terça-feira, 9 de setembro de 2014

De Rui Barbosa a André Lara, o papel dos cabeças de planilha


Para entender o papel de André Lara Rezende na campanha de Marina Silva, sugiro a leitura do primeiro capítulo de meu livro “Os Cabeças de Planilha”, lançado em 2005.
Nele, comparo a situação do Brasil no período do Encilhamento (início da República) e no Plano Real. Vale para o pós-plano Real, visto que mantiveram-se as condições de apropriação das políticas públicas pelo mercado.
Identifico os principais personagens desse jogo: o rentista, o banqueiro, o economista e o político. O rentista é agente passivo, que entrega a carta branca ao banqueiro. Este faz o meio campo com o político. Oferece ao político recursos e ideias. O agente das ideias é o economista, que estudou fora e é apresentado como o portador das boas novas. No poder, o economista prepara a política econômica mais adequada aos interesses de seus padrinhos.
“Encilhamento” e Real: oportunidades perdidas
No século 19 o fechamento econômico havia produzido, no Brasil, uma classe agrária anacrônica; no final do século 20, uma classe industrial mal acostumada. Com esse movimento de abertura, com a economia mundial mergulhando em processos agudos de liberalização financeira, surge uma nova classe, internacionalizada, dominando as últimas ferramentas financeiras. São os “financistas”, no século 19 representada pelo Barão de Mauá, Conselheiro Mayrink, Conde de Figueiredo, Conde de Leopoldina; no final do século 20, pelos bancos de investimento que surgem nos anos 80, como o PEBB, Garantia, Icatú, Pactual.
Nos dois momentos, havia uma economia nacional que começava a se integrar ao mundo, grande liquidez internacional, uma situação excepcional na economia mundial, e um paradoxo brasileiro: um enorme potencial a ser explorado no mercado interno e uma poupança acumulada no período anterior, empoçada ou meramente preocupada com ganhos especulativos por falta de um ambiente de negócios favorável.
Externamente, havia um volume expressivo de capitais brasileiros no exterior --uma mistura de sub-faturamento das exportações, corrupção política, crime organizado e caixa dois—que florescia sob os ventos dos novos mecanismos financeiros criados para alavancar as novas modalidades de negócios. No século 19, a poupança liberada pela Lei Eusébio de Queiroz, que proibiu o tráfico negreiro; no século 20, os enormes ganhos especulativos proporcionados pela inflação dos anos 80.
Nos dois momentos, há uma confluência inédita de fatores, abrindo a possibilidade de notável expansão no mercado de consumo. No século passado com a Abolição e a política de importação de imigrantes cria-se um novo mercado interno com enorme potencial. No final do século 20 com os milhões de brasileiros que ingressam no mercado de consumo nos primeiros meses do Real, abre-se a possibilidade de um enorme salto no mercado consumidor.
Por outro lado, o crescimento dos países centrais provoca o transbordamento de capitais produtivos para países que privilegiam o mercado interno. No século 19, capitais ingleses ajudam na industrialização dos Estados Unidos; no século 20, capitais americanos se voltam para a Ásia e para a China.
Em ambos os momentos, no Brasil, há a necessidade de uma remonetização da economia, isto é, de uma política de aumento das emissões monetárias para atender às novas demandas da economia: no final do século 19, devido à mudança nas relações do campo, com a substituição do trabalho escravo pelo trabalho assalariado; no Plano Real, com o fim da inflação e a substituição de uma moeda inflacionada (o cruzeiro) por uma nova moeda, o real.
A nova etapa de desenvolvimento depende de movimentos prévios bem sucedidos. O primeiro, da criação de um ambiente favorável à realocação da poupança interna e do investimento externo. O sucesso desse movimento depende de dois fatores: uma nova regulação, que prepare a economia para as novas formas de negócio internacionais; e uma remonetização adequada, que canalize a poupança para a atividade produtiva.
Só que o controle sobre a remonetização confere um poder inédito aos seus condutores. Nos dois momentos – no “Encilhamento” e no Plano Real --, os interesses individuais se sobrepuseram aos interesses de país. Em lugar do salto de crescimento, houve concentração de renda, rentismo desbragado, aumento geométrico da dívida pública e estagnação da economia.
Essa é a chave para se entender os dois momentos: a remonetização, o poder conferido às autoridades econômicas e políticas para definir de que maneira o novo dinheiro fluirá para a economia. É aí que se dá o pacto de poder e de dinheiro entre os novos grupos hegemônicos, os condutores da política econômica, o poder financeiro e o poder político.
Nos dois momentos os personagens são os mesmos. Mudam apenas os atores.

