Classe média, consumismo e bases sociais da crítica à ordem capitalista
por GÖRAN THERBORN
Se quiserem fazer sentido político, as críticas ao capitalismo devem ter
– ou arranjar – uma base social. Nos séculos XIX e XX, a crítica mais
relevante ficou conhecida como “questão operária” – sua base mais
representativa se encontrava justamente na classe operária industrial
em ascensão. Era um tema que interessava não só às organizações
operárias emergentes e seus eventuais simpatizantes, de convicções
liberais, mas também à opinião conservadora; até os fascistas, os
inimigos mais violentos do movimento operário, se organizaram a partir
desse exemplo. Os operários industriais mantiveram sua posição
proeminente até a década de 1970, quando surgiu uma base social para a
luta anticapitalista nos movimentos anticolonialistas, mobilizados pela
libertação nacional das colônias e contra o “desenvolvimento dependente”
imposto pelo imperialismo.
Contudo, nos últimos trinta anos assistimos a uma desindustrialização no
Norte, que deteve e inverteu a marcha do operariado. Já a
industrialização bem-sucedida de países líderes do Sul, durante esse
mesmo período, resultou sobretudo na visão atual de que o
desenvolvimento capitalista também é possível na Ásia, na África e na
América Latina, ao contrário do que diziam as teorias da dependência,
outrora influentes. Assim, será que existe hoje alguma força social que
poderia assumir o papel da classe trabalhadora organizada ou dos
movimentos anticolonialistas do século XX? No momento, não se veem as
camadas de massas anticapitalistas – uma situação nova para o
capitalismo, no contexto dos últimos 150 anos. Contudo, se não
procurarmos movimentos anticapitalistas, mas sim formações que encerrem,
potencialmente, uma posição crítica ao desenvolvimento capitalista
contemporâneo, veremos que há forças sociais importantes se
manifestando. Podemos distinguir quatro tipos diferentes.
A primeira força social
potencialmente crítica consiste em populações pré-capitalistas que
resistem às intrusões das grandes empresas. Os principais atores são os
povos indígenas, que em tempos recentes alcançaram certo poder. Eles são
politicamente significativos na América Andina e na Índia, mas também
se encontram em grande parte do Sul e criaram redes de contatos
internacionais. Eles não são numerosos o bastante, tampouco dispõem de
recursos suficientes para exercer grande influência, a não ser em termos
locais; suas lutas, porém, podem se articular com movimentos críticos
de resistência mais amplos. Hoje representam considerável força na
Bolívia, onde compõem com uma coalizão governamental turbulenta, e na
Índia, onde centralizam uma insurgência em grande escala; em ambos os
casos, os organizadores provêm da tradição do movimento operário – na
Bolívia, mineiros socialistas demitidos, transformados em plantadores de
coca; na Índia central, revolucionários profissionais maoistas. Estes
últimos andaram sofrendo reveses, mas não foram derrotados nem
destruídos. No México, os zapatistas ainda conservam a região de
Lacandona, no estado de Chiapas. Essas mobilizações podem ser
contraditórias: em Bengala Ocidental, de governo comunista, os
camponeses que defendem suas terras contra projetos de desenvolvimento
industrial impediram uma virada para o estilo chinês e empossaram um
regime de extrema direita.
A segunda força crítica, em grande parte extracapitalista, é composta
das centenas de milhões de camponeses sem-terra, trabalhadores informais
e vendedores ambulantes que constituem as vastas populações das favelas
em muitas partes da África, Ásia e América Latina. (Seu equivalente no
Norte talvez seja o crescente número de jovens marginalizados, tanto
nativos como imigrantes, excluídos da esfera do emprego.) Eles
constituem, em potencial, um alentado fator de desestabilização para o
capitalismo. A ira e a violência reprimidas dessas camadas já se
mostraram muitas vezes explosivas, resultando em
pogrons étnicos
ou apenas em vandalismo descontrolado. No entanto, esses “miseráveis da
terra” também já se envolveram em lutas contra despejos e pelo acesso a
água e energia elétrica; tiveram papel significativo nas revoltas
árabes de 2011 e nos protestos contra a austeridade econômica no litoral
norte do Mediterrâneo e do Mar Negro – Grécia, Espanha, Bulgária,
Romênia.
