sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

E agora, Serra?


O ex-governador José Serra nega irregularidades, mas novos documentos obtidos por ISTOÉ mostram que a máfia dos trens, incentivada por agentes públicos, superfaturou contratos em quase R$ 1 bilhão durante sua gestão

Pedro Marcondes de Moura, Sérgio Pardellas e Alan Rodrigues


A primeira reação da maioria dos políticos que se tornam alvo de denúncias de corrupção é negar enfaticamente sua ligação com os malfeitos. A partir do surgimento de novas evidências, em geral as justificativas vão sendo readaptadas. Quase todos agem assim. O ex-governador de São Paulo, José Serra, cumpriu o primeiro passo da má liturgia política, mas não o segundo. Mesmo com o escândalo do Metrô de São Paulo chegando cada vez mais próximo dele, Serra mantém as alegações iniciais. O ex-governador tucano diz que durante sua gestão não tomou conhecimento de qualquer cartel montado por empresas de transportes sobre trilhos. Muito menos que teria incentivado o conluio, pois sempre atuava, segundo ele, a favor do menor preço. Mas Serra não poderá mais entoar por muito tempo esse discurso, sob o risco de ser desmoralizado pelas investigações do Ministério Público. Novos documentos obtidos por ISTOÉ mostram que a máfia que superfaturou contratos com o Metrô de São Paulo e a Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) não só agiu durante o governo Serra como foi incentivada por agentes públicos a montar um cartel.

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O TREM DA CORRUPÇÃO
Cartel operou na CPTM durante gestão Serra

Conforme a documentação em poder do MP, as irregularidades ocorreram entre 2008 e2011. No período em que a maior parte dos contratos irregulares foi assinada, Serra era governador (entre 2007 e 2010). Os superfaturamentos estão relacionados a um controverso projeto de modernização de 98 trens das Linhas 1-Azul e 3-Vermelha do Metrô. A reforma dos veículos, com cerca de quatro décadas de operação e considerados “sucata” pelas autoridades que investigam o caso, custam ao erário paulista R$ 2,87 bilhões em valores não corrigidos, um prejuízo de quase R$ 1 bilhão. Para se ter uma ideia, os valores se assemelham aos desembolsados pelo Metrô de Nova York na aquisição de trens novos. E quem vendeu os trens ao Metrô nova-iorquino foi justamente uma das companhias responsáveis pela modernização em São Paulo.

Além do flagrante superfaturamento, o promotor Marcelo Milani, do Patrimônio Público, já confirma a prática de cartel. O conluio, segundo ele, foi incentivado por agentes públicos em pelo menos um dos dez contratos relacionados à modernização. Trata-se do contrato do sistema de sinalização, o CBTC. Em depoimento ao MP, o engenheiro Nelson Branco Marchetti, ex-diretor técnico da divisão de transportes da Siemens, relatou que representantes da multinacional alemã e da concorrente Alstom foram chamados para uma reunião por dirigentes do Metrô e da Secretaria de Transportes Metropolitanos. Na época, o órgão era comandado por José Luiz Portella, conhecido como Portelinha, braço direito de Serra. Durante o encontro, as companhias foram incentivadas a montar cartel para vencer a disputa pelo contrato do sistema de sinalização dos trens das linhas 1, 2 e 3 do Metrô. Os executivos das empresas ainda sugeriram que o governo licitasse a sinalização linha por linha, o que triplicaria a concorrência. Mas o governo foi enfático ao dizer que gostaria que um consórcio formado por duas empresas vencesse os três certames. A Alstom acabou vencendo sozinha o contrato para o fornecimento do CBTC para as três linhas do Metrô. Em outro depoimento prestado à Polícia Federal, Marchetti já havia relatado que as pressões do governo paulista eram constantes. “No edital havia a exigência de um capital social integralizado que a CAF (empresa espanhola) não possuía. Mesmo assim, o então governador do Estado (José Serra) e seus secretários fizeram de tudo para defender a CAF”, declarou ele sobre o contrato para fornecimento de vagões pela CPTM em que o ex-governador e Portella teriam sugerido que Siemens e CAF se aliassem para vencer a licitação. A prática narrada acima acrescenta novos elementos ao escândalo na área de transporte, que Serra, apesar das constantes negativas, não tem mais como refutar.

