Publicano no blog do jornalista
Flávio Gomes.
No dia da final da Copa das Confederações, há pouco mais de um ano,
Carlos Alberto Parreira fez um dicurso motivacional antes do jogo e usou
uma frase de efeito para os jogadores que dali a instantes enfrentariam
a Espanha. “Existe uma hierarquia no futebol, e eles foram campeões do
mundo sem enfrentar a seleção brasileira!”, bradou para a turma do
#ÉTóisss.
Ui, quanta valentia.
E aí a seleção foi para cima da Espanha, um time já envelhecido e que
tinha gasto muitas de suas horas em solos brasileiros tomando
caipirinha e comendo putas durante um torneio que não valia nada —
exceto talvez ajudar os branquelos e branquelas de camiseta de 200 paus
da Nike, unhas muito bem pintadas e cabelos loiros, a não se
atrapalharem na hora do sonho intenso e raio vívido, muitas vezes
trocados pelo amor eterno seja símbolo, naquela zona de hino que fala de
coisas incompreensíveis como impávido colosso, florão (flor grande?) da
América, terra garrida, clava forte, verde-louro (é aquele da Ana Maria
Braga?) e lábaro que ostentas.
O time ganhou, os branquelos aprenderam a cantar o hino,
aparentemente, os jogadores passaram a ensaiar os mesmos versos para
cantá-los com os dentes cerrados, e vamos para a Copa do Mundo. Antes,
vamos quebrar também umas vitrines, culpar a Dilma, criar umas hashtags,
#VemPraRua, #NãoVaiTerCopa, reclamar das filas nos aeroportos, bater
umas selfies e escrever #ImaginaNaCopa no Facebook quando atrasar um voo
da TAM para Orlando.
Acelera o filme e chegamos ao final de maio, maio agora, um mês e
meio atrás. Dia de apresentação da seleção em Teresópolis, entrevistas
coletivas, olha só como tudo ficou bonito, olha só a estrutura, os
quartos, as bicicletas ergométricas, os campos de futebol, a sala de
imprensa, as banheiras de hidromassagem, as TVs de LCD, o WiFi
funcionando. Felipão: “Nós vamos ganhar a Copa”. Parreira: “Chegou o
campeão. Estamos com uma mão na taça. A CBF é o Brasil que deu certo”.
Acelera um pouco mais o filme, chegamos ao dia 8 de julho, vulgo
ontem, Mineirão. Como tinham feito nas cinco partidas anteriores, os
jogadores entram em campo um com a mão no ombro do outro, feito minha
classe na Escola Municipal Dona Chiquinha Rodrigues, em 1971, no Campo
Belo, quando eu estava no primeiro ano primário. Cantávamos o hino todos
os dias, mas nunca precisei colocar a mão no ombro de ninguém porque
era sempre o primeiro da fila, por ordem de tamanho.
Tal rotina cumprida por todo um período escolar me permite não
embaralhar versos até hoje, garanto que nunca enfiei a paz no futuro e a
glória no passado depois do formoso céu, risonho e límpido, mas ao
mesmo tempo me privou de decorar de maneira adequada o hino da
independência, porque esse a gente zoava mesmo, eram os cinco filhos do
japonês, cada um deles contemplado com uma desgraça diferente, um era
vagabundo, outro era punheteiro, e o coitado do quinto tinha nascido sem
pinto. Como esse a gente cantava só uma vez por ano, não tinha problema
algum abrir mão daquelas baboseiras de garbo juvenil, grilhões da brava
gente brasileira, e perfídia astuto ardil é a puta que pariu. Na mesma
vida ter de decorar lábaro que ostentas estrelado e ímpias falanges é um
pouco demais, não força a amizade.
Pois que os meninos da CBF, o Brasil que deu certo, adentraram o
gramado em formação de grupo escolar, perfilaram-se, urraram o hino
nacional segurando uma camisa do Neymar Jr. como se fosse a farda de um
soldado abatido em Omaha Beach, enquanto o próprio assistia ao jogo em
sua casa no Jardim Acapulco pingando fotos no Instagram, #ÉTóiss.