Em que condições essas forças poderiam se articular com alguma
alternativa socioeconômica viável? Qualquer alternativa crítica
precisaria falar diretamente a suas preocupações fundamentais – sua
identidade existencial coletiva e seus meios de subsistência. Para
atingir em profundidade esses estratos populares, seriam necessários
meios de comunicação específicos e líderes carismáticos, com trânsito
por todas as redes. Como a população urbana geralmente não é organizada,
essa força com potencial crítico só entrará em ação se gerada por um
acontecimento de natureza imprevisível.
A dialética cotidiana do trabalho
assalariado capitalista segue atual, embora tenha se reconfigurado
geograficamente. A classe operária industrial que subsiste no Norte
continua fraca demais para representar algum desafio anticapitalista; a
austeridade econômica e as ofensivas capitalistas, contudo, estão
engendrando protestos de horizonte curto – inclusive na França, onde, em
2010, operários organizados ameaçaram interromper o fornecimento de
gasolina, e, em 2012, metalúrgicos ocuparam fábricas. Os novos
trabalhadores industriais na China, Bangladesh, Indonésia e outras
partes do Sul podem ter mais cacife para fazer demandas
anticapitalistas, mas sua posição fica debilitada pela vasta oferta de
mão de obra. Além disso, esses trabalhadores já estão sendo
ultrapassados por padrões de emprego mais fragmentados do setor de
serviços. Repetidas tentativas de fundar partidos operários, da Nigéria à
Indonésia, fracassaram; o único sucesso nos últimos trinta anos foi o
PT no Brasil. Tanto na Coreia do Sul como na África do Sul há movimentos
operários importantes, baseados nos sindicatos, mas lhes faltam
articulações políticas fortes: os sindicatos sul-africanos são ofuscados
pela natureza do governo do ANC (Congresso Nacional Africano), e na
Coreia os sindicatos se veem prejudicados por um partidarismo mesquinho,
que no final de 2012 conseguiu torpedear um projeto, já bem
desenvolvido, de formação de um partido de esquerda unido.
Embora no Sul as lutas de classe tenham obtido aumentos salariais e, em
certa medida, condições de trabalho menos horríveis, parece improvável
que se transformem num desafio mais sistêmico. No leste da Ásia, em
particular, o capitalismo industrial está conseguindo elevar os níveis
de consumo de modo muito mais rápido que as economias europeias, de
desenvolvimento mais lento. É verdade que os atuais governos do Partido
Comunista na China e no Vietnã não descartam uma virada anticapitalista –
que seria viável, caso fosse tentada. Para tanto, seria preciso que o
crescimento apresentasse uma queda e também ocorresse uma mobilização
eficaz dos trabalhadores contra a enorme desigualdade, que ameaça a
“harmonia” ou coesão social do capitalismo comunista. Tal conjectura é
imaginável, mas altamente improvável, pelo menos em médio prazo. Cenário
mais promissor pode ser a articulação das lutas operárias com as lutas
comunitárias por habitação, saúde, educação ou direitos civis.
Uma quarta força social
potencialmente crítica pode estar surgindo no seio da dialética do
capitalismo financeirizado. Camadas da classe média – incluindo, como
fator decisivo, os estudantes – desempenharam papel fundamental nos
movimentos de 2011 na Espanha, Grécia, Oriente Médio árabe, Chile, bem
como nos protestos mais fracos do movimento Occupy nos Estados Unidos e
na Europa – e na onda de manifestações na Turquia e no Brasil, em 2013.
Essas irrupções levaram às ruas tanto jovens da classe média como das
camadas populares contra sistemas capitalistas corruptos, exclusivistas,
causadores de polarização social. Eles não conseguiram desestabilizar o
poderio do capital, ainda que em 2011 dois governos tenham sido
derrubados, Egito e Tunísia. No entanto, talvez venham a se revelar como
ensaios gerais para dramas que estão por vir.