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CONLUIO
Contratos de modernização de trens das Linhas 1-Azul e 3-Vermelha foram vencidos
sem disputa a preços acima do estabelecido pelo Metrô de São Paulo

Novos documentos e depoimentos em poder do Ministério Público também reforçam que o esquema criminoso teria o apoio de políticos e funcionários públicos beneficiados pelo recebimento de propina. Na última semana, outro executivo da Siemens, além de Everton Rheinheinmer, confirmou a existência de pagamento da comissão para agentes públicos de São Paulo. Em depoimento à Polícia Federal, o vice-chefe do setor de compliance da multinacional alemã, Mark Willian Gough, relacionou uma conta em Luxemburgo de Adilson Primo, ex-presidente da companhia no Brasil, no valor de US$ 7 milhões, aos subornos. À ISTOÉ, um ex-dirigente da MGE, outra empresa envolvida no cartel, também confirmou que representantes da Siemens cobraram de sua companhia o pagamento de propina a autoridades, em troca da obtenção de contratos com o governo paulista.

A cobrança teria partido do próprio Rheinheinmer. O dinheiro, segundo o ex-executivo da Siemens, teria como destinatários parlamentares da base aliada ao governo tucano na Assembleia Legislativa. Ainda de acordo com o ex-dirigente da MGE, Rheinheinmer também teria o procurado para abrir uma conta no banco suiço Credit Suisse, em Zurique. O ex-dirigente da MGE afirma que era para lá que a Siemens mandaria parte do dinheiro desviado. “Fui procurado por Everton da Siemens tanto para pagar propina para a base aliada quanto para abrir a conta na Suíça”, confirmou à ISTOÉ o executivo da MGE.

O Ministério Público paulista investiga o superfaturamento na modernização dos 98 trens das Linhas 1-Azul e 3-Vermelha do Metrô paulista há pelo menos um ano e meio. Um dos fatos que chamaram a atenção do promotor Milani foi a falta de competitividade na licitação dos quatro lotes de veículos reformados. Cada um deles foi disputado por um único consórcio, que reunia uma ou mais empresas. Ao final, sagravam-se vencedores com propostas acima dos valores estabelecidos pelo Metrô em consulta de tomada de preço feita com as próprias empresas. Tamanho disparate nos preços fez com que até dirigentes das companhias oferecessem descontos para a estatal. Um deles foi assinado pelo ex-presidente da Siemens Adilson Primo. As apurações, no entanto, esbarravam em um obstáculo. A iniciativa de reformar veículos com cerca de quatro décadas em operação só existe no Estado de São Paulo. Em outros lugares do mundo, esses veículos seriam aposentados e trocados por novos por questão de segurança dos usuários e desempenho do sistema. Sem parâmetro de comparação de preços, ficava inviável concluir se a decisão tomada pela gestão de José Serra lesava ou não os contribuintes paulistas.

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Após realizar 30 oitivas, porém, o promotor pôde confirmar as irregularidades. Ao contrário do que se pensava inicialmente, quando o Metrô de São Paulo justificou que a opção pela reforma aconteceu porque ela sairia 60% mais barato do que o valor a ser desembolsado para compra de trens novos, os altos custos da modernização dos trens não apareciam apenas nos quatro contratos de reforma. Em um claro movimento de despiste, o governo paulista fracionou o serviço e acrescentou outros seis contratos à reforma. O serviço foi, oficialmente, orçado em R$ 1,6 bilhão. Só que, na verdade, a modernização dos 98 trens, com 588 vagões, teve um custo de R$ 2,87 bilhões. Sem contar as correções monetárias. Segundo o Ministério Público, o Metrô de Nova York realizou a compra de 300 vagões, neste ano, por US$ 600 milhões, o equivalente a RS 1,4 bilhão. Pagou proporcionalmente menos pelos veículos novos do que São Paulo está desembolsando na revitalização daquilo que o MP classifica como sucata. Procurado, o Metrô nega problemas com os trens e irregularidades nos contratos.

Em depoimento ao MP em 9 de setembro ao qual ISTOÉ teve acesso, o ex-diretor do Metrô e signatário de contratos da reforma dos trens Sérgio Correa Brasil confirmou que a estatal não previa no orçamento “o chamado truque, bem como a caixa que importariam em 40% do custo final”. No entanto, esses e outros itens, de acordo com seis contratos extras analisados pelo MP, foram licitados e estão sendo trocados. Diante das irregularidades, o promotor Marcelo Milani deu, na terça-feira 3, um prazo de 30 dias para que o presidente do Metrô de São Paulo suspenda os dez contratos de modernização.

