas poucos lugares se comparam ao pré-sal brasileiro”, diz o economista Paulo Wrobel, especializado na área de energia.

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POTENCIAL
Magda Chambriard, da ANP:

"O pré-sal desperta o interesse de diversos países"

Nos próximos meses, as gigantes vão fazer seus estudos financeiros para saber até quanto podem elevar seus lances. Para Cristiano Prado, gerente de competitividade industrial e investimentos da federação das indústrias do Rio (Firjan), as petrolíferas também precisam estudar recursos tecnológicos e humanos. “Quem der a jogada certa, pode melhorar seu posicionamento global”, diz Prado. A exploração de Libra é boa para o Brasil em todos os sentidos. De imediato, quem vai lucrar é a indústria brasileira. Para extrair o mineral de uma profundidade de sete quilômetros abaixo do nível do mar, serão necessárias entre 12 e 15 plataformas. Pelas regras, as petrolíferas serão obrigadas a comprar um conteúdo mínimo de 37% de equipamentos fabricados no Brasil, percentual que vai aumentando ao longo dos anos. “Hoje, os estaleiros brasileiros empregam 70 mil trabalhadores, mas em quatro anos vamos pular para 100 mil”, prevê o presidente da Associação Brasileira das Empresas de Construção Naval e Offshore (Abenav), Augusto Mendonça.

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Apesar do lucro inicial, o Brasil vai começar a faturar mesmo quando a produção estiver a todo o vapor. Em 2022, no ápice, estima-se que a receita do campo de Libra fique em torno de R$ 75 bilhões. Só em royalties, gerariam R$ 11 bilhões. Apesar de o governo defender o uso dessa verba para a educação (75%) e saúde (25%), a destinação ainda está em discussão no Congresso Nacional. Magda Chambriard, diretora da ANP, se encontrou recentemente com investidores em Singapura e na Inglaterra, onde ressaltou o fato de Libra já ter passado por avaliações técnicas. Não só o risco é menor, como o vencedor poderá encontrar soluções para extrair até mais do que o órgão previu. “A primeira licitação do pré-sal está despertando interesse em todo o mundo”, disse Magda à ISTOÉ. “Tanto em Londres quanto em Singapura, notei muito interesse por parte das grandes petroleiras como também dos investidores e da imprensa internacional. Tenho a certeza de que o leilão vai ser um sucesso.”

Fotos: WILTON JUNIOR/AE; Aline Massuca/Valor/Folhapress

Bebês com selo de garantia


Embriões começam a ser submetidos ao mais amplo teste genético disponível. O método chegará em breve ao País e permite que sejam escolhidos os bebês com menor risco para doenças

Mônica Tarantino
 

Como 40% dos casais que fazem tratamentos de infertilidade, a americana Marybeth Scheidts, 36 anos, e o marido, David Levy, 41, estavam prestes a entrar em mais um ano de tentativas de engravidar, com medicamentos e técnicas de medicina reprodutiva. Faltava pouco para desistirem. Foi então que o médico do casal, o especialista em reprodução humana Michael Glassner, da Filadélfia, nos Estados Unidos, propôs algo jamais tentado: submeter os embriões gerados no laboratório com as células reprodutivas de ambos ao mais novo e amplo teste de sequenciamento genético existente. “O objetivo era selecionar o embrião mais saudável e com maiores chances de levar a uma gravidez”, disse Glassner à ISTOÉ. Deu certo. De 13 embriões, foram selecionados três e, desses, um foi escolhido para ser implantado no útero de Marybeth. Em maio, ela deu à luz Connor Levy. Outro casal americano que participou desse estudo aguarda o nascimento do filho para o próximo mês. O anúncio dos nascimentos foi feito na última semana, na Inglaterra, durante o encontro da Sociedade Europeia de Reprodução Humana e Embriologia.

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SUCESSO
Connor foi o primeiro do mundo a passar por uma parte do teste.
O geneticista Ciro diz que o recurso pode baratear o tratamento

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O exame usado pelos pesquisadores, o NGS, sigla do nome em inglês Next Generation Sequencing, permite checar anormalidades no número de cromossomos (estruturas que guardam os genes), identificando partes que faltam ou sobram. Também tem potencial para apontar, simultaneamente, mutações em genes e variações em uma região do código genético que é herdada exclusivamente da mãe, chamada de DNA mitocondrial – no caso de Connor e da outra criança, foram feitas apenas análises dos cromossomos. “Ele propicia a investigação de 300 genes associados a 700 doenças. O teste irá reduzir o número de crianças nascidas com severas anormalidades”, disse à ISTOÉ o cientista Dagan Wells, da Universidade de Oxford, no Reino Unido, responsável pelas análises genéticas. Hoje, o teste mais usado – o CGH – rastreia cerca de 100 enfermidades.

O novo teste inaugura a possibilidade de ler todo o DNA dos embriões antes que sejam implantados a um custo mais baixo e sem a necessidade de exames específicos para cada doença. “Evidentemente isso deve ser precedido por sessões de aconselhamento genético do casal para planejar o rastreamento e evitar exageros”, diz o médico geneticista Ciro Martinhago, doutor em medicina reprodutiva e diretor do laboratório de análises genéticas Chromossome, em São Paulo.

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No que se refere ao sucesso dos tratamentos de infertilidade, os pesquisadores comprovaram a eficiência da nova metodologia. “O uso de testes mais precisos para selecionar os melhores embriões aumenta a taxa de nascimentos em cerca de 50% e reduz o índice de abortos na mesma proporção”, comemora Glassner. Outro avanço destacado por ele é o fato de ter conseguido a gravidez com um único embrião, prevenindo as gestações múltiplas resultantes da transferência de dois ou mais embriões. Também diminui o número de tentativas.

Haverá ainda economia. O CGH, por exemplo, menos abrangente, custa cerca de R$ 1,8 mil por embrião. “O NGS deve custar um pouco menos da metade”, diz o geneticista Martinhago. A partir de setembro, o brasileiro oferecerá o recurso em sua clínica. Outro exame que estará disponível no Brasil este ano é o SNP microarray. Ele procura alterações em cerca de um milhão de regiões do DNA, enquanto o CGH consegue ler dez mil regiões. “Também indica se os cromossomos duplicados vêm do pai ou da mãe. Dependendo da origem, podem causar diferentes síndromes”, diz o geneticista. Hoje, as amostras são analisadas fora do País, o que eleva o preço e restringe o acesso.
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Fotos: Pedro Dias

A nova juventude católica brasileira


O jovem fiel que receberá o papa no Brasil não se dedica mais só à espiritualidade. Ele defende uma agenda social, quer acabar com a pobreza e discute tabus

Rodrigo Cardoso e João Loes
 

ISTOÉ Online conversou com alguns jovens que irão participar da jornada. Assista ao vídeo:

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Na próxima semana, o papa Francisco irá desembarcar no Brasil e dirá, em Aparecida e no Rio de Janeiro, o que o catolicismo espera dos jovens. O pontífice encontrará no País, durante a Jornada Mundial da Juventude (JMJ), que acontece entre os dias 22 e 29 deste mês, fiéis diferentes dos encontrados pelos dois últimos papas. Após um longo período de preponderância da experiência religiosa individual, ganha impulso agora o engajamento social. Com suas bandeiras e expectativas de transformações nas áreas de saúde e educação, respeito às diferenças, diminuição da violência e fortalecimento de uma economia mais solidária, a nova juventude católica brasileira busca eco na palavra do papa que prega a humildade e o amor ao próximo.
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UNIÃO
A chegada da Cruz Peregrina ao Rio para a Jornada Mundial da
Juventude, que vai reunir 2,5 milhões de pessoas: a formação
humanística do papa casa com os anseios dos jovens

“O jovem, agora, quer saber mais da sua Igreja, procura uma que o escute e o ajude na formação religiosa e humana dele”, diz o paulista Leonardo Cavalcante, 23 anos, que estará na Jornada. O papa Francisco está informado sobre a juventude brasileira. Na Semana Santa, autoridades religiosas do País estiveram em Roma e entregaram a ele uma edição especial da revista “Jovens Conectados”. ISTOÉ teve acesso ao trabalho. Por meio dela, o pontífice pôde conhecer o funcionamento da maioria das cerca de 60 comunidades de evangelização da juventude de expressão nacional. As manifestações organizadas por estudantes em junho também ressoaram no Vaticano. A cúpula da Igreja modificou trechos dos discursos de Francisco para o evento no Brasil. Aqui, o pontífice deverá dialogar e apontar caminhos para a juventude que quer se alimentar na palavra de Deus não apenas para cuidar da espiritualidade, mas para ajudar a mudar o mundo, exatamente como faz Cavalcante. Aluno do curso de engenharia de gestão em uma faculdade pública do ABC paulista, ele, hoje, segue a linha jesuíta de reflexão e ação – a mesma do papa – depois de também ter frequentando grupos de oração da Renovação Carismática, denominação de cunho mais festivo, que esbanja alegria, canta e agita os braços em celebrações. A atuação do universitário agora é voltada para a denúncia do que está errado e para a luta por uma sociedade mais justa e igualitária.

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TRANSFORMAÇÃO
Fiéis de todo o Brasil irão para a Jornada: jovens querem agenda mais social

O jovem estudante, que pertence à pastoral universitária, viajou para a Argentina (três vezes) e para o Chile, para promover o bem e a igualdade em comunidades carentes por meio de um projeto chamado Mãos à Obra. Fez o mesmo aqui no Brasil. O trabalho funciona da seguinte forma: um grupo de universitários desembarca em um local onde a pobreza impera e ali eles colocam suas habilidades profissionais em prática, construindo e reformando bibliotecas e paróquias, ministrando palestras sobre saúde e direitos humanos ou realizando consultas odontológicas. “A juventude quer colocar mais a mão na massa, mostrar que pode transformar o mundo”, diz ele, que é colaborador voluntário do setor universidades da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).

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EXPECTATIVA
No Santuário de Aparecida, visitantes já
encontram imagens do papa nas lojas de suvenir

Atualmente, o jovem católico que quer transformar a sociedade está ligado à Pastoral da Juventude (PJ), majoritariamente, e também às Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). As CEBs eram o único espaço viável para quem tinha uma ação política e social entre os anos 1960 e 1980, mas perderam importância nos dois últimos pontificados e com a redemocratização do País. Agora, à luz dessas novas demandas dos fiéis, elas ganham impulso. Segundo a CNBB, em 1995 havia 70,5 mil comunidades eclesiais em funcionamento no País. Com o crescimento do número de paróquias, o número de CEBs saltou para 107 mil. Os irmãos paulistanos Pedro Romero, 16 anos, e Taynah Romero, 20, são exemplo disso. A mãe deles teve sua formação religiosa dentro da CEB do bairro do Belém, na zona leste de São Paulo, onde havia grande envolvimento de leigos e uma ampla agenda social. Hoje, eles também participam da CEB, mas dão vazão aos desejos de engajamento, sobretudo a partir do que propõe a PJ. Nos encontros dos quais participam, eles discutem assuntos como família, educação e segurança e traçam estratégias para que suas demandas sejam ouvidas e colocadas em prática. “Fomos às manifestações do Movimento Passe Livre (MPL) e apresentamos uma de nossas bandeiras – a rejeição aos projetos de redução da maioridade penal”, explica Taynah. “Vamos além da espiritualidade.”

Priscila Naves, 21 anos, articuladora nacional da PJ Estudantil, explica que essa vontade de ir além e atuar no campo social tendo a fé como balizador moral é um dos desejos da Pastoral para todos os seus membros. “É o resultado do que chamamos de educação libertadora”, diz. Essa formação começa aos dez anos, com discussões que ajudam na construção do caráter e da identidade da criança. Com o tempo e o acompanhamento da PJ, o adolescente começa a se perceber no contexto de sua família, escola, bairro, cidade e país. “Trabalhamos para que o jovem tenha uma visão crítica do mundo e que, a partir disso, proponha mudanças”, explica.

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ENGAJADO
"A juventude quer colocar mais a mão na massa,
mostrar que pode transformar o mundo"
,
diz Cavalcante

O fato de o papa atual ter um forte discurso social – diferentemente de seus antecessores João Paulo II e Bento XVI, época em que a Igreja concentrou forças no Vaticano e retirou poder de bispos que faziam a opção pelos pobres – casa com os anseios do jovem católico de hoje. A pesquisa “Religião e Sociedade” publicada em 2011, na qual foram ouvidos 700 brasileiros entre 15 e 24 anos religiosamente ativos, revelou que 65,9% dos fiéis da Igreja de Roma acabariam com a miséria e a pobreza (leia quadro ao lado) se, num passe de mágica, pudessem mudar algo no País. Eles também destacaram a solidariedade como o valor mais importante para a sociedade.

Na opinião da socióloga Silvia Fernandes, coordenadora da pesquisa, atualmente a juventude busca novos caminhos de participação social que não passam necessariamente por instituições. “Mas ela pode considerá-la se estas se configuram em espaço de aceitação e realização do jovem que deseja se perceber ativo socialmente”, diz ela, que é professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Está aí uma grande oportunidade para a Santa Sé recuperar prestígio e tentar conter a sangria do grupo de fiéis que representa o futuro da religião. Entre 2000 e 2010, segundo o IBGE, a população católica entre 15 e 29 anos diminuiu 7,1%.

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PREPARATIVOS
Enquanto em Copacabana (acima) o palco que receberá o papa está quase pronto,
em São Paulo os irmãos Pedro e Taynah (abaixo) ensaiam a participação na JMJ

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O carioca Rodolfo Viana, 28 anos, crismado na catedral metropolitana do Rio de Janeiro, afastou-se do catolicismo por dois anos depois de ser praticamente expulso da Renovação Carismática, um dos 61 movimentos de evangelização da juventude computados pela CNBB. Motivo: um de seus coordenadores descobriu que Viana tinha um namorado. “Como não conseguia ser ex-gay, me tornei ex-católico”, diz. Ele só retornou à religião ao conhecer o Diversidade Católica, um grupo de gays católicos que se reúne a cada 15 dias – e que conta com a colaboração de padres e teólogos – para conciliar as identidades religiosa e sexual, numa demonstração de que tabus, como a homossexualidade, agora encontram espaço para discussão entre os fiéis. “Hoje, não sou mais vítima da Igreja, que faz parte da minha cultura e formação moral. Bater o pé e não sair do banco do catolicismo é fazer política. Do contrário, estaria me amputando”, diz Viana.