Os discursos sobre a nova classe média se multiplicaram nos últimos dez
anos. Quando se originam na África, Ásia e América Latina, ou discorrem
sobre essas regiões, predomina o tom triunfalista – embora mais
cauteloso acerca da Europa Oriental –, que proclama a iminência de
grandes mercados de consumidores solventes. Corretos ou não, discursos
de classe são sempre significativos socialmente, de modo que
o recrudescimento, a nível global, do discurso da classe média é um
notável sintoma da década de 2010. Normalmente não aponta para nenhuma
dialética social crítica; pelo contrário, em geral aplaude o triunfo do
consumismo. A classe trabalhadora está desaparecendo dos documentos do
Partido Comunista chinês e vietnamita, enquanto na Europa – Alemanha à
frente – o ideal de uma “sociedade empresarial” substituiu a autoimagem
de “sociedade assalariada” de meados do século XX. Comentaristas
políticos costumam ver na classe média um alicerce promissor para
economias “sólidas” e para a democracia liberal, embora economistas
ponderados, particularmente no Brasil, já enfatizassem a fragilidade da
noção de classe média e o risco sempre presente da pobreza a que muita
gente está exposta. Já nos Estados Unidos predomina a preocupação com o
declínio da classe média, em status econômico e peso social. A Europa
Ocidental não seguiu exatamente o mesmo caminho: ali a noção de classe
média sempre foi mais circunscrita do que nas Américas ou na Ásia –
incluindo a China pós-maoista – devido à presença discursiva já bem
estabelecida de uma classe trabalhadora. Fora da Europa, o novo conceito
de classe média hoje engloba a vasta massa da população que fica entre
os muito pobres e os ricos – com frequência a linha de pobreza é
definida como uma receita ou despesa diária de 2, 4 ou 10 dólares,
enquanto o limite superior exclui apenas os 5 ou 10% mais ricos.
Diferentemente da classe operária industrial, o composto heterogêneo
conhecido como “classe média” não tem nenhuma relação específica com a
produção, tampouco abriga tendências próprias de desenvolvimento, salvo o
consumo ilimitado. No entanto, não importa como seja definida, a classe
média – ou partes substanciais dela – já demonstrou ser capaz de atuar
politicamente de modo significativo, e sua importância aumenta com o
declínio ou a desorganização do proletariado industrial. A crescente
classe média do Sul global merece particular atenção, pois pode ser
crucial na definição das opções políticas.
Justamente por sua indeterminação social, a pressão da classe média pode
ser aplicada em direções diferentes, e até opostas. No Chile, a classe
média mobilizada atuou fortemente por trás do golpe de Pinochet,
enquanto na Venezuela, em 2002, ela apoiou uma tentativa fracassada de
desbancar Hugo Chávez; seis anos depois, os abastados “Camisas Amarelas”
de Bangcoc derrubaram o governo da Tailândia. Como mostra a história da
Europa do século XX, a classe média não é uma força intrinsecamente a
favor da democracia. Mas também tem exercido pressão por mudanças
democráticas, tendo atuado em Taiwan e na Coreia do Sul na década de
1980 – ao lado dos operários industriais – e na Europa Oriental em 1989.
Foi uma força fundamental no Cairo e em Túnis em 2011, e defendeu os
protestos populares de rua na Grécia, Espanha, Chile e Brasil em
2011–13. Sua volatilidade política é vividamente ilustrada pelas
guinadas no Egito, desde a aclamação da democracia até a adulação aos
militares e sua crescente repressão, aceitando, efetivamente, a
restauração do
ancien régime sem Mubarak.
Mas as intervenções críticas de forças da classe média também podem se
manifestar nas urnas. Em 2012 a Cidade do México, com uma população
igual à de um país europeu de tamanho médio, elegeu um prefeito de
esquerda pelo quarto mandato consecutivo; o candidato, Miguel Ángel
Mancera, abocanhou quase 64% dos votos, números que sugerem um bloco
popular incontornável. Na Índia, a trajetória do AAP, o Aam Aadmi Party
(Partido do Homem Comum), continua indefinida. O avanço espetacular do
partido e de seu líder, Arvind Kejriwal, deveu-se a uma nova aliança que
uniu manifestantes anticorrupção de classe média a um conjunto de
propostas concretas sobre o acesso a água e outros serviços públicos,
que podiam beneficiar camadas mais amplas. O novo partido venceu em Nova
Delhi, bem como em nove dos doze distritos eleitorais das castas mais
desfavorecidas, assumindo o governo da capital em fins de 2013 – e
deixando o cargo depois de apenas 49 dias, quando seus esforços
legislativos para coibir a corrupção se paralisaram por falta de
aprovação do governo central. Na Indonésia, um candidato reformista,
Jokovi, ganhou o governo de Jacarta em 2012, vencendo (com uma
plataforma de ampliação dos serviços de educação e saúde e promoção do
“urbanismo empresarial”) as forças locais do
establishment,
além de uma odiosa campanha sectário-religiosa (seu companheiro de chapa
era um chinês cristão). Também aqui a força e a eficácia das alianças
de classe – sua capacidade de oferecer melhorias tangíveis às massas
populares – ainda estão por surgir.