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Fotos: PEDRO DIAS

http://www.istoe.com.br/reportagens/338295_E+AGORA+SERRA+

À espera do cárcere


ISTOÉ acompanhou o cotidiano do delator do mensalão, Roberto Jefferson, em sua casa no interior do Rio, enquanto aguarda decisão do STF sobre sua prisão


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Prestes a iniciar o cumprimento de sua pena de 7 anos e 14 dias, em regime semiaberto ou em casa, o ex-deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ) escolheu como refúgio temporário o pacato município fluminense de Comendador Levy Gasparian, com menos de 10 mil habitantes, a 140 quilômetros da capital do Rio de Janeiro. “Quem vive aqui é feliz”, alardeia a prefeitura em placas pela cidade. Nos últimos dias, Jefferson tentou cumprir à risca o slogan municipal, enquanto aguarda decisão do presidente do STF, Joaquim Barbosa, sobre seu pedido de prisão domiciliar.

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Com saúde frágil, o político que delatou o mensalão e foi condenado por lavagem de dinheiro e corrupção passiva tem se comportado como se estivesse de férias em sua casa de campo que ocupa dois quarteirões em Gasparian. Trajando jaqueta de couro da mesma marca de sua moto, Harley-Davidson, ele circula pela cidade ou estica seus passeios até a mineira Juiz de Fora, a 48 quilômetros. Sempre em companhia da mulher, Ana Lúcia, Jefferson também pratica exercícios físicos com um personal trainer, lê e ouve música. O hábito de escutar a “Ave Maria”, de Franz Schubert, em som alto, todos os dias às 18h, incomodou a vizinhança, que reclamou e acabou atendida por ele. Um conhecido do político, que pediu para não ser identificado, diz que Jefferson está mais solícito e afável nos últimos tempos. O falastrão que surpreendeu o Brasil ao desafiar o ex-ministro José Dirceu (na CPI, em 2005) com a frase “Vossa Excelência provoca em mim os instintos mais primitivos” saiu de cena. Agora Jefferson encarna o “Robertinho paz e amor”, como definiu à ISTOÉ um vizinho do ex-deputado.

Parentes de Jefferson também são proprietários de casas na rua Ernesto Paixão, onde ele mora. Quem não é da família é amigo, atestam os vizinhos. Ao contrário do terreno, sua residência não é grande, tem apenas dois quartos. Uma muralha verde de três metros de altura e 50 metros de extensão frontal cerca a propriedade, que tem, na entrada, dois leões esculpidos em pedra, dando a impressão de estarem rosnando sobre o portão de ferro. Seis cadelas barulhentas perambulam pelo terreno da família. Católico, o delator do mensalão mantém um oratório dentro de sua casa e frequenta igrejas. No fim de setembro, participou de uma celebração penitencial na Matriz de Nossa Senhora de Aparecida, no centro da cidade – algo como cerimônia para expurgar culpas. Há poucas semanas, comemorou seu aniversário de 60 anos com missa na igreja onde foi batizado, em Sapucaia, município próximo.

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MAIS PRISÕES
Na quinta-feira 5, Valdemar Costa Neto se apresentou à
Papuda, em Brasília, horas depois de decretada sua prisão

Jefferson não conta mais com secretária e assessores, mas continua ativo na política. Recentemente, indicou nomes para o segundo escalão do governo Dilma. Foi ele quem negociou com o governo Dilma, por exemplo, a indicação do nome do PTB que ocupará a vice-presidência para assuntos de governo do Banco do Brasil, sem titular desde que César Borges assumiu o Ministério dos Transportes. Em agosto, circulou por Brasília e se reuniu com colegas de partido, acertando acordos para 2014. Já disse que, se a presidenta Dilma cumprir os acordos firmados com ele até março do próximo ano – ou seja, se nomear alguns petebistas para cargos federais –, manterá o apoio a ela. Se o acerto não for honrado, o PTB de Jefferson, sob a orientação dele, da cadeia ou de casa, fará campanha para o senador Aécio Neves (PSDB-MG).

Nos últimos dias, no entanto, Jef­ferson deu uma pausa nas tratativas para 2014. Recolheu-se ao silêncio, sob orientação de seu advogado, Marcos Pinheiro de Lemos. Para fugir dos holofotes, tem deixado uma velha pick-up Saveiro escondida em sua propriedade, em vez de usar os carros Ford Edge e Fusion que ele usa normalmente. “Os repórteres na porta da casa nem percebem, e ele deve sair zoando os jornalistas”, ironizou um morador da cidade.