Os personagens da história

Rentista – é o personagem passivo (ou não) da história. É o detentor do grande capital nacional, que vai atrás de rentabilidade para ele. No século 19 eram ex-traficantes de escravos, comerciantes que enriqueceram com exportação de café ou de algodão, políticos ou advogados com influência nas políticas públicas. Mantinham seus recursos entesourados no país; os mais sofisticados, aplicavam na praça londrina. Nos anos 90, especuladores que enriqueceram na década de 80, com os grandes movimentos agressivos do mercado de capitais e da dívida pública brasileira, políticos ou funcionários públicos que enriqueceram com grandes golpes permitidos pelo processo inflacionário; empresários que venderam suas empresas e resolveram viver de rendas. No final dos anos 80 há início um processo de internacionalização dessa poupança, com os recursos sendo depositados inicialmente em bancos suíços e, depois, em paraísos fiscais preferencialmente do Caribe.
Financista – são os donos de bancos de investimento que atuam para o grande capital rentista, têm contato com o grande capital internacional, e aprenderam as novas formas de engenharia financeira. No final do século 19 os nomes mais ilustres são o Conde de Figueiredo, o Conselheiro Mayrink, o Conde de Leopoldina. Nos anos 80, um conjunto amplo de corretoras que se transformam em bancos de investimento. Dentre eles, os mais destacados são o PEBB, Garantia, Pactual, Icatu, Bozzano Simonsen. Nos anos 90 entram em cena o Opportunity, o Matrix, o BBA. (na foto, Daniel Dantas e o Conselheiro Mayrink).
Político – tem papel fundamental para definir o ambiente regulatório adequado ao financista e ao rentista. Depende do rentista como financiador de eleições; do economista como formulador das bandeiras de campanha. No alvorecer da Republica, ante a alienação do Marechal Deodoro, a figura-chave é o primeiro Ministro da Fazenda republicano, Rui Barbosa. No Plano Real, ante a alienação de Itamar Franco, o Ministro da Fazenda e depois presidente Fernando Henrique Cardoso dá as cartas.
Economista – o formulador de política econômica. É o peão, o sujeito que faz o meio campo entre os interesses dos financistas e dos políticos. Em geral, estudou fora ou tem conhecimento das últimas teorias econômicas, e das últimas práticas regulatórias. O conhecimento que traz de fora, em linha com o último pensamento econômico, ou com a ideologia dominante, fornece o discurso de que carece o político para se legitimar perante a opinião pública. Seu conhecimento técnico definirá o modelo regulatório ou de monetização que atenda aos interesses dos financistas e dos rentistas. Ele cumpre seu papel no governo e se torna sócio menor dos financistas. Foi o caso de Rui Barbosa, no “Encilhamento” e de praticamente todos os economistas que ajudaram na formulação do Plano Real.
A “haute finance”—designação do economista Polanyi para o grande capital financeiro que começa a se organizar em meados do século 19, no primeiro grande ciclo de liberalização financeira e passa a intervir decididamente na vida das nações, visando criar o ambiente adequado para os negócios. Na primeira etapa, no final do século 19 o predomínio era dos bancos ingleses, capitaneados pelos Rotschild; na segunda, no final do século 20, da banca norte-americana, lierada pelo Citibank.