Parêntese. No dia anterior, três dos meninos da CBF também colocaram
fotos no Instagram com a hashtag #jogapraele, respondidas, as fotos, com
a hashtag #jogapramim pelo soldado abatido na guerra, Neymar Jr. Todos
eles, Neymar Jr., Marcelo, Willian e David Luiz, receberam quantia não
divulgada da Sadia, patrocinadora da seleção, para a, como se diz hoje,
ação. Foram alguns milhões de curtir & compartilhar que deixaram os
marqueteiros da empresa muito satisfeitos e ansiosos para saber quantos
frangos seriam vendidos no dia seguinte, enquanto os rapazes rangiam
seus dentes gritando pátria amada, Brasil.
Então começou o jogo e foi aquela coisa linda.
Então acabou o jogo e estavam todos atônitos, pasmos, chocados,
passados, desacorçoados, e os câmeras da FIFA se divertiram fazendo
closes de garotinhos com fulecos na cabeça derramando lágrimas no peito
de papai com um TAG-Heuer no pulso. Oh, coitados. E os óculos Prada
embaçados com as lentes melecadas de rímel? Pobres almas.
Acelera a fita e chegamos à coletiva de hoje, sete figuras em
Teresópolis numa mesa, uns dois ou três eu não tenho a menor ideia de
quem fossem, ou sejam, porque continuam sendo alguém. Reconheci
Parreira, Felipão, Murtosa, o médico, acho que o preparador físico.
Tinha um de agasalho, quase um boneco de cera, no centro da mesa tal
qual um Jesus Cristo na última ceia, que entrou mudo e saiu calado, e
portanto não devia ter grande importância.
E o que se viu foi uma demonstração de arrogância, soberba,
prepotência, falta de humildade, um festival de sandices, um arroto
coletivo coroado com a carta da dona Lúcia.
Dona Lúcia é a grande personagem desta Copa do Mundo, e surgiu,
infelizmente, aos 44 do segundo tempo. Teria sido muito divertido saber o
que ela pensava desde o dia 12 de junho, na abertura em Itaquera. Foi
sua carta, na verdade um e-mail, afinal estamos em 2014 e nem dona Lúcia
escreve mais a mão, fecha um envelope, lambe um selo e vai ao correio,
que absolveu toda a CBF, todos os membros da comissão técnica, todos os
jogadores, todos os nossos pecados. Foi a carta de dona Lúcia que
permitiu a Parreira, a quem encarregaram de dar à luz a missiva,
concluir que está tudo perfeito, que ele é perfeito, Felipão também, os
demais da mesa, o futebol brasileiro, a CBF. Afinal, como ele disse há
um ano, há uma hierarquia no futebol. E estamos no topo dessa cadeia. É
nóis, mano.
#ÉTóiss.
Bem, vamos a alguns fatos. Foi o pior resultado de uma seleção
brasileira desde o dia em que o Homem de Neandertal deu um bico na
cabeça do cara da tribo vizinha, arrancando-a e fazendo a dita cuja voar
entre duas árvores. Um 7 x 1 numa semifinal de Copa gerou folhas e
folhas de estatísticas, todas elas iniciadas com “nunca”. Nunca isso,
nunca aquilo.
Não me senti envergonhado de nada nem durante, nem depois do jogo.
Quero que a seleção se foda, não dependo dela para viver, torço para a
Portuguesa, e para mim, depois de 1982, tanto faz se a CBF tem um escudo
com quatro, cinco ou dez estrelas. Para mim, a equação é simples: quem
se dá bem quando a seleção ganha? A CBF e os caras que tomam conta dela,
mais um pessoal no entorno, mídia incluída, que se apropria das
vitórias e se refere ao time na primeira pessoa do plural. Acho todos
desprezíveis, então não me importo se ganha, perde, empata, se goleia,
se é goleada. Olho tudo, assim, com o distanciamento e isenção
necessários e torcendo apenas por uma coisa: que um dia tudo mude.
Mude, porque gosto de futebol. Porque olho para a Alemanha e fico
feliz da vida de ver que um projeto feito há não muito tempo dá tão
certo e é baseado apenas em honestidade de princípios, trabalho,
dedicação, metas, filosofia.
