terça-feira, 9 de setembro de 2014

O retorno de Brizola ao centro do debate político no Rio de Janeiro

Discursos de candidatos apresentam apreço à memória de Brizola
Sob um enfoque geralmente conservador, durante décadas o ex-governador Leonel Brizola foi responsabilizado pelas mazelas da cidade e do estado do Rio de Janeiro. Contudo, um curioso fenômeno tem ocorrido na atual campanha eleitoral para o governo do estado: o nome de Brizola ressurgiu com força e é mobilizado, desinibida e folgadamente, pelos principais candidatos. Anthony Garotinho (PR), Marcelo Crivella (PRB), Luiz Fernando Pezão (PMDB) e Lindbergh Farias (PT), que despontam na frente das sondagens eleitorais, têm feito não poucos elogios ao legado de Brizola, sobretudo no que compete ao tema educação pública. Também o próprio líder do DEM, César Maia, candidato ao Senado Federal, não tem deixado de recorrer ao nome do ex-governador em sua propaganda televisiva. Um fenômeno inusitado.
Garotinho e César Maia são dois ex-correligionários do PDT, que saíram da sigla trabalhista rompidos com Brizola. Anos a fio, teceram severas críticas ao “velho caudilho” e procuraram afastar-se da imagem “comprometedora” de Brizola, em particular sob o ângulo das Organizações Globo, que atribuíam, e ainda atribuem, ao ex-governador a responsabilidade maior pelo “caos urbano”, a “favelização” e o “aumento do crime” no Rio. Para os dois ex-trabalhistas, em seus respectivos momentos de ascensão política, a desgastada e demonizada imagem de Brizola tendia a atrapalhar. O atual governador, Pezão, que busca a reeleição, em recente debate televisivo alegou ser “uma lástima o abandono dos Cieps de Brizola, que poderiam formar mais cidadãos e reduzir o crime”. Curioso o candidato fazer referências positivas a Brizola. Durante anos Pezão foi vice de Sérgio Cabral Filho, precisamente o governante que fechou mais de 200 escolas e investiu muito pouco em educação. Ademais, membro do PMDB, partido que décadas atrás desqualificava os Cieps e suspendeu a educação em horário integral, assim que sucedeu a Brizola (com Moreira Franco, em 1987).
Crivella, por sua vez, provavelmente acentua a importância da educação integral tendo em vista um potencial apelo à memória de Brizola entre os estratos populares. Propondo os “Cieps do século XXI”, Lindbergh é o candidato que demonstra a intenção mais nítida em associar a sua candidatura à imagem de Brizola. Um caso que realmente chama a atenção, pois o candidato integra o PT, que foi um feroz opositor de Brizola e dos Cieps. No passado, já teve candidato petista – Jorge Bittar, na eleição ao governo do estado, em 1994 –, reiterando a elitista cantilena do jornal O Globo, ao atribuir um “desperdício de recursos públicos em escolas de luxo”. Em todo caso, Lindbergh não foi formado nas hostes do PT, tendo ingressado há poucos anos na legenda, além de possuir boa avaliação em ações em torno da educação pública, em sua experiência como prefeito de Nova Iguaçu.
A que se pode atribuir tal fenômeno político? Incoerências? Não poucas. Porém, certas peculiaridades da cultura política do Rio de Janeiro e fatores de conjuntura falam mais alto.
Três tradições políticas do Rio de Janeiro: brizolismo, lacerdismo e chaguismo
No Rio de Janeiro, os partidos são fatores que permitem baixa capacidade de compreensão sobre a política estadual contemporânea. Dependendo das circunstâncias e das lideranças proeminentes, um partido que se encontra em posição destacada pode praticamente desaparecer em pouco tempo. O poderoso PMDB de hoje esteve à míngua na década de 1990. O PSDB teve o seu período de maior êxito sob a liderança de um ex-trabalhista, Marcelo Allencar, governador eleito em 1994, que havia rompido com Brizola. Encerrado o mandato de Allencar, desde então o PSDB beira a insignificância. O PDT de Brizola, muito expressivo nos anos 1980 e em meados da década seguinte, tornou-se uma pálida lembrança do passado. Nesse sentido, pouca estabilidade e enraizamento social possuem os partidos no Rio de Janeiro.
Nem sempre foi assim. Na República de 1946, a UDN e o PTB protagonizavam o cenário carioca, com encarniçadas disputas e conflituosos projetos de sociedade, até o golpe de 1964. Posteriormente, essas heranças partidárias constituíram-se em tradições políticas sólidas, como destacam os historiadores Carlos Eduardo Sarmento e Marly Motta. O trabalhismo, convertido em brizolismo, após a década de 1980, conforme estudo de Trajano Sento-Sé, e o udenismo ressignificado como lacerdismo. Foram-se as siglas com o Ato Institucional no. 2, em 1965, mas as cosmovisões e os comportamentos políticos deitaram raízes. Ademais, o perfil de atuação política de Chagas Freitas, no antigo MDB dos anos 1970, igualmente pode ser considerado uma tradição política consistente, em especial no interior do estado.