O capitalismo – e sobretudo o
capitalismo industrial – tem sido alvo de críticas culturais desde que o
poeta William Blake denunciou seus “tenebrosos moinhos satânicos”.
Durante muito tempo o sistema simplesmente passava direto por essas
lamentações, mas o ano de 1968 pôs fim ao sossego. Os movimentos então
simbolizados não fizeram muito progresso contra o capitalismo em si, mas
exerceram impacto sobre as relações sociais: conseguiram erodir o
patriarcado e a misoginia, deslegitimar o racismo institucional, reduzir
a deferência e a hierarquia – em suma, promoveram a igualdade
existencial, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos. Contudo, boa
parte dessas transformações culturais vem sendo absorvida pelo
capitalismo avançado, com a informalidade das indústrias de alta
tecnologia, a onda de mulheres em altos cargos executivos, a
generalização dos direitos dos gays e do casamento homossexual, a figura
social do
bubo, o burguês boêmio com dinheiro e valores de esquerda, e assim por diante.
Os movimentos baseados numa crítica cultural da sociedade capitalista
sempre clamaram pela limitação e a regulamentação do desenvolvimento
capitalista; ou então apresentaram formas alternativas de vida. As
próximas décadas podem vir a conhecer pelo menos quatro tipos de
movimentos crítico-culturais significativos, tanto pela abordagem da
“limitação” como pela proposta de“alternativas”. Historicamente, o
argumento mais importante a favor da limitação apontou a ameaça que o
capitalismo desenfreado representa para a coesão social. A questão
ambiental é mais recente, com sua discussão sobre o risco que o
ecossistema corre pelas consequências não intencionais da
industrialização, cada vez mais fora de controle.
Entre as “alternativas”, a relevância dosocialismo anda suspensa, porém
há outras visões claramente discerníveis, mais parecidas com o comunismo
no sentido marxista original do que com o socialismo industrial do
século XX. Hoje é possível identificar dois desses movimentos, pelo
menos em embrião, ambos oferecendo a promessa de uma qualidade de vida
superior à do capitalismo. A primeira, mais bem articulada na Alemanha,
parte da experiência dos países desenvolvidos e tem uma ênfase
“pós-crescimento”. A segunda apresenta uma alternativa geossocial,
derivando sua força do Sul não capitalista.
Em primeiro lugar, a coesão social é
muito menos vital para as elites de hoje do que era para as elites de
séculos anteriores. Os exércitos com alistamento obrigatório foram em
grande parte substituídos por forças mercenárias; os meios de
comunicação têm ajudado a tornar as eleições internas “administráveis”; o
consenso econômico predominante sustenta que a confiança dos
investidores internacionais tem mais influência sobre o crescimento
econômico do que a coesão do desenvolvimento. Para as elites do Norte, a
coesão implica uma pressão sobre os imigrantes para se assimilarem
melhor, em nome da “integração”. É verdade que existe uma preocupação
oficial da União Europeia com a coesão social, mas na prática isso se
manifesta sobretudo em termos geográficos, com o financiamento de
programas de desenvolvimento nas regiões mais pobres. Durante a crise
atual, que impôs uma dura austeridade econômica sobre as populações do
sul da Europa, vê-se pouco interesse oficial pelo aumento da exclusão
social. A coesão nacional já não é mais considerada a chave para o poder
imperial – como foi nos séculos XIX e XX, quando a “revolução vinda de
cima” da dinastia Meiji no Japão, e as tentativas menos bem-sucedidas de
outros regimes, desde a China da dinastia Qing até o Império Otomano, a
via como a base da moderna força geopolítica. Após a Segunda Guerra
Mundial, o desenvolvimento capitalista nacional coeso era o objetivo dos
governantes eleitos do Japão e também dos militares de Taiwan e da
Coreia do Sul, o que reverteu em sociedades industriais cujos baixos
níveis de desigualdade econômica só ficavam a dever, no mundo
capitalista, aos Estados europeus do bem-estar social. Para os
governantes da República Popular da China, a coesão social continua a
ser um critério decisivo do desempenho político. A extraordinária
desigualdade produzida pela China nos últimos 35 anos – tão diferente da
trajetória igualitária, de crescimento rápido do Japão, Coreia do Sul e
Taiwan – torna insustentável a autoimagem da China como uma “sociedade
harmoniosa”. Isso também pode ocorrer em outras partes do Sul.