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Gasparian recebe bem o ex-deputado federal, ao contrário da cidade natal dele, Petrópolis, na região serrana do Rio. Lá, ele não conseguiu mais do que 10% dos votos para se eleger, em 2002. A professora Eunícia Fernandes, doutora em história pela Universidade Federal Fluminense, disse que os petropolitanos sempre suspeitaram da riqueza da família de Jefferson: “Eles eram donos de um colégio rico, inovador, moderno, mas todos se perguntavam de onde vinha tanto dinheiro.”

A vida de Jefferson em Gasparian só é incomodada pelas consequências de um câncer no pâncreas, extirpado no ano passado. Como é diabético e também já passou por uma cirurgia de redução de estômago, sua alimentação precisa ser restrita e severa. “Ele está bem, mas tem uma vida toda regulada. Precisa ir ao banheiro umas dez vezes ao dia e tem muita dificuldade em absorver os alimentos”, diz o secretário de Comunicação do PTB e amigo, Honésio Ferreira. Na última quarta-feira 4, o delator do mensalão, Roberto Jefferson, deixou a tranquilidade de Gasparian para ser examinado por uma junta médica do Instituto Nacional de Câncer (Inca), no Centro do Rio. Ele chegou ao local por volta das 7h50 e saiu duas horas depois, sem falar com a imprensa. O laudo da perícia foi enviado para o Supremo Tribunal Federal. Com base no laudo do Inca, o presidente do STF, Joaquim Barbosa, irá decidir, nos próximos dias, se Jefferson cumprirá pena em regime semiaberto ou em casa.

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ELE DECIDE
O presidente do STF, Joaquim Barbosa, dará parecer final
sobre pedido de prisão domiciliar de Roberto Jefferson

Na quinta-feira 5, Barbosa determinou a prisão de mais quatro condenados pelo mensalão. Dois deles se apresentaram horas depois no presídio da Papuda – o deputado Valdemar Costa Neto (PR-SP) e o ex-deputado Bispo Rodrigues (PR-RJ) — e dois em unidades da Polícia Federal em Brasília – Pedro Corrêa (PP-PE) e o ex-dirigente do Banco Rural Vinicius Samarane. Valdemar renunciou ao mandato pela segunda vez em oito anos. A primeira foi em 2005, quando estourou o escândalo do mensalão, mas ele conseguiu se reeleger no ano seguinte. Agora, perdeu os direitos políticos até 2029, devido à Lei da Ficha Limpa.  

Fotos: MARCOS ARCOVERDE/ESTADÃO; Antoinio Araújo/Futura Press

Passageiro é vítima da corrupção


Usuário do Metrô em São Paulo paga um preço alto pelas fraudes. Não bastassem os serviços precários, ainda há o risco de acidentes

Alan Rodrigues e Pedro Marcondes de Moura


O usuário do metrô de São Paulo se depara rotineiramente com as consequências dos esquemas de corrupção que infestaram o setor de transportes sobre trilhos nos últimos anos. A ineficiência, a deterioração e a má qualidade dos serviços chegam a colocar vidas em risco. Nos últimos meses, uma sucessão de falhas vem acontecendo em boa parte dos 150 trens que circulam por 64 estações, infernizando os cerca de 4,6 milhões de pessoas que todos os dias se utilizam dos 74 quilômetros da malha metroviária de São Paulo. São centenas de incidentes, como a abertura das portas dos trens em pleno movimento e erros no sistema de frenagem das locomotivas. O relatório de Falhas produzido pelo próprio Metrô aponta mais de mil ocorrências mensais. Só este ano, segundo o documento, aconteceram 111 incidentes considerados graves. Desde 2012, já houve um choque entre trens, o descarrilamento de outro e até uma locomotiva andou sozinha sobre os trilhos. Os três episódios, segundo o Ministério Público, foram protagonizados por trens que passaram pelo processo de reforma da frota, com um custo estimado pelo Ministério Público em cerca de R$ 2,5 bilhões e com “evidências de superfaturamento” de aproximadamente R$ 875 milhões. São veículos que estão em funcionamento há quatro décadas e que, em qualquer lugar do mundo, “já seriam sucata”, como diz o promotor Marcelo Milani, de Defesa do Patrimônio Público. Na última semana, Milani exigiu, diante da série de irregularidades constatadas, que a reforma da frota seja paralisada pelo Metrô de São Paulo.