O jesuíta Francisco é um papa que critica a corrupção, o neoliberalismo e defende o direito dos pobres. Adota um posicionamento de esquerda nas questões sociais. Ele sabe que ao não aceitar o livre arbítrio da juventude a Igreja deixa de evangelizar muitos fiéis. Durante a Jornada, o Diversidade Católica irá promover, na UNIRio, um encontro para que jovens católicos homossexuais contem como vivem a sua identidade religiosa. Há uma expectativa em torno do que o pontífice dirá aos jovens sobre os assuntos doutrinários, como o segundo casamento, a ordenação feminina e, principalmente, sexo. Desde o Concílio de Trento, no século XV, onde se reforçou, só para dar um exemplo, o celibato de padres, a Igreja não muda o discurso sobre a sexualidade. Conservador em temas morais, Bergoglio não deverá ousar nessa seara, segundo estudiosos.

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Mas o argentino costuma quebrar protocolos. Já disse, inclusive, que o cristão tem de ser revolucionário, ir contra a corrente. Foi ele quem fez as pessoas voltarem novamente os olhos para o catolicismo, que se encontrava desacreditado e manchado pelos escândalos de pedofilia. Tem, portanto, grande capacidade de atrair a juventude, inquieta por natureza e, atualmente, com anseio de viver sua fé com justiça social.

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Fotos: Guito Moreto/Ag. O Globo; Kelsen Fernandes

Os caminhos de Francisco no Brasil

ISTOÉ teve acesso ao aposento franciscano que o papa ocupará no Rio de Janeiro e mostra como será sua rotina no País, o cardápio preparado pela chef que já atendeu Madonna e o superesquema de segurança

Mariana Brugger e Tâmara Menezes
 

O papa Francisco chega ao Brasil na segunda-feira 22, para dar início à Jornada Mundial da Juventude (JMJ), mais franciscano do que nunca. Pelo menos é isso o que revelam os aposentos que ocupará durante os seis dias que permanecerá no Brasil. Na quinta-feira 11, ISTOÉ visitou o quarto número cinco, no primeiro andar da Residência Assunção, o casarão colonial que abriga os arcebispos do Rio de Janeiro e que será temporariamente a morada do pontífice. A simplicidade impera. Nas paredes de cor creme, a única decoração é um crucifixo de madeira sobre uma cama de solteiro sem cabeceira, com apenas um travesseiro. Não há tapetes, o piso é de tacos de madeira e cortinas de voil branco filtram a luz proveniente de três janelões que se abrem para a Mata Atlântica. Além da cama, uma cadeira de balanço, um pequeno frigobar e uma escrivaninha compõem o mobiliário do aposento de Francisco. Os lençóis e toalhas têm bordados o brasão da Arquidiocese, já que o papa dispensou o símbolo do Vaticano. O banheiro de aproximadamente quatro metros quadrados foi reformado recentemente. Ganhou acabamento com porcelanato branco e uma ducha de aço inox. As orações serão feitas na Capela Nossa Senhora de Assunção, a cerca de cinco metros do dormitório. As refeições serão em conjunto com os 30 cardeais que estarão hospedados em um prédio anexo, num refeitório com 120 lugares e louças de porcelana branca, também com o brasão da Arquidiocese.

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SIMPLICIDADE
O quarto onde ficará o papa Francisco, na Residência Assunção não possui tapete,
as paredes são decoradas apenas com um crucifixo e está a cinco metros da capela

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Defensor de uma Igreja mais humilde, o papa Francisco dá o exemplo reduzindo ao máximo os custos de sua estadia no Brasil, para o megaevento católico que reunirá cerca de 2,5 milhões de fiéis. Para a missa que encerra a JMJ, por exemplo, pediu apenas água. Nos dias em que ficará hospedado na Residência Assunção, Francisco determinou que fosse providenciado um cardápio bem simples. Será atendido pela irmã Terezinha Fernandes, encarregada da cozinha, que servirá arroz e feijão, pão de queijo, churrasco e doce de leite ao pontífice. Na mesma linha, o artista sacro Cláudio Pastro criou cálices em latão, apenas com banho de prata na parte externa e uma fina camada de ouro na interna, como manda o protocolo católico. Uma peça muito mais modesta do que as que costumavam usar os papas que o antecederam.
Para chegar à Residência Assunção, o papa passará pela estrada que é também um dos acessos ao Cristo Redentor, ponto turístico que Francisco verá do helicóptero, no sábado 27, durante um dos trajetos da JMJ. Embora não tenha pedido, o papa, de 76 anos, terá um cardiologista presente em todos os seus compromissos. Será o pernambucano Roberto Hugo, que já adianta o diagnóstico: “Talvez ele seja o mais saudável da comitiva que o acompanha.”

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POCELANA
A louça que o papa usará tem o brasão da
Arquidiocese do Rio, e não do Vaticano

A mensagem que o Papa divulgará durante a JMJ, acreditam religiosos e estudiosos ouvidos por ISTOÉ, deverá ser um apelo para que os jovens valorizem menos as coisas materiais e fortaleçam os laços espirituais. O jornal espanhol “El País” noticiou que Francisco vai falar sobre as manifestações que estão acontecendo em todo o Brasil e afirmará que as “demandas levantadas por maior justiça não contradizem o Evangelho”. O arcebispo do Rio, dom Orani Tempesta, também presidente do Comitê Organizador Local (COL) da JMJ, disse à ISTOÉ que não sabe se os protestos estarão ou não no discurso papal, mas como a CNBB se posicionou de forma favorável às manifestações, o santo padre deverá seguir o mesmo caminho. “Ele tem uma preocupação social, quer uma vida melhor para as pessoas, e deve falar sobre isso nos discursos”, acredita. Mais convicto, o padre Luís Correa, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio e jesuíta, da mesma ordem de Francisco, lembra que “o papa já disse em outras ocasiões que o cristão tem que se meter na política, não pode lavar suas mãos.” A proximidade entre argentinos e brasileiros também pode ser explorada. “Somos países de injustiças, que passaram por regimes de exceção, que querem uma Igreja voltada para o despojamento”, afirma dom Sérgio Castriani, arcebispo de Manaus, que esteve com o papa recentemente. Partiu de Francisco a vontade de visitar favelas e se encontrar com menores infratores. Por isso, sua agenda inclui a comunidade Varginha, em Manguinhos, que recebeu uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) recentemente, e conversas com internos do Departamento Geral de Ações Sócio-Educativas.

