por Luiz Carlos Azenha
Nas entrevistas
que deu até agora à revista espanhola Brazil com Z, à Folha e ao Diário
do Centro do Mundo, a