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TRISTE REALIDADE
Usuários passam por baixo de vagão para atravessarem de uma plataforma
para a outra, na estação da Luz, em São Paulo, na quinta-feira 5

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A maior parte das ocorrências aconteceu na frota K, uma linha de 23 quilômetros que cruza a capital paulista de leste a oeste. Esta é considerada a rota mais perigosa e mais movimentada da cidade. Seus 25 vagões fazem parte do total de 98 trens que estão sendo reformados nas linhas 1-Azul e 3-Vermelha. O Ministério Público estadual afirma que os contratos da frota K são superfaturados e pede a suspensão deles. “Isso é um escândalo, um prejuízo total aos cofres públicos. Não existe fora de São Paulo outro lugar em que trens sejam reformados”, lamentou o promotor Milani. Segundo ele, dos 98 trens licitados para reforma, um terço pode permanecer parado sem transportar um único usuário até o ano que vem. Atualmente, de acordo com o MP, 11 trens já se encontram paralisados por serem incompatíveis com o sistema do Metrô. “Esse é um problema recorrente nestes trens reformados”, diz o promotor. “Quem hoje está responsável pelas adaptações não são as empresas que receberam pela reforma, mas sim os funcionários do Metrô”, diz.

Os defeitos nas composições da frota K, construídas na década de 1980, são recorrentes. Relatório dos funcionários do Metrô encaminhado ao sindicato dos metroviários aponta, por exemplo, que o trem K07, o mesmo que descarrilou, apresenta várias falhas, inclusive de tração. Uma das mais graves ocorrências – e que acontece de forma sistemática, segundo os funcionários da Comissão Interna para Prevenção de Acidentes (Cipa) da empresa – é a abertura acidental das portas dos trens. Ela acontece em todos os vagões, de ambos os lados – inclusive do lado oposto da plataforma, onde se encontra o trilho energizado. “É um perigo tremendo. Basta que os vagões estejam lotados, como costuma ocorrer, que certamente as pessoas despencarão nos trilhos”, diz um maquinista, que pede para não ser identificado para evitar retaliações. “Ainda não morreu ninguém por muita sorte”, diz ele. “O índice notável (anotações oficiais que registram as paralisações dos trens acima de seis minutos) chegou a 111. Isso é sinal de que a segurança dos funcionários e passageiros está em perigo”, acrescentou.

O levantamento informal feito pelos funcionários do Metrô mostra ainda que, entre os dias 10 de outubro e 9 de novembro passados, aconteceram 696 ocorrências na frota K contra 276 nas Linhas C e D, os trens que não foram modernizados. “Nossos números afirmam que acontecem quase três vezes mais falhas nos trens reformados”, atesta o relatório em poder do sindicato da categoria. O rendimento das locomotivas modernizadas também é muito inferior ao dos outros. De acordo com as estimativas do sindicato dos metroviários, “as locomotivas da frota K rodam, em média, 230 quilômetros por dia e passam aproximadamente oito horas diárias fora de circulação, por causa das sucessivas falhas.” Ainda de acordo com os funcionários, antes das reformas os trens possuíam um desempenho melhor. “O trem fica cerca de quatro horas em manutenção e circula 550 quilômetros por dia. É um desempenho 130% maior, em números aproximados”, garantem os sindicalistas.

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PARALISIA
Enquanto contratos são superfaturados, 11 trens estão
parados esperando adequação das empresas

O diretor de Operações do Metrô de São Paulo, Mario Fioratti, tem minimizado a gravidade dos incidentes. Ele afirma que as composições reformadas estão em fase de adaptação e, por isso, acabam tendo mais problemas. Essa é uma versão rósea da realidade, garantem os funcionários da empresa. Para eles, a raiz do problema é falta de transferência de tecnologia das empresas que reformam os trens, como a Alstom. Elas não repassariam o conhecimento dos softwares aos funcionários do Metrô. “A gravidade nos incidentes pode ser aferida pelo tempo de espera do trem. Se demorar mais de seis minutos é porque é grave”, atesta.

No dia 5 de agosto, um trem da Linha 3-Vermelha descarrilou entre as estações Marechal Deodoro e Barra Funda. A composição teve um de seus truques (termo técnico que designa o sistema composto por rodas, tração, frenagem e rolamentos) danificado devido a um superaquecimento que, por sua vez, fora provocado pela ausência de graxa nas engrenagens da peça. Após sair dos trilhos, o vagão se arrastou por 800 metros e danificou a linha de alimentação elétrica do trem. Houve estouros, curto-circuitos e fumaça. Os passageiros saíram pelas rotas de fuga. Ninguém se feriu. Procurado, o Metrô de São Paulo declarou, por meio de nota, que o seu “serviço é reconhecido internacionalmente como um dos melhores do mundo”. Disse também que “não há relação entre os trens modernizados e os incidentes citados”. Não é o que pensa o Ministério Público de São Paulo. Nem o próprio usuário acredita nessa versão. Nas últimas semanas, os passageiros colaram nas paredes dos trens placas com mensagem em protesto contra a formação de cartel para o superfaturamento de licitações. Como se fosse um aviso aos usuários, a placa traz a seguinte frase: “Este trem foi superfaturado em uma licitação fraudulenta”. A autoria é desconhecida. O ato ganhou destaque nas redes sociais.