O papa, já famoso por quebrar protocolos, é uma preocupação da segurança. “Tudo foi feito em contato com o Vaticano”, conta José Monteiro, diretor de operações da Secretaria Extraordinária de Segurança para Grandes Eventos (Sesge), ligada ao Ministério da Justiça. Além dos agentes deslocados para a cidade, a Marinha e o Exército também cuidarão de pontos estratégicos, como a orla do Rio, a Baía de Guanabara e a Baía de Sepetiba. Equipes especiais treinadas em combater terrorismo e  atentados de ordem nuclear, biológica, química e radiológica integram o gigantesco esquema (leia quadro ao lado).

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CARDÁPIO
A chef Monique Benoliel, que atendeu Madonna, vai oferecer
ao papa queijo coalho e vinho Salton Talento 2007

A postura carismática do papa Francisco inspirou alguns mimos que são quase desobediências. “O papa é o meu chefe, mas imagina se eu vou servir só água para ele! Sou simples também, mas quero mostrar que a culinária brasileira é a melhor do mundo”, conta a chef Monique Benoliel, responsável pelo bufê que servirá os aposentos do pontífice no dia da missa, no domingo 28, em Guaratiba. No cardápio, vai entrar brigadeiros, bobó de camarão, espetinho de queijo coalho, doce de abóbora com coco e sucos de frutas 100% nacionais. Monique, que é judia, é chef requisitada de grandes eventos, como o Rock in Rio – e dela pode-se dizer que já serviu do sagrado ao profano. “Atendi, por exemplo, a Madonna”, diz, em referência a uma artista que vive às turras com a Igreja. Como todo bom cristão, Francisco aprecia vinho tinto. Aqui, ele e sua comitiva degustarão o “Salton Talento 2007”, 60% cabernet sauvignon, 30% merlot e 10% tannat, produzido no Rio Grande do Sul. Durante a Jornada, o Papa se dirigirá ao público sempre em português.

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Abusos nas forças armadas


ONG de ex-sargentos recebe duas denúncias por mês de assédio sexual e moral no universo militar, mas elas costumam acabar arquivadas. Vítimas reclamam que corporativismo da instituição dificulta punições

Nathalia Ziemkiewicz
 

Há quatro anos foi fundada a primeira ONG que ajuda vítimas de abusos das Forças Armadas a brigar judicialmente. O Instituto Ser recebe duas novas denúncias por mês, número subestimado porque não há outras entidades voltadas para o assunto e o medo de represálias ainda impera. Nos Estados Unidos, por exemplo, a média é de 70 casos por dia só de violência sexual (leia o quadro à pág. 64). A pequena ONG foi ideia dos ex-sargentos Fernando Alcântara e Laci de Araújo, depois de travarem juntos uma guerra pelo direito de assumir seu relacionamento amoroso publicamente – algo inédito no País. Pela luta, o casal gay diz ter sofrido ameaças e homofobia dentro do quartel, agravando a depressão de Araújo. Ele foi preso, acusado de deserção do serviço militar, e processa o Exército por tortura na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Alcântara também carrega sequelas: “Até hoje tenho pesadelos de que estou fardado, sendo perseguido”, diz. Por serem referências, eles passaram a receber histórias de abusos cometidos pela instituição.

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PROFESSORA HUMILHADA

Laudo médico (abaixo) traz o quadro de depressão da ex-professora de sociologia do Colégio Militar de Brasília Luciana Lucena após “graves situações dentro de seu ambiente de trabalho”. Segundo ela, sua saúde foi abalada pelo assédio moral de um coronel. Como dava aulas de sociologia, ela tinha de deixar a porta da sala aberta para ser vigiada, sofria cobranças desproporcionais e foi humilhada pelo chefe na frente dos colegas. O colégio também desacatou ordem médica para mudá-la de departamento

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Entre as representações defendidas pela ONG de Araújo e Alcântara há abusos em treinamentos que lembram cenas do filme “Tropa de Elite” – como oficiais que recusam dar água aos recrutas. Ou excessos nos exercícios físicos que levam a mortes suspeitas. Os processos, julgados na Justiça Militar, acabam arquivados. Não raro, a lógica se inverte e quem denuncia o agressor vira réu. Em 2011, um jovem soldado disse ter sofrido um estupro coletivo no alojamento do quartel de Santa Maria (RS). O exame de corpo de delito confirmou a existência de sêmens diferentes, os militares chamaram de “brincadeira entre colegas” e o soldado foi acusado de praticar sexo consentido em local inapropriado. O caso ainda tramita, mas em segredo de Justiça. “Nada pode macular a imagem da corporação, por isso existe muita troca de favores para não levar os casos adiante”, diz o advogado Francisco Lúcio França, diretor do grupo Tortura Nunca Mais (SP). “Às vezes, nem o Ministério Público peita o Exército.”

Esse é o desespero da ex-sargento Rubenice de Nazaré Dias Martins. Ela era técnica de enfermagem no Hospital Militar de Marabá (PA). Nos recônditos do País, o serviço militar representa uma garantia de salário, estabilidade e até ascensão social. Rubenice afirma que, por esse motivo, jovens se submeteram a um esquema de orgias montado pelo tenente-coronel Alberto Almeida. Levados à praia do Lençol, eles seriam obrigados a fazer sexo com o superior para continuar na carreira. Em 2009, ela denunciou o caso a um tenente, acrescentando que meninas menores de idade também pernoitavam no hospital para ter relações sexuais com recrutas. “Não consegui ficar calada diante de tamanha covardia”, diz. Rubenice respondeu a sindicâncias por “transgressão à hierarquia e disciplina”, foi cinco vezes presa por não negar as acusações e transferida para fazer vigilância durante a madrugada no Batalhão da Selva – sendo que atuava com saúde e não sabia atirar. “Fizeram da minha vida um inferno, me desqualificaram de todas as formas”, diz ela.

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BATALHA
Após serem punidos por assumir relacionamento gay, os ex-sargentos
Alcântara (à esq.) e Araújo defendem outras vítimas do universo militar

Meses depois, outros soldados apresentaram fotos e vídeos das festas com a presença do coronel. Um inquérito policial militar foi aberto para apurar as denúncias, novamente arquivado por falta de provas. Rubenice pediu ajuda ao Ministério Público, mas o órgão não seguiu com a investigação. A ex-sargento alega que as testemunhas foram coagidas e ela própria foi perseguida a ponto de fugir para São Paulo, onde viveu cinco meses debaixo de viadutos e em albergues para mendigos. “E ainda assim recebi ameaças pelo celular, como ‘sua língua é muito grande, pare ou vai morrer’”, diz ela, que fez boletins de ocorrência e até tentou o suicídio. Aos 36 anos, solteira e sem filhos, hoje Rubenice mora em Belém na casa dos pais. É protetora de animais, está desempregada e sofre com síndrome do pânico. Em nota, o Exército afirma que as denúncias de Rubenice, “cuja suposta perseguição a teria levado a ser licenciada das fileiras do Exército, foram julgadas improcedentes pela Justiça Federal em Marabá, após as apurações pertinentes”.