No entanto, a exclusão social, a desigualdade e o deslocamento continuam
a ser uma possível base para as críticas vindas de baixo, como já
mostraram os recorrentes movimentos de protesto dos últimos anos. A
lógica de
O Capital não dá conta das atuais sociedades
capitalistas, que também incluem áreas não capitalistas, com seus
espaços e serviços públicos. No momento, o capitalismo está decidido a
invadir todas as esferas da vida social – restringindo, ainda que não
abolindo necessariamente (por enquanto), tudo que é público. Essa
disseminação cria correntes de resistência, de defesa do que é público
ou não comoditizado. Recentemente tem havido uma proliferação global
desse tipo de movimento de protesto: contra a privatização do ensino
superior no Chile e em outras partes da América Latina; contra a
comercialização dos espaços públicos em Istambul; e, na Suécia, um
ressentimento, mais abafado porém amplo, contra a desestatização de
escolas e serviços sociais.
A mercantilização das relações
sociais e o enfraquecimento, promovido pelo neoliberalismo, de qualquer
noção de interesse público ou senso de responsabilidade social têm
proporcionado grandes oportunidades para a corrupção. Mesmo em países
como a Suécia, antes regidos por uma ética de serviço público muito
forte, embora agora vilipendiada, os negócios obscuros entre a esfera
pública e a privada se tornaram endêmicos. No Sul, onde a corrupção
maciça é sistêmica na maioria dos países – e também na China e no Vietnã
–, as campanhas em prol das “mãos limpas” são comuns, porém têm pouco
impacto. Vez por outra são efetivas, como aconteceu nas manifestações de
Nova Delhi. Iniciados em 2011 por Anna Hazare após a roubalheira
descarada propiciada pelos Jogos da Commonwealth de 2010, os protestos
acabaram se transformando no Aam Aadmi Party. Os movimentos contra a
corrupção e a exploração comercial de espaços e serviços públicos tendem
a crescer, já que as provocações vão se multiplicar, e também porque
hoje os cidadãos são menos deferentes à autoridade, mais bem informados e
mais fáceis de mobilizar por meio das mídias sociais. Um caso exemplar
foi o da Turquia em 2013. Contudo, se esses protestos não integrarem
configurações sociopolíticas mais amplas, eles vão permanecer –
juntamente com as manifestações contra o endividamento e os despejos –
dentro dos limites do sistema capitalista.
Na década de 1980, ambientalistas críticos ao capitalismo se organizaram
num movimento social que ainda tem considerável expressão. Pode-se
dizer que os desafios ecológicos apresentados por alterações climáticas,
poluição urbana, pilhagem de oceanos e esgotamento de reservas hídricas
reiniciaram a dialética entre o caráter social das forças de produção e
a natureza das relações de propriedade existentes – uma dialética que a
desindustrialização e o triunfo do capitalismo financeiro no Norte
haviam suspendido. O impacto dessa crítica provavelmente vai depender de
sua capacidade de desenvolver uma responsabilidade regulatória coletiva
e ao mesmo tempo não exigir sacrifícios como o não crescimento. Uma
questão crucial é a desastrosa poluição das cidades chinesas –
inclusive, espetacularmente, Pequim – e de outros centros urbanos da
Ásia. Na China, a poluição também está destruindo grandes áreas de solo
arável. Ao exigir a regulamentação pública, o ambientalismo poderia se
articular com as críticas ao capitalismo financeiro desenfreado. As
escassas alianças desse tipo ressaltam a fraqueza da esquerda no
Atlântico Norte – para não mencionar a obsessão chinesa, ainda
praticamente incontestada, de recuperar o atraso econômico.
Uma crítica ao consumismo poderia assumir uma nova forma geracional.