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Fotos: Joel Silva/ Folhapress; Renato Ribeiro Silva/Futura Press/Folhapress

http://www.istoe.com.br/reportagens/338278_PASSAGEIRO+E+VITIMA+DA+CORRUPCAO

O último herói


Com a morte do extraordinário líder sul-africano que implodiu o apartheid, desaparece também um personagem cada vez mais raro em nosso tempo: alguém capaz de mudar o mundo ao lutar por uma ideia, mesmo que as circunstâncias conspirem contra ela

Amauri Segalla

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Nelson Mandela
1918 - 2013
Em 1983, o diretor da cadeia de Pollsmoor, em Cape Town, na África do Sul, fez a seguinte declaração sobre um de seus prisioneiros: “De tão imponente, ele parece ter uns três metros de altura. É impossível não notar os ombros firmes, o olhar penetrante, a postura ereta. Fica a maior parte do tempo em silêncio, mas quando fala dá a impressão de dizer coisas importantes. Não se assemelha a nenhum outro homem que eu jamais tenha visto, e acho que nunca conhecerei alguém como ele. Lembra mais um chefe de Estado. Um rei, para dizer a verdade.” O preso em questão, identificado pelo número 46664, atendia pelo nome de Nelson Rolihlahla Mandela e já era, mesmo no cárcere, a principal voz da humanidade contra a segregação racial. Ao implodir o apartheid, o regime de exclusão concebido pela minoria branca da África do Sul, Mandela se tornaria algo ainda maior: ele foi provavelmente o último herói de nosso tempo. Morto na quinta-feira 5, aos 95 anos, num momento em que o mundo em geral e o Brasil em particular gritam por mudanças, o ex-detento sul-africano provou, com seu perene combate contra o racismo, que vale a pena lutar por uma ideia, mesmo que as circunstâncias conspirem contra ela.


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O extraordinário na biografia de Mandela é que ele se tornou uma voz mundial, embora tenha passado 27 anos dentro de um presídio, período equivalente a quase um terço de sua vida adulta. O fantástico na trajetória de Mandela é que ele venceu a guerra contra o racismo sem o uso da violência, e eis aqui um ponto em comum com as pregações pacíficas do indiano Mahatma Gandhi. O espetacular na vida de Mandela é ser eleito presidente aos 76 anos sem jamais ter ocupado outro cargo público e lançar a partir daí as bases de uma nova democracia. “Mandela mostrou para o mundo que a humanidade é capaz de superar os desafios mais intransponíveis”, disse à ISTOÉ o cientista político sul-africano Ralph Mathekga. “Ele viveu de acordo com os ideais mais elevados.”

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 O que distingue Madiba, o nome tribal pelo qual Mandela era conhecido em seu país, de outros mitos? Para começo de conversa, ele deixou uma obra acabada e não a meio caminho, como sucedera a tantos ícones. O argentino Che Guevara morreu antes de realizar a utopia de uma América sem diferenças. Símbolos da luta antirracial, os americanos Martin Luther King e Malcolm X desapareceram cedo demais para levar adiante o sonho de uma sociedade igual para brancos e negros. Entre os vivos, não há substitutos nem sequer candidatos à altura de Mandela. O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, apresentou-se como um revolucionário em um país de alma conservadora, mas hoje é uma decepção até para os negros. Na África do Sul, ninguém ousou lançar-se como sucessor de Mandela, nem mesmo nos altos escalões políticos, nem mesmo no seu universo familiar. Ao sacrificar uma vida inteira pelo ideal da igualdade, o ex-prisioneiro foi tão verdadeiro quanto único e a dimensão de seu legado talvez só se compare, na era moderna, à de outro gigante, o indiano Mahatma Gandhi, mártir da independência de seu país. Como Gandhi, Mandela ganhou, em vida, a aura de santo, mas aqui é preciso fazer uma ressalva. Mais do que um ser político, Gandhi era um líder espiritual, propagador de uma corrente que defendia o amor extremo pelo próximo e a busca implacável pela verdade suprema. Seus discursos carregados de mensagens filosóficas conquistaram milhões de seguidores, e não só na Índia. Gandhi parecia ser e agia, de fato, como um santo – e foi assim que ele fundou o Estado moderno indiano. Mandela jamais teve intenções religiosas e não estava preocupado em salvar a alma de ninguém. Sua abordagem era outra: o combate incansável contra a segregação racial na África do Sul – e no resto do mundo.