O desfecho é recorrente não só no Brasil. Jessica Kenyon, ex-militar sexualmente abusada por colegas nos EUA, fundou a ONG Military Sexual Trauma para dar voz a outras vítimas. “Há uma relação de irmandade: se um oficial julga o outro, alguém que considera como um parente, você acha que vai acontecer o quê?”, diz Jessica. Para ela, somente quando militares de alta patente não forem mais blindados pelo sistema e receberem punições rigorosas as pessoas terão coragem de denunciar. Poucos se aventuram a desafiar uma instituição tão sólida – que deveria obedecer à legislação civil em uma democracia consolidada e não ter uma Justiça própria, como ocorre. Entidades de direitos humanos, como a ONG de Alcântara e Araújo, afirmam que a Justiça Militar é corporativista e lutam para discutir sua extinção, a exemplo do que aconteceu na Argentina após pressão de movimentos sociais. Medida que talvez reduzisse também casos de assédio moral, como o da professora de sociologia Luciana Lucena, 35 anos.

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RECRUTAS E ORGIAS
 

Quando trabalhava como técnica de enfermagem no Hospital Militar de Marabá, em 2009, Rubenice Nazaré denunciou um esquema de orgias homossexuais chefiado pelo tenente-coronel Alberto Almeida (na foto, vestido de mulher): “recrutas que não topavam eram perseguidos e não se estabilizavam na carreira.” O processo acabou arquivado na Justiça Militar. Cinco vezes presa por transgressão, ela foi transferida como vigia da madrugada na selva. Demitida, ela chegou a fugir para São Paulo e diz sofrer ameaças de morte ainda hoje.

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Ela foi aprovada para lecionar no Colégio Militar de Brasília. Embora nunca tenha servido no Exército, passou com “excelência” nos testes de resistência, controle emocional, exposição a situações de pressão e estresse. Em 2011, transferida para o terceiro ano do ensino médio, ficou sob a chefia do coronel José Paulo Fernandes. Por causa do conteúdo sobre Karl Marx e socialismo, vieram comentários sarcásticos de que a disciplina influenciaria de forma negativa os alunos. Os livros não falavam em ditadura militar, mas em “revolução democrática de 1964”. Ela teria recebido ordem para deixar abertas as portas da sala para estar sob vigilância constante. Em abril de 2012, Fernandes acusou Luciana de sumir com o cartão de respostas de uma aluna. Em tom de histeria, culpou-a diante dos demais funcionários, sem chance para defesa. A professora entrou em pânico enquanto procurava pelo cartão. Colegas contaram que ele havia sido rasgado pelo próprio coronel.

“Ainda existe uma forte misoginia e ele a responsabilizava por tudo”, diz um professor que não quis se i dentificar. Luciana voltou ao colégio no dia seguinte (e nos próximos) chorando, sem conseguir dar aula. Seguiram-se atestados médicos de afastamento para tratamento psicológico. Um deles diz que a paciente chegou “com sintomas compatíveis com ansiedade e fobia, desencadeados após graves situações dentro de seu ambiente de trabalho, e não tinha antecedentes psiquiátricos”. Em junho, uma Luciana “apta” voltou ao colégio com ordem médica para mudança de departamento. A chefia não atendeu e o quadro dela piorou, levando a meses de afastamento. O Exército diz que a solicitação de Luciana “foi considerada e só não pôde ser efetivada pelo fato de a oficial estar afastada para tratamento”. Os documentos mostram que a recomendação médica foi obedecida em novembro, cinco meses após o ates­tado.“Vivemos um momento que banaliza práticas como se fossem naturais”, afirma Lis Andrea Soboll, professora de psicologia da Universidade Federal do Paraná e autora de livros sobre assédio moral, sequência de ações hostis que constrangem e ferem a dignidade. “Não é legítimo usar tortura psicológica.”

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ESCÂNDALO AMERICANO
70 abusos sexuais por dia nas Forças Armadas

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Luciana acabou desligada e, ainda muito abalada, segue com seu tratamento. “Eu só queria ser de novo a professora dedicada e produtiva de sempre”, diz. Na Justiça, ela pede reintegração até a cura da doença. O Exército afirma que uma junta médica atestou que ela está “apta sem restrições”, por isso teve o contrato encerrado. Luciana diz que apenas uma tenente a avaliou e como “incapaz”. Outra professora do Colégio Militar de Brasília também obteve recomendação médica para não trabalhar com o mesmo coronel. “Há todo um esquema para dizer que a pessoa já tinha problemas pessoais antes de entrar no Exército”, diz Alcântara, hoje na reserva. Ele sobrevive com a remuneração de um estágio em direito. Araújo é licenciado por invalidez, continua em depressão e recebe uma quantia simbólica do Exército. O casal mora em Brasília e completou 16 anos juntos.

Fotos: Adriano Machado/Ag. Istoé; Leif Skoogfors/CORBIS

Oportunistas e fracassados


Sindicalistas fracassam na tentativa de pegar carona nas mobilizações populares, provocam transtornos pelo País e se distanciam ainda mais da sociedade

Sérgio Pardellas
 

Num lance abertamente oportunista, nove centrais convocaram seus filiados para o Dia Nacional de Lutas, na quinta-feira 11, na tentativa de aproveitar o embalo das manifestações populares de junho. O resultado da mobilização não só se revelou pífio, como escancarou as diferenças com os protestos organizados pelas redes sociais que tomaram as principais avenidas do País no último mês. Enquanto a histórica marcha das ruas envolveu mais de dois milhões de brasileiros pela redução da tarifa do transporte público, combate à corrupção e melhoria nos serviços públicos, os sindicalistas com uma ultrapassada pauta trabalhista não conseguiram reunir 100 mil pessoas em todo o País. Em São Paulo, a manifestação atraiu apenas dez mil à avenida Paulista e ainda houve denúncias de que um grupo de pelo menos 100 manifestantes teria recebido entre R$ 50 e R$ 70 para participar do protesto. Em junho, 100 mil saíram às ruas apenas em um dia na capital paulista. No Rio, a manifestação reuniu cerca de cinco mil pessoas, contra 300 mil da passeata de junho.
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Apesar do fracasso da manifestação das centrais, o estrago para a população acabou sendo grande. Foi como se os sindicalistas estivessem imitando uma lógica terrorista, em que apenas um – no caso de um homem-bomba – ou muito poucos provocam transtornos incalculáveis. Foram registradas interdições em 66 trechos de rodovias federais de 18 Estados. A produção industrial e as vendas do varejo também foram afetadas. Houve paralisação dos serviços de transporte em Porto Alegre (RS), Belo Horizonte (MG) e Vitória (ES).
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TRANSTORNO
Em Itajaí (SC), sindicalistas bloquearam por 20 minutos a BR-101

Trabalhadores não conseguiram se deslocar, crianças não conseguiram ir às escolas em vários Estados. A produção foi paralisada em pelo menos quatro refinarias brasileiras e em oito unidades de montadoras. Os serviços de saúde também foram prejudicados. Só em Curitiba, cerca de 1,2 mil consultas foram canceladas e mais de 700 pedidos de exames tiveram de ser remarcados. O oportunismo sindical levou ao caos e, com uma pauta de reivindicações estabelecida de cima para baixo, só contribuiu para distanciar ainda mais os movimentos sindicais da sociedade. “A montanha pariu um rato”, avaliou o consultor político Gaudêncio Torquato, professor da USP. “Ao promover manifestações de estruturas verticais, as centrais tratam as pessoas como massa, não como protagonistas, e isso as afasta dos anseios populares”, afirma Marco Antônio Teixeira, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV-SP).