“1968” foi um movimento jovem – “Não confie em ninguém com mais de 30
anos” –, ao passo que nos protestos de 2011 no Mediterrâneo e no Chile,
ou no Brasil em junho de 2013, muitos manifestantes estavam acompanhados
dos pais. A crise devastadora do neoliberalismo na Argentina no
alvorecer do século xxi acarretou vigorosos protestos de rua de
aposentados, em defesa de suas pensões. Um movimento crítico poderia
emergir das populações idosas da Europa e do Japão, em especial entre os
mais velhos da geração de 1968. Poderiam ser protestos por qualidade de
vida – serenidade, segurança, estética – em detrimento da expansão
econômica e acumulação de capital. É pouco provável que ganhem muito
impulso fora da Europa ou Japão, exceto, talvez, na região do rio da
Prata e entre as minorias das “primeiras nações” indígenas. O consumismo
parece persistir como a principal dinâmica cultural.
Articulada pelo movimento do Fórum
Social Mundial, a crítica feita pelo Sul global ao capitalismo do
Atlântico Norte foi levada mais adiante pelo estudioso português
Boaventura de Sousa Santos em sua obra
Epistemologias do Sul.
Sua análise provavelmente exercerá uma influência cada vez maior devido
às mudanças geopolíticas do poder planetário; mas também é provável que
encontre resistência arraigada, e não apenas das elites do Norte. O
consumismo está seduzindo novas e vastas camadas do Sul, que acorrem, em
adoração, aos shopping centers que brotam como cogumelos. Boaventura e
outros estudiosos abrem um espaçocrítico que deveria abalar a arrogância
cultural do Norte. O problema deles é que se dirigem sobretudo àqueles
que têm mais a perder com a sua mensagem: os modernos do Norte. No
entanto, o espelho do Sul que o movimento do Fórum Social Mundial
mostrou ao capitalismo do Atlântico provavelmente será incorporado ao
pensamento crítico do Norte – tal como deveria ser.
Em resumo: as populações pré-capitalistas, lutando para conservar seu
território e seus meios de subsistência; as massas “excedentes”,
excluídas do emprego formal nos circuitos da produção capitalista; os
trabalhadores fabris explorados em todas as zonas ex-industriais
decadentes e outras zonas empobrecidas; novas e antigas classes médias,
cada vez mais oneradas com o pagamento de dívidas às corporações
financeiras – estas constituem as possíveis bases sociais para as
críticas contemporâneas à ordem capitalista dominante. O avanço exigirá,
quase com certeza, alianças entre essas bases e, portanto, a
articulação de seus interesses. Para qual caminho, ou quais caminhos,
vai pender a nova classe média na África, Ásia e América Latina? Esse
será um fator determinante e vital.
Se a classe média em ascensão representou a vanguarda do desenvolvimento
capitalista na Euro-América do século XIX, hoje sua função não é mais
essa. O capital financeiro e as empresas multinacionais há muito tempo
usurparam esse papel. Em vez disso, a classe média precisa tomar partido
em sociedades fortemente polarizadas, seja ao lado dos oligarcas contra
os pobres, seja com o povo contra os oligarcas. Qualquer crítica viável
ao capitalismo do século xxi terá que recrutar grande parte da classe
média, abordando algumas de suas preocupações e procurando articulá-las
numa direção crítica, igualitária. Isso implicaria respeitar os valores
clássicos da classe média de trabalho duro, autossuficiência,
racionalidade e justiça. Será preciso articular a compatibilidade desses
interesses com as demandas populares de inclusão e igualdade, e a sua
incompatibilidade com as práticas insensatas das elites financeiras, os
capitalistas de compadrio e os regimes corruptos ou autoritários. A
classe média, em especial os assalariados e profissionais liberais,
também está potencialmente aberta a críticas culturais feitas ao
capitalismo, em especial quanto a questões ambientais e de qualidade de
vida. Contudo, dada a inconstância política da classe média, qualquer
virada progressista vai exigir a mobilização de considerável força
popular entre as duas primeiras correntes sociais já mencionadas: as
populações pré-capitalistas invadidas ou marginalizadas, e os
trabalhadores que procuram se defender na esfera da produção.
http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-91/tribuna-livre-da-luta-de-classes/novas-massas