Filosofia. Essa é a palavra. Em 2000, a Alemanha fez uma Eurocopa de
merda e não passou da primeira fase. Fritz, Hans, Müller, Klaus e
Manfred se reuniram e decidiram salvar o futebol do país. Para isso, era
preciso mudar tudo. Clubes, ligas, divisões de base, campeonatos,
estádios, distribuição de dinheiro, formação de técnicos, médicos,
preparadores físicos, finanças, tudo. O resultado, óbvio e inevitável,
seria uma seleção forte, mais dia, menos dia.
Os resultados estão aí e não vou me alongar neles. São quatro
semifinais seguidas de Copas, a Bundesliga tem uma média de público
assombrosa, os clubes são saudáveis, vivem decidindo os campeonatos
europeus, é um sucesso. A coisa é tão bem feita e bem pensada, que os
clubes são obrigados até a estabelecer uma filosofia de jogo e aplicá-la
em todas as suas divisões. A distribuição de grana não é a obscenidade
determinada pela TV Globo aqui, por exemplo. Atende a critérios
técnicos, não a planilhas do Ibope. Em resumo, em 14 anos, o que é quase
nada, os caras reconstruíram seu futebol. E o futebol na Alemanha, com o
perdão da expressão, mas não encontro outra melhor, é do grande
caralho.
Enquanto isso, por aqui, ele é infestado por figuras sombrias e
deprimentes, gente ligada ao regime militar, múmias carcomidas,
antiquadas, obsoletas, conservadoras (o treinador é admirador confesso
de Pinochet), adeptas de rituais de guerra, de conceitos bélicos, de
atitudes marciais, gente que não sorri, que dá asco, que,
definitivamente, não tem nada a ver com o futebol que o Brasil um dia
mostrou ao mundo e fez com que o mundo se encantasse por ele. E até hoje
isso acontece. Esse encanto, que é claramente uma herança do passado,
segue tão vivo que a Alemanha, hoje, pediu desculpas ao Brasil.
Não precisava. Essa gente não merece tamanha consideração. A seleção
brasileira não representa nada, a não ser os interesses (pessoais,
muitas vezes; não estou falando só de dinheiro) de meia-dúzia que há
décadas se locupleta com ela. Como explicar a escolha do técnico, por
exemplo? Felipão, nos últimos dez anos, perdeu uma Euro com Portugal
para a Grécia em casa, foi demitido do Chelsea, mandado embora de um
time uzbeque e rebaixou o Palmeiras para a Série B. Prêmio: virou
técnico da seleção brasileira na Copa do Mundo disputada no Brasil.
Hoje, na tal coletiva, brandiu folhas de papel com seu retrospecto e
carga horária de treinos para provar que fez tudo direitinho. Parreira,
figura hedionda e sorumbática, interrompia o abatido treinador a cada
resposta para rebater toda e qualquer crítica e reforçar sua
autoproclamada competência, seu currículo inatacável, seu passado
vitorioso de líder de polichinelo, flexão de braço, distribuição de
coletes e posicionamento de cones.
O futebol brasileiro recebeu alguns recados nos últimos anos. Quando o
Santos tomou duas goleadas do Barcelona, por exemplo. Ou quando o Inter
foi eliminado do Mundial de Clubes por um time africano. E, depois, o
Atlético Mineiro — por uma equipe marroquina. As finais da Libertadores
serão retomadas agora, depois da Copa. Sabe quantos clubes brasileiros
estão entre os semifinalistas? Nenhum. A média de público da Série A é
não menos que ridícula. O campeonato do ano passado acabou num tribunal
fajuto porque a CBF não consegue publicar uma suspensão de jogador num
site. O clube que reclamou dessa iniquidade foi chantageado e ameaçado
de desfiliação e acabou rebaixado, sem ter direito sequer de buscar seus
direitos.
Esse futebol, ontem, levou sete gols da Alemanha. Quatro deles em
seis minutos. E a turma responsável por esse vexame hilariante, hoje,
não desceu do salto. Não assumiu nenhum erro. Não admitiu nenhuma falha.
Não reconheceu suas deficiências. Tratou o resultado como um acidente.
Foi quando surgiu a carta de dona Lúcia. Que termina sua peroração
dizendo que não entende nada de futebol. Talvez por isso os sete da
mesa, mais os que nela não estavam, tenham tentado convencer dona Lúcia
de que foi um acidente.
Mas não foi não, dona Lúcia.
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