quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Os três níveis de charlatanismo: BC independente, tripé e LRF


Desde Marx se sabe que a economia política vulgar é o campo próprio onde as classes dominantes impõem ao conjunto da sociedade, na forma de ideologia hegemônica, seus próprios interesses de classe. Temos três campos interligados nos quais a economia política convencional importada dos Estados Unidos e da Europa Ocidental se tornou o mantra central da ideologia da classe dominante no Brasil: o Banco Central independente de Aécio e Armínio Fraga, o tripé macroeconômico de Marina Silva e André Lara Resende e a Lei de Responsabilidade Fiscal de FHC.
Já tratei em artigos anteriores do BC independente e do tripé. Antes de entrar na discussão da Lei de Responsabilidade Fiscal, quero acentuar um ponto mal explicado em relação à proposta do BC independente. Para ser bem sucinto, o que se procura com isso é separar totalmente o BC, emissor de moeda, do Tesouro, emissor de dívida pública. Quando estão articulados – como é o caso do BC norte-americano, o FED -, se o mercado exige taxas de juros muito elevadas o BC emite moeda para ajudar o Tesouro a colocar os títulos da dívida a taxas mais baixas. Do contrário, BC independente torna o Tesouro refém do mercado privado.
Isso, a desarticulação entre BC e Tesouro, não acontece nos EUA, a despeito de que muita gente mal  informada acha que o FED é independente. Vejamos a Europa, onde, sim, o BCE é totalmente independente. Os que têm boa memória devem se lembrar de uma situação na qual, depois de 2010, os países do sul da área do euro tiveram imensas dificuldades em rolar a dívida pública a taxas de juros razoáveis. O mercado impôs a alguns deles, como Espanha, taxas de mais de 7%, que são altíssimas entre países desenvolvidos. O BCE, independente, ficou impassível. Deixou que o mercado chantageasse os países à vontade.
Agora a situação mudou porque o BCE se convenceu de que a política do euro, articulada com a Comissão Europeia e o FMI, é um total fiasco. A Europa do euro está em recessão ou depressão, conforme os últimos números da OCDE. Oito países da área do euro estão colocando títulos de dívida a taxas negativas. Só que essa “ajuda” do BCE na forma de aumento da liquidez e  de redução da taxa de juros básica para nível negativo chegou tarde. A Europa está mergulhada naquilo que Keynes chamou de armadilha da liquidez: não adianta ter crédito farto e barato porque as corporações não querem investir. E  o BCE não permite que os países do euro tomem emprestado para investir, mas apenas para rolar a dívida velha.
É um equívoco atribuir a crise da Europa do euro à baixa produtividade, ao comportamento perdulário de seus habitantes, ao excesso de recurso a crédito privado: a dívida pública em relação ao PIB estava extremamente baixa antes da crise, só tendo crescido porque, na economia financeiramente globalizada, os Estados europeus tiveram que salvar os bancos e os investidores privados das consequências do furor especulativo gerado nos Estados Unidos. O problema da Europa Ocidental é um só: ela tem que aumentar o gasto público deficitário, e isso ela só pode fazer com o BCE articulado aos tesouros nacionais, permitindo que os governos invistam aumentando empregos e mais salários!
Agora vejamos a Lei de Responsabilidade Fiscal. Quando o projeto dela estava para ser votado por proposta de FHC, participei, junto com Elio Gaspari, de um debate na Escola Superior de Guerra no Rio sobre política econômica. Na minha intervenção, declarei que a proposta LRF era um atentado à Federação e uma agressão à democracia, uma espécie de ditadura econômica. Lembro-me de que Gaspari me ponderou, privadamente, que eu estava exagerando. Não estava. A LRF foi feita para liquidar com a capacidade de os Estados gastarem em políticas públicas  a fim de concentrarem seus recursos no pagamento de uma dívida injusta junto ao Governo federal.
Qual é a primeira agressão federativa da Lei? Entre outras coisas, ela limita os gastos com pessoal (incluindo Legislativo e Judiciário) a 60% da receita corrente líquida. Se o Governo já estiver gastando com pessoal 60% da receita, e se, com os outros 40%, construir um hospital, acontecerá a situação esdrúxula pela qual ele não poderá colocar o hospital em funcionamento porque ultrapassará o limite de gastos com pessoal. Não por outro motivo existem dezenas e talvez centenas de hospitais e escolas no país como elefantes brancos, que não podem funcionar. É resultado da inteligentíssima LRF de Fernando Henrique, saudada como um baluarte da eficiência pública pelos tucanos e seus simpatizantes.
Em relação á dívida pública dos Estados, aconteceu o seguinte. Quase todos eles tinham bancos comerciais que giravam essa dívida antiga às taxas do over, ou ainda mais, arbitradas pelo BC. Essa dívida tinha um efeito patrimonial negativo crescente, por causa das taxas de juros, mas não incomodava a gestão orçamentária corrente. Com a privatização dos bancos estaduais, o Governo federal pagou os financiadores privados da dívida dos Estados ao valor corrente inflado, sem desconto, e assumiu o crédito correespondente, impondo aos Estados uma obrigação de pagamento anual que afeta diretamente a capacidade de investimentos e gastos com políticas públicas estaduais. É ou não uma ditadura econômica?
Hoje, o que os Estados transferem ao Governo federal na forma de pagamento da dívida pública resulta numa parte considerável do superávit primário. Só não se pode dizer desse processo que corresponde a pagar a dívida com a fome do povo porque o povo ainda se beneficia da bolsa família para matar sua fome. Mas alguém paga essa conta. E são os milhões de brasileiros que, nos Estados, não tem acesso a  saúde, a educação e segurança, obrigações do setor público em nível estadual, fundamentais para o bem-estar da população e que só funcionam na base de grandes contingentes de funcionários públicos, ou seja, na base de gastos com salários fundamentalmente.
J. Carlos de Assis - Economista, doutor em Engenharia de Produção pela Coppe/UFRJ, professor de Economia Internacional da UEPB, autor de mais de duas dezenas de livros sobre Economia Política brasileira.
http://jornalggn.com.br/noticia/os-tres-niveis-de-charlatanismo-bc-independente-tripe-e-lrf-por-j-carlos-de-assis

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