Ferramentas de poder

Havia três ferramentas poderosas das quais se valeram os economistas brasileiros para exercer o poder e abrir caminho rumo à fortuna pessoal: a remonetização, permitindo a acumulação de renda nas mãos do grande capital, a regulação da economia, criando o espaço favorável para o desenvolvimento do grande capital, e a administração da dívida pública, como o grande lócus onde iria ocorrer a transferência de renda dos demais setores da economia para o capital rentista.
No governo Deodoro, o movimento se dá em torno das grandes concessões ferroviárias, de serviços públicos ou de terras para colonização. No governo FHC, na privatização e no crescimento descontrolado da dívida pública.
Rui Barbosa viu na reforma monetária a possibilidade de beneficiar grupos específicos --e de ser beneficiado por eles. Beneficiou especialmente o Conselheiro Francisco de Paula Mayrink e saiu do governo sócio de três mpresas dele.
Do lado dos economistas do Plano Real, o processo foi semelhante. Eles surgem no bojo do Plano Cruzado, voltam com o Plano Real e implementam a troca de moedas. Deparam-se, nesse trabalho, com o negócio do século: a reciclagem da poupança brasileira que, desde meados dos anos 80, se internacionalizara.
Esses momentos permitem redesenhar o futuro não só econômico como político dos países. Defina-se por onde circulará o novo dinheiro e se definirá quem serão os novos vitoriosos da economia.
Se se decidisse remonetarizar pela não rolagem da dívida pública, por exemplo, haveria uma esplêndida redução do endividamento – que já havia sido bastante reduzido pelo bloqueio de cruzados do Plano Collor.
Decidiu-se pela remonetização através da captação externa de dólares, que aqui eram adquiridos pelo Banco Central através da emissão de reais.
Em todo processo de estabilização usando como âncora o câmbio, há a preocupação em criar uma gordura, uma desvalorização cambial inicial que propicie fôlego para a estabilização. Depois do início do plano, o câmbio tem que permanecer estável para sinalizar para a nova estrutura de preços, e permitir a importação de produtos sujeitos a altas especulativas. Por isso a gordura inicial é essencial.
A cada dia que passa, há uma inflação interna não inteiramente domada, que é repassada para os preços dos produtos exportados. Sem possibilidade de compensar com o câmbio, ocorre um encarecimento dos produtos internos vis-a-vis os produtos externos. Há uma redução das exportações, um aumento das importações, com a perspectiva de um estrangulamento cambial a médio prazo. Daí a necessidade de se criar uma gordura inicial no câmbio, para permitir uma folga que suporte o período de transição da estabilização.
Com o Plano Real, em vez dessa precaução, tratou-se de apreciar o Real em 15% da noite para o dia. Não se tratava apenas de criar um garantia extra, ainda que exagerada contra a inflação. Sem oficialmente consultar ninguém da equipe, a exemplo de Rui Barbosa quando anunciou os beneficiários de sua política monetária, Gustavo Franco tomou a decisão solitária de apreciar o câmbio em níveis irreais. O único aplauso foi de Mário Henrique Simonsen, guru maior do grupo, e membro do Conselho Internacional do Citibank.
Em seguida, especialmente Edmar Bacha e Gustavo Franco, passaram a difundir a necessidade de criação de déficits em contas correntes, que permitisse atrair poupança externa, que ajudaria a complementar a poupança interna e a pavimentar o caminho do crescimento. Tratava-se de um princípio econômico falso (cujos fundamentos discutiremos mais adiante), mas que serviu de álibi para a apreciação cambial.
No início do plano Real a balança comercial exibia um superávit anual de US$ 14 bilhões. No segundo semestre de 1994, todas as imprudências foram cometidas para reverter esse quadro. Além da apreciação cambial, derrubaram-se tarifas de importação, facilitou-se até a importação pelo correio.
Para que o modelo de remonetização via ingresso de capitais externos fosse bem sucedido, isto é, para que criasse uma nova elite financeira e política, havia a necessidade de transformar o dólar em ativo escasso. Quanto mais escasso o dólar, maior a taxa de juros para atraí-lo.