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Longe de ser santo, Mandela foi um homem de contradições. O jornalista americano Richard Stengel conviveu com o sul-africano durante três anos e dessa experiência nasceu o livro “Os Caminhos de Mandela”. A obra é fascinante por desnudar o líder antirracista. Adepto tenaz da não violência, Mandela defendeu na juventude a resistência armada contra os brancos opressores. Na vida privada, o ex-presidente era frio com pessoas próximas, embora fosse sensível com todos os outros. Como pai, economizava sinais de afeto, mas com desconhecidos era capaz de demonstrar rara gentileza. Oferecia a mão a qualquer um que o abordasse e exibia genuíno interesse pela pessoa, só que jamais soube o nome dos seguranças que zelavam pela sua vida enquanto era chefe de Estado. Era um homem do povo e ao mesmo tempo desfrutava da companhia de celebridades. Ao visitar aldeias isoladas, não se importava em comer com as mãos, mas em almoços com líderes mundiais ofuscava os convivas com sua postura aristocrática.

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Passar 27 anos na prisão deixa marcas indeléveis em qualquer um, inclusive em gigantes como Mandela. Até adoecer, conservou manias adquiridas no cativeiro. Acordava sempre antes do amanhecer e então se dedicava a duas horas de exercícios físicos. Depois, revigorava-se com um banho de sol. Antes dessa rotina, arrumava meticulosamente a cama, mesmo que estivesse hospedado em hotéis que pagam camareiras para fazer esse tipo de serviço. Quando perguntado sobre os motivos que o levavam a dobrar cobertores e colocar travesseiros e lençóis em ordem, respondeu que era “apenas um homem habituado a disciplinas”. O efeito mais perverso da prisão, declarou anos depois de ganhar a liberdade, foi ter sido privado da convivência com crianças. Mandela tinha verdadeira adoração por elas. Gostava de ouvi-las sobre os assuntos da nação e pedia a assessores que agendassem visitas a escolas. Ao fim de uma conversa com um jovem estudante, despedia-se sempre da mesma forma: “Estou muito honrado em conhecê-lo.” Era um sentimento sincero de quem foi privado, pelos brancos que o mantiveram cativo, de conviver com os próprios filhos.

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A magia de Mandela está, em boa medida, em sua retidão moral, e de novo vale lançar a pergunta: há alguém no mundo de hoje que mereça tal reconhecimento? A resposta é provavelmente não. Um dado maravilhoso na vida de Mandela é sua recusa em se vingar de seus opressores. Coloque-se na pele de alguém que passou quase três décadas na cadeia apenas por defender uma ideia e você certamente pensará em destruir os tiranos que arruinaram a maior parte dos seus dias. Mandela não pensava dessa maneira. Ao sair da cadeia e iniciar a caminhada rumo à Presidência, ele resistiu aos insistentes pedidos de membros radicais do partido Congresso Nacional Africano (ANC, na sigla em inglês), que exigiam a desforra contra os brancos racistas. “Não é hora de guerra, é chegado o momento da paz”, pregava o maior líder negro de todos os tempos, numa linguagem messiânica que o marcaria para sempre. Mas Mandela não falava isso, digamos, apenas por ter a alma pura. Dotado daquele tipo de sagacidade que só os grandes líderes possuem (“Mandela é mais esperto que todo o Congresso americano junto”, disse, meio de brincandeira, meio a sério, o ex-presidente americano Bill Clinton, quando questionado sobre o que achara do presidente sul-africano, em 1995), Mandela percebeu que, quisessem os negros ou não, ele precisava do apoio dos brancos para chegar ao poder, e foi assim que acalmou os ânimos mais exaltados. “A importância de Mandela está no fato de levar toda uma nação a se reconciliar com o seu passado e não fazer julgamentos com base na cor da pele”, afirmou à ISTOÉ Georgina Alexander, pesquisadora do Instituto Sul-Africano de Relações Raciais. “Ele mostrou que uma pessoa pode perdoar aqueles que lhe fizeram mal, e nisso acho que serviu de exemplo para o mundo inteiro.”