Por mais paradoxal que pareça, foi no governo de Lula, um ex-sindicalista, que os sindicatos começaram a perder a sintonia com a sociedade e, consequentemente, seu poder de mobilização. Agraciados com cargos no governo, CUT e Força Sindical, as maiores centrais do País, foram aos poucos perdendo interlocução e importância e deixando suas principais bandeiras de lado. Preferiram aproveitar a proximidade com o poder para se aparelhar e transformar um instrumento democrático em negócio. “O atrelamento dos movimentos de trabalhadores com o governo gerou uma desconfiança na população. Eles são vistos como órgãos cooptados”, avalia Torquato. Hoje, poucos negócios no Brasil são tão lucrativos quanto montar um sindicato. Principalmente a partir de 2008, quando foi aprovada a lei que reconheceu as centrais como integrantes do sistema sindical nacional. Atualmente, as centrais têm direito a 10% da arrecadação do imposto sindical, que corresponde a um dia de salário de todo empregado. Não é pouco dinheiro. Só em 2008, entrou no caixa de sindicatos, federações, confederações e centrais cerca de R$ 1 bilhão arrecadado com o imposto sindical recolhido de forma obrigatória dos trabalhadores. A distribuição da verba é proporcional ao número de sindicatos filiados a cada uma. Assim, a CUT, com o maior número de filiados, 2.169, recebe por ano cerca de R$ 45,7 milhões. A Força Sindical, segunda maior, com 1.680 filiados, fica com cerca de R$ 40 milhões.

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FIASCO
Manifestantes se reúnem em frente ao Masp, na avenida
Paulista. A marcha mobilizou apenas dez mil pessoas

A partir da eleição da presidenta Dilma Rousseff, houve uma mudança na relação do governo com os dirigentes sindicais. A presidenta sempre deixou clara a opção por manter os níveis de emprego em vez de apostar na escala de ampliação da remuneração. Com isso, tirou a principal bandeira das centrais, a luta por postos de trabalho. Com inflação controlada e poder de compra em alta, entre 2011 e 2012, os trabalhadores não sentiram falta das entidades representativas. Dilma também demonstra pouca paciência em negociar com as centrais. Para fazer a interlocução com as entidades, escalou o ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Gilberto Carvalho. Mesmo assim, a ordem é fazer poucas concessões. Hoje, a relação do governo com a CUT encontra-se estremecida. E com a Força Sindical, que bandeou-se para a oposição, é quase nula. Em reunião com Lula em seu instituto, em São Paulo, no último dia 19, os líderes das centrais desfiaram um rosário de reclamações alegando que o governo não lhes dá a atenção devida. As centrais alegam ainda que o ministro do Trabalho, Manoel Dias, indicado pelo antecessor, Carlos Lupi, está esvaziado e sem força. “O tema foi a falta de interlocução com o governo”, disse Valdir Vicente, diretor da Força Sindical.

 Em toda a história, só havia ocorrido três greves gerais no País. Em 1917, em meio à crise da Primeira Guerra, em março de 1989, contra o Plano Verão de Sarney, e, em 1991, durante o governo Collor. Com a chegada do PT ao poder, as centrais passaram a organizar o Dia Nacional de Lutas duas vezes por ano. Mas, desde então, nunca houve tentativa de parar o País, como na quinta-feira 11. A fracassada mobilização da semana passada, que só trouxe prejuízos com a paralisação de serviços essenciais à população, afasta o movimento sindical da sociedade e instiga discussões sobre o futuro do sindicalismo. Nos EUA, foram atitudes dessa natureza que levaram à desmoralização dos sindicatos. Hoje, naquele país, os acordos coletivos não são protegidos por lei. “Perdemos mais de 400 mil pessoas no movimento sindical e esse número continua em declínio”, disse a dirigente sindical Sandy Rusher, referindo-se à queda nas sindicalizações no país. O sindicalismo precisa se distanciar do poder e se oxigenar nas bases se não quiser perder sua representatividade. Definitivamente, não é agindo como nas esvaziadas manifestações da última semana que as centrais sindicais recuperarão suas vozes. Hoje, elas se mostram afônicas e desafinadas com o clamor das ruas.
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Por que é tão fácil espionar o Brasil


A ausência de um sistema eficiente de defesa cibernética torna o País vulnerável à espionagem internacional, coloca em risco áreas estratégicas e fere o direito à privacidade de governos, indivíduos e empresas

Claudio Dantas Sequeira e Paulo Moreira Leite
 

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ALVO
Da esq. para a dir., os ministros Celso Amorim (Defesa), José Elito (Segurança
Institucional) e Paulo Bernardo (Comunicações) deixam reunião que, na
terça-feira 9, discutiu como o Brasil deve reagir às denúncias de espionagem

A maturidade do sistema de defesa cibernética de um país pode ser avaliada por meio de um índice chamado CMMI, referência do setor de tecnologia. Segundo um estudo recente realizado por especialistas na área de segurança, o Brasil recebeu nota “1 menos”, em uma escala que vai de 1 a 6. Significa, portanto, que o País está perto da nota mínima, mas ainda não atende todos os requisitos para merecê-la. Entre as nações em desenvolvimento, a Índia aparece com índice 2,5 e os Estados Unidos, numa posição próxima de 5. Numa comparação simples, é como se nosso Brasil fosse um recém-nascido incapaz de resistir a uma gripe – muito menos a uma pneumonia. Com exceção de grandes empresas e bancos, os poderes públicos e os indivíduos que residem no País vivem à mercê da espionagem alheia. Em novo capítulo de suas denúncias contra a Agência de Segurança Nacional (NSA) americana, Edward Snowden, um antigo técnico da CIA que prestava serviços de consultor ao serviço secreto americano, acusou o governo dos Estados Unidos de monitorar bilhões de ligações telefônicas, mensagens e atividades de brasileiros em redes sociais. A denúncia apontou ainda para a existência de uma base de espionagem em Brasília, coração político do País.