Para usar o conceito de “tipo ideal” formulado pelo sociólogo Max Weber, se pode argumentar que o Rio de Janeiro possui três “tipos puros” de tradições políticas consolidadas: o brizolismo, que acentua a polarização social de classes, e dá ênfase à educação pública, ao ativismo econômico e social do Estado, aos direitos humanos e ao confronto com as “elites”. O lacerdismo, tipificado por um desembaraçado elitismo social, pelo moralismo dos costumes públicos e o privatismo econômico. Por seu turno, o chaguismo, marcado por práticas políticas clientelistas, concebendo um caráter apassivador à cidadania, e por um saliente pragmatismo político. Evidentemente, na prática política cotidiana e em conformidade com o tempo, ocorrem entrecruzamentos entre as referidas tradições, em que uma delas sempre tende a sobrepujar as demais. Os líderes e candidatos de ocasião têm personificado e mobilizado, aqui e ali, as tradições enraizadas.
Na década de 1990 e em boa parte dos anos 2000, o outrora trabalhista César Maia surfou na onda neoliberal e não tinha símbolo mais caro para utilizar: Carlos Lacerda era reivindicado como sua inspiração de governo na capital. Com isso, foi exaltado pelas Organizações Globo, que deitavam falação positiva na referência do passado. Entretanto, Maia não deixou de combinar o lacerdismo com elementos do brizolismo. Especificamente, o projeto “Favela-Bairro”, tomado como iniciativa de valorização da dignidade das populações faveladas. A política tipicamente lacerdista das remoções teve peso menor. Um casamento esdrúxulo, sem dúvida, em que certos valores brizolistas ficavam secundarizados, mas não totalmente descartados do governo municipal de César Maia. Por outro lado, desde o governo Garotinho (1999-2002), o estado do Rio de Janeiro tem se deparado adeptos marcantes do clientelismo, em que um chaguismo predominante tem sido combinado com o privatismo econômico de cunho lacerdista. O renegado Brizola e o demonizado brizolismo haviam ficado fora de moda há muito tempo. O que tem ocorrido?
Transição para uma nova agenda pública?
Desde as jornadas de junho de 2013, as ruas no Rio de Janeiro têm convivido com a presença de inumeráveis movimentos de protesto. Expressivas greves de trabalhadores dos setores público e privado; ocupação da Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro; acampamento em frente à residência do ex-governador Sergio Cabral (“Fora Cabral!”); campanha “Cadê o Amarildo?”; movimento dos sem teto; críticas aos gastos públicos prioritários com a Copa do Mundo; eis alguns movimentos sociais significativos que se expressaram no espaço público até a pouco. Um cenário caracterizado por confrontos nas ruas, em que a violência policial tem demasiadamente chamado a atenção. Inclusive a violência perpetrada contra as populações pobres, negras e faveladas, da cidade do Rio de Janeiro. Nesse sentido, após anos a fio de prevalência no debate político, o tema da segurança pública, do combate ao crime, continua ganhando destaque, mas não tem revelado a proeminência de tempos atrás. A educação tem alcançado ponderável importância na retórica dos candidatos. Provavelmente representa um influxo da cidadania ativa. Importa registrar: a despeito da pauta da TV Globo e de demais veículos massivos de comunicação do Rio, que insistentemente dão prevalência à segurança pública e há muito têm moldado o debate político na cidade e no estado do Rio de Janeiro.
Desse modo, dentre as três tradições políticas consolidadas, seguramente é a matriz brizolista a que maior aderência possui na relevância dada à educação e à presente conjuntura. Uma mão na roda para os candidatos. Levando em conta que se trata da principal corrente de esquerda no estado, ao lado de um PT debilitado por anos de aliança com o PMDB de Cabral Filho, o PSOL poderia se apropriar com credibilidade da tradição brizolista, haja vista também a “pemedebização” ou a assimilação da cosmovisão chaguista no próprio PDT. O PSOL tem mobilizado temas caros à trajetória de Leonel Brizola, tais como: os direitos humanos estendidos às comunidades faveladas e os investimentos para a educação pública. Contudo, considerando a limitação geográfica do voto e do apelo político do PSOL – áreas de classe alta e média da capital, subregiões da cidade que Brizola ironizava como “um pessoal que pensa que ovo dá na geladeira” –, laivos de lacerdismo não deixam de se manifestar em algumas circunstâncias. Uma barreira que não é instransponível, mas que impossibilita presentemente ao PSOL acolher o legado da tradição brizolista.
Conforme outro dia indagou Orlando Zaccone, reconhecido defensor dos direitos humanos e delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro, em sua página no Facebook: “Todos querem ser o Brizola. Mas quantos podem ser o Brizola?”. É verdade, muitos o querem. Alguns poucos, aparentemente, não. O espólio brizolista representa uma tradição em disputa, com raros candidatos e setores políticos capazes de acolhê-lo com legitimidade. Em todo caso, noves fora o oportunismo, inclusive de alguns candidatos de típico viés chaguista e lacerdista, a recorrência ao nome de Brizola nestas eleições no Rio pode denotar alguma sensibilidade emergente às questões sociais. Igualmente, uma potencial mudança da agenda pública carioca e fluminense pode estar se insinuando, em contraposição à prioridade exclusiva dada, há anos, ao tema do combate ao crime e à violência. A conferir.
Roberto Bitencourt da Silva – doutor em História (UFF), mestre em Ciência Política (UFRJ) e prof. da FAETERJ-Rio/FAETEC e da SME/Rio.
http://jornalggn.com.br/blog/roberto-bitencourt-da-silva/o-retorno-de-brizola-ao-centro-do-debate-politico-no-rio-de-janeiro

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