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Em uma entrevista concedida logo após se tornar o primeiro presidente negro da África do Sul, Mandela foi questionado sobre o que o manteve firme no propósito de jamais abandonar a luta contra o apartheid. “Mais de uma vez, me ofereceram a liberdade, desde que eu entregasse o passaporte e fugisse para outro país, para nunca mais voltar para a África do Sul”, contou Mandela. “Eu poderia ter ficado metade do tempo que passei na cadeia, mas estaria traindo meus irmãos. Traição é uma palavra que na minha aldeia não existe.” Por mais que tenha ganhado o mundo, Mandela jamais deixou de ser um homem, enfim, apegado a raízes tribais. Ele nasceu no pequeno vilarejo de Mvezo, na província de Cabo Oriental, filho de um conselheiro importante da comunidade. O mais inteligente de 12 irmãos, seu caminho inevitável era virar chefe da aldeia, mas a clareza de ideias e propósitos o levou a posições mais elevadas. Aos 7 anos, entrou na escola e se tornou o primeiro membro da família a ser alfabetizado – numa sina espetacular, ele foi quebrando barreiras e passou a ser, como que empurrado pelo destino, pioneiro em diversas fases da vida. Foi o primeiro negro de Cabo Oriental a entrar na universidade (matriculou-se no curso de direito) e, já formado, o primeiro a trabalhar em uma firma de advocacia.

Desde cedo, Mandela jamais aceitou a condição de cidadão de segunda classe imposta pelos brancos. Em 1943, aos 25 anos, deparou-se com uma cena que mudaria sua vida para sempre. Em Johannesburgo, viu, num final de tarde, um aglomerado de negros diante de um açougue, à espera de restos de carne que seriam arremessados pelos brancos. Nesse dia, teve a certeza de que seu papel no mundo seria fazer o impossível para acabar com aquele horror. Ingressou no Congresso Nacional Africano, partido que prega o fim do apartheid, e logo se viu que Mandela seria um líder brilhante. Fez discursos, organizou encontros, angariou simpatizantes para a luta contra o racismo. Apesar da disposição beligerante de alguns de seus parceiros, recusou-se a adotar a violência como estratégia válida. Mas fez isso até certo ponto. “Nós adotamos a atitude de não violência só até onde as condições permitiram”, lembraria Mandela anos depois. “Quando as condições foram contrárias, abandonamos essa posição.” Por condições contrárias, entendam-se os atentados perpetrados pelos brancos, que culminaram na morte de inúmeros colegas seus. Decidido a partir para o tudo ou nada, Mandela viajou para a Etiópia, onde recebeu treinamento militar durante dois meses. De volta à África do Sul, planejou ações de sabotagem contra alvos militares, mas seus projetos fracassam. Em 1964, foi preso sob a acusação de trair o país e sentenciado à prisão perpétua.

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Na prisão, Mandela jamais se submeteu aos opressores. Recusou-se a entregar os nomes de militantes do CNA e, por isso, sofreu constantes ameaças de morte. De simples rebelde, seu nome passou a ser celebrado como um destemido defensor dos negros, mas com uma diferença notável em relação ao discurso dos outros: Mandela enxergou na paz – e no respeito mútuo entre brancos e negros – a única saída para o futuro da África do Sul. “Assim, Mandela passa a ser tão aclamado por aqueles que estão no poder quanto pelos oprimidos”, diz Thabo Mpakanyane, analista político sul-africano. Nesse aspecto, Frederik de Klerk, o último branco a presidir o país, teve um papel exemplar. Ele percebeu a posição ao mesmo tempo firme e moderada de Mandela e viu nele um possível sucessor para ceifar as tensões raciais. Em 1990, depois de forte pressão internacional, Mandela deixou a prisão. Em 1993, ganhou o Nobel da Paz por sua defesa do diálogo permanente, a despeito da cor da pele. Em 1994, foi eleito o primeiro presidente negro da história da África do Sul, reforçando a sina de ser um pioneiro em vários momentos da vida. Como líder máximo da África do Sul, Mandela cumpriu a promessa de sepultar a segregação e com isso consolidou uma democracia plena, algo ainda hoje incomum no continente africano. Alguns meses antes de morrer em sua casa em Johannesburgo, para onde havia sido levado no dia 1º de setembro após passar quase três meses internado para tratamento de uma infecção pulmonar, Mandela afirmou que não temia o fim. “Fiz tudo o que podia para o meu país”, disse o maior herói de nosso tempo. O que, verdade seja dita, não foi pouco.

Colaborou Mariana Queiroz Barboza
fotos: JURGEN SCHADEBERG; ALEXANDER JOE, LLUIS GENE - afp; Lefty Shivambu/ Pretoria News/afp; WALTER DHLADHLA
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fotos: Hans Gedda/Sygma/Corbis

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