Embora não tenham sido divulgados detalhes, como nome de pessoas espionadas, números de telefones ou o conteúdo de e-mails, a ação invasiva dos Estados Unidos não é uma novidade, o que não significa que deva ser tolerada. Em conversas fechadas, a presidenta Dilma Rousseff refere-se ao caso como “bisbilhotice”. Mas a cobrança por explicações tem razão de ser. Os países admitem que nações amigas enviam agentes de informação a seus territórios. A maioria desembarca no estrangeiro sem esconder a própria condição, definida no jargão diplomático como “agentes de segurança”. Com o passar do tempo, muitos são identificados pelo governo anfitrião e mantêm uma postura de colaboração em função de objetivos comuns aos governos dos dois países. A operação denunciada por Snowden, porém, não tinha essa natureza. O ex-técnico da CIA apontou para uma atividade ilegal – a possibilidade de acesso a informações reservadas, prática que não é reconhecida por tratados internacionais nem prevista em eventuais acordos paralelos entre Brasil e Estados Unidos. O debate reside aqui. Em depoimento no Senado, o ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, disse que o governo brasileiro “está convencido” de que as agências de informação tiveram acesso ao conteúdo das mensagens monitoradas. Numa postura considerada insatisfatória pelo governo brasileiro, os diplomatas de Washington, ao menos até agora, sustentam que as mensagens foram monitoradas – mas sem acesso ao conteúdo.

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BIG BROTHER
Em Paris, manifestantes carregam cartazes contra o governo
americano, acusado de espionagem pelo ex-agente Snowden

O aspecto político não esconde o abismo tecnológico que separa os dois países, diferença que deixa o governo americano numa imensa vantagem para conhecer os segredos de parceiros em todo o planeta. Na vanguarda do conhecimento tecnológico mundial, seja pelo vigor único de suas pesquisas, seja pelo volume dos recursos que foram capazes de mobilizar, os Estados Unidos construíram a internet – essa maravilhosa rede que conecta bilhões de cidadãos e empresas de todo planeta – como uma “colônia americana”, conforme definição crua do jornal “The New York Times”. A ausência de um sistema eficiente de defesa no Brasil e em outros países é a contrapartida de uma história tímida no campo das pesquisas autônomas e da produção própria.

Conforme vários especialistas ouvidos por ISTOÉ, a ação de espionagem é apenas a ponta de um iceberg. Em caso de conflito grave, a ausência de uma proteção digital eficiente coloca em risco, por exemplo, o funcionamento de hidrelétricas, linhas de transmissão, plataformas petrolíferas, oleodutos, aeroportos e metrôs, como experimentaram países que enfrentaram confrontos internacionais em posição desvantajosa, como ocorreu recentemente com o Irã e seu programa nuclear. No governo Fernando Henrique Cardoso, quando duas multinacionais disputavam a concorrência para os radares do sistema Sivam, da Amazônia, vários segredos do governo brasileiro foram interceptados. Nada garante que, de lá para cá, a situação geral tenha se modificado, como admitiu o ministro da Defesa, Celso Amorim, em depoimento ao Senado. “A situação em que a gente se encontra hoje é de vulnerabilidade”, admitiu o ministro, assegurando que, na falta de proteção tecnológica eficiente, procura resguardar-se de forma singela: evita escrever e-mails importantes em seu computador. No depoimento, Amorim recordou os contratos “por trás da porta” de empresas americanas com o governo de seu país. Mantendo uma relação de grande proximidade, que torna difícil enxergar onde termina a instituição privada e onde começa o Estado, esses acordos permitem o acesso indevido a informações privadas. Os documentos liberados por Snowden sugerem um caso de colaboração estreitíssima entre a Microsoft e a NSA. Conforme a denúncia, a Microsoft auxiliava a agência a quebrar o sistema criptográfico que protegia seus usuários.

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Uma semana antes das revelações de Snowden, autoridades do Sisbin (Sistema Brasileiro de Inteligência) se reuniram em Brasília, preocupados com a entrada de empresas estrangeiras na área de segurança e inteligência dos aeroportos brasileiros. Presente ao encontro, um coronel alertou para a entrega do aeroporto internacional de Brasília ao consórcio Inframérica, liderado por um grupo argentino. “Eles terão acesso ao controle do espaço aéreo brasileiro. É uma temeridade”, disse. De acordo com os documentos vazados por Snowden, a base de operações da NSA no Brasil teve acesso ao tráfego de dados dos satélites da Embratel, de propriedade do mexicano Carlos Slim, e ainda dos cabos submarinos de fibra óptica, nas mãos da Global Crossing, do grupo Level 3, multinacional com sede no Colorado, nos Estados Unidos. Facebook, Skype, Microsoft e Google também são frequentemente acusados de abrir dados privados de seus usuários para a NSA, atividade que todas negam.

“É prática corrente nos Estados Unidos o governo implantar um representante ou mesmo uma célula da NSA nas empresas que são concessionárias de serviços estratégicos como a telefonia”, diz o analista de segurança nacional Salvador Raza. Autor do estudo sobre maturidade da segurança cibernética no Brasil, ele integrou o grupo de especialistas que desenhou o atual modelo de defesa digital dos Estados Unidos. “Não há como grampear telefones e e-mails, saber de seu conteúdo, sem autorização das empresas de telefonia”, garante Raza. Em sua opinião, uma das primeiras medidas para mitigar essa fragilidade estrutural é criar um órgão específico de segurança digital. A administração pública federal possui 320 redes de computadores, incluída aí a de uso restrito da Presidência da República. A segurança dessas redes é feita por um pequeno departamento do Gabinete de Segurança Institucional (GSI). O Exército também possui um núcleo de defesa cibernética, criado há apenas dois anos e cuja atividade ainda é incipiente.

Na semana passada, o embaixador americano Thomas Shannon foi recebido por Antonio Patriota, ministro das Relações Exteriores. Na audiência, Shannon confirmou a fama de diplomata bem-humorado. Referindo-se à sua saída do posto em Brasília, lembrou que sua passagem ficará marcada por episódios ligados a informações confidenciais. “Cheguei no caso do WikiLeaks e vou embora com as denúncias de espionagem”, disse Shannon, que não ofereceu nenhum esclarecimento que pudesse aliviar o mal-estar entre os dois países. O episódio pode se transformar num trunfo para a diplomacia brasileira. Ao lado da Índia, o Brasil tem se mobilizado, em organismos internacionais, para a produção de acordos capazes de criar regras destinadas a equilibrar duas forças antagônicas – a liberdade que todos apreciam na internet com o controle sobre atividades criminosas, como a espionagem, que pode ser cometida através da rede.
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Antes da denúncia de Snowden, o governo americano recusava toda tentativa de interferência na internet, com a alegação de que tinha condições de manter a situação sob controle, sem sacrificar a liberdade dos usuários. Agora, esse argumento perdeu força. Até porque a denúncia não se limita ao Brasil. Revelações de espionagem americana se tornaram assunto quente na campanha eleitoral alemã, deixando o governo de Angela Merkel na desconfortável posição de oferecer explicações. O chanceler Antonio Patriota anunciou que pretende recorrer à ONU, a fim de buscar uma definição sobre normas de comportamento para os países quanto à privacidade das comunicações.