No final do ano, as contas externas estavam desequilibradas e tinha se alcançado o objetivo de tornar o dólar um ativo raro, pelo qual o Tesouro chegou a pagar 45% ao ano.
Quem dominava o circuito de captação de dólares passou a deter o poder. Quem não dominava, quebrou. Com o golpe da apreciação, em poucos meses criou-se uma enorme dependência de dólares. Com essa manobra simples, aparentemente asséptica, estava definido o jogo, sem expor o flanco ao inimigo, como com Rui Barbosa, quando escolheu nominalmente os vencedores do jogo da remonetização.
Quem comandou o movimento de atração de dólares foram os novos bancos de investimento. A maior parte dos recursos externos captados era do grande capital brasileiro exportado nos anos anteriores. Em menos de um ano, a crise de inadimplência quebrou a espinha dorsal da indústria e da agricultura.
Em vez de esterilização da dívida pública, houve crescimento exponencial para remunerar os fluxos de capitais externos. Foi nesse ambiente da dívida pública que se processa a maior transferência de renda da história.
No Encilhamento e no Real houve especulação enriquecimento de poucos, concentração de renda e – pior – mataram-se as duas maiores janelas de oportunidade que a história do país registrou.
Politicamente, o processo tem um discurso legitimador, não explicitado, uma espécie de código tácito entre seus operadores. O país tem uma classe empresarial anacrônica, um operariado despreparado, não tem quadros tecnológicos disponíveis? Simples, escolhe-se uma classe internacionalizada – os financistas – com experiência em novos modelos de negócios, acesso ao grande capital interno-exportado e internacional, e lhes entregue as ferramentas para se transformar nos agentes de modernização. Na interpretação de San Tiago Dantas, Rui Barbosa teria tentado “libertar forças novas que substituíssem a estrutura agrária e feudal do Império”.
Com o tempo, os interesses particulares se sobrepõem ao geral. Cria-se um processo econômico torto, adaptado aos interesses de grupos, supondo-se que o novo modelo colocará a economia em um círculo virtuoso, capaz de corrigir sozinha as concessões iniciais. Depois, o projeto vai se entortando mais e mais, a sobrevivência dos beneficiários passa a exigir novas gambiarras, que acabam por entortar mais o que torto está. Novos grupos de interesse se solidificam rapidamente sobre os alicerces tortos do modelo inicial.
Os pontos centrais do fracasso são comuns a todos esses movimentos especulativos. Primeiro, o deslumbramento com a riqueza fácil, criando uma espécie de lassidão moral nos economistas, que passaram a subordinar todas as decisões de política econômica aos interesses imediatos do capital rentista.
As demonstrações de novo-richismo no período não ficam atrás do ambiente descrito pelo Visconde de Taunay em seu romance “O Encilhamento”. Todos da classe média, alguns ex-funcionários públicos, um se torna piloto de corrida e criador de cavalos, outro convida para degustação de vinhos em sua casa, através de colunas sociais, todos, em algum momento, tornam-se sócios de bancos de investimento, seguindo o exemplo de Rui Barbosa.
O segundo ponto, consequência do primeiro, foi a escolha dos financistas que comandaram o processo. Com os interesses pessoais se sobrepondo aos nacionais, levou quem se articulou melhor.
O terceiro, a falta de um estadista para corrigir o errado. Não há como construir uma nação sem uma profunda profissão de pé nos seus habitantes, e sem racionalidade.. Napoleão e Caixas dormiam com seus soldados, Franklin Roosevelt celebrava a força do americano comum. FHC nunca ocultou seu deslumbramento com os salões e seu desprezo com sua missão de “comandar o atraso”. Esse temperamento explica a falta de vontade em corrigir as distorções e o fato do desenvolvimento interno jamais ter se tornado prioridade em seu governo.
http://jornalggn.com.br/noticia/de-rui-barbosa-a-andre-lara-o-papel-dos-cabecas-de-planilha

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