Os antecedentes mostram que não se trata de uma iniciativa simples. Aprovada em 2005 pelos países da União Europeia, a Convenção de Budapeste prevê o chamado “acesso transfronteiriço”, pelo qual um Estado membro pode acessar diretamente informações em servidores localizados em outro país, sem autorização prévia. É uma ideia que até faz sentido num continente que se vê como uma realidade supranacional e possui uma moeda própria. Mas teria difícil aplicação em outras partes do mundo, onde as nações travam uma competição encarniçada pelo conforto de suas populações.
Foto: ANDRE COELHO/Agência O Globo
Foto: KENZO TRIBOUILLARD/afp

Uma cruzada pela medicina básica


Divergências internas podem modificar o projeto do governo, mas a presidenta Dilma não abre mão de levar médicos para as regiões carentes

Izabelle Torres
 

A saúde pública tem se tornado protagonista da cena política brasileira como poucas vezes se viu na história recente do País. A decisão do governo de trazer médicos estrangeiros para trabalhar em áreas desassistidas e o anúncio de que a partir de 2015 um estágio de dois anos no Sistema Único de Saúde (SUS) passará a ser pré-requisito para a graduação em medicina movimentaram os poderes da República e as classes profissionais. As mudanças fazem parte do programa Mais Médicos, a medida mais drástica do governo em resposta aos protestos sociais que se espalharam pelo País no último mês. Ao priorizar o atendimento básico e generalista, o governo acredita na redução gradual de despesas públicas, com o atendimento a doenças evitáveis se tratadas adequadamente. No ano passado, por exemplo, foram gastos mais de R$ 3,6 bilhões em tratamentos de males causados pela obesidade, como doenças cardiovasculares. O valor gasto equivale a metade das despesas anuais previstas para o novo programa.

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SOCORRO
Médicos trabalham em favela de Duque de Caxias,
no Rio: projeto pode ampliar atendimento

Apesar da intenção admirável de resolver os gargalos na assistência básica de saúde, a polêmica causada desde o lançamento do programa demonstrou que houve pelo menos duas linhas cruzadas dentro da equipe governista. A primeira delas se refere ao fato de que a ideia inicial era tratar apenas da vinda de médicos estrangeiros para atender de forma emergencial regiões mais carentes de profissionais da área. O assunto sofria críticas, mas seu teor era de importância incontestável, visto os números oficiais sobre o déficit de 54 mil médicos acumulado na última década. O que se viu, entretanto, foi a entrada inesperada de outra proposta que pouco tem a ver com a primeira. A decisão de ampliar o curso de medicina em dois anos não chegou a ser discutida efetivamente no Planalto, surpreendendo até auxiliares mais próximos da presidenta Dilma. O que causou maior estranheza foi o fato de a medida ter aumentado as resistências ao projeto original, desgastando ainda mais as relações do governo com os médicos brasileiros. Tudo isso por uma proposta que só começará a produzir qualquer efeito prático em 2021, quando nem a própria presidenta, mesmo se reeleita, estará no poder.

A outra linha cruzada pode ser notada na lista de prioridades dos países escolhidos para exportar os profissionais. De forma isolada, o ministro das Relações Exteriores assinou um protocolo de cooperação com Cuba. A iniciativa dava a entender que a prioridade seria pelos médicos desse país. Entretanto, uma pesquisa feita pelo Planalto mostrou que a preferência dos brasileiros é por gente formada nos Estados Unidos, seguidos por Espanha e Portugal. Cuba aparecia em quarto lugar. Como o atual governo adora se mexer com base em pesquisas, decidiu começar a investida da importação pela Espanha e depois por Portugal. Nos próximos dias, o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, terá uma reunião com o governo espanhol sobre os procedimentos adotados. Para os cubanos sobrarão as vagas remanescentes.

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SOLUÇÃO?
O ministro Padilha:

"Podemos resolver parte dos problemas da saúde"

Apesar do estardalhaço que causaram, as mudanças propostas pelo Mais Médicos não representam inovações ao que vinha sendo discutido nos gabinetes de Brasília durante os últimos governos. A ideia de uma passagem obrigatória pelo SUS, por exemplo, vem se arrastando desde a gestão de Fernando Henrique Cardoso, quando o então ministro da saúde Adib Jatene defendeu a humanização do ensino de medicina. “O importante é ter médicos capazes de atuar sem equipamentos modernos e robóticos. É formar médico especializado em gente”, disse ele. Mesmo tratadas como irreversíveis, as mudanças no ensino ainda podem sofrer ajustes durante os debates, até pela pressa com que foram colocadas na pauta. “Estamos brigando em várias frentes e essa ideia será amadurecida nos próximos meses”, afirma o ministro da Educação, Aloizio Mercadante.

O modelo proposto pelo governo brasileiro é inspirado no programa inglês, apesar das diferenças substanciais que separam a realidade médica dos dois países. Com uma das medicinas mais bem avaliadas do mundo, a Inglaterra possui um sistema de saúde semelhante ao SUS, composto por 37% de profissionais estrangeiros. Além do atendimento gratuito aos cidadãos, os ingleses dispõem de hospitais bem equipados e uma média de 2,8 médicos por mil habitantes. Em comparação com o Brasil, a maior semelhança é o tamanho do sistema de saúde e a intenção de proporcionar serviços gratuitos para todos. Aqui, a média é de 1,8 médico por mil brasileiros e ainda há pelo menos dois mil municípios com menos de um profissional para mais de três mil habitantes. É com base nessas estatísticas que o governo decidiu enfrentar as resistências e importar profissionais sem a revalidação do diploma, cuja prova oficial tem 90% de reprovação dos estrangeiros que tentam trabalhar aqui. “Acreditamos que uma nova distribuição de profissionais pode resolver grande parte dos problemas da saúde”, diz o ministro Padilha.

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A cruzada de Dilma Rousseff para transformar o programa Mais Médicos em realidade bem-sucedida ainda terá de percorrer um longo caminho. Por se tratar de uma medida provisória, a proposta ainda terá de ser aprovada pelo Congresso nos próximos 90 dias para se tornar lei. Será uma prova de fogo para o governo, no momento de relações conturbadas da presidenta Dilma com sua base aliada. Na quarta-feira 10, os parlamentares deram uma demonstração do clima vivido com o Planalto. O governo foi derrotado na votação da proposta que destina 75% dos royalties do petróleo para a educação e 25% para a saúde. Depois de cinco horas de discussão, deputados governistas dispostos a mostrar-se fiéis a Dilma Rousseff tiveram de deixar a votação para evitar que a sessão alcançasse o quorum porque as mudanças do texto defendido pelo governo eram dadas como certas.

Nesse cenário de dificuldades de articulação, os parlamentares já estudam emendas à MP dos médicos para atender aos apelos dos conselhos de classe. No plenário, em que a fidelidade ao governo é colocada à prova a todo momento, alguns parlamentares dizem que podem propor a dedução dos dois anos de serviços obrigatórios no SUS do curso de residência médica e propor a adoção de uma prova alternativa ao Revalida, elaborada especificamente para os profissionais estrangeiros que vão se inscrever no programa. Alheio às resistências e às ameaças de mudanças no texto original, o governo se prepara para as próximas fases da ofensiva por melhorias na saúde básica. A pressa se deve à necessidade de o Mais Médicos mostrar eficiência rapidamente. Para a presidenta, tirar o atendimento básico de saúde do caos em que se encontra representa não apenas sua resposta às ruas, mas também o combustível de sustentação da própria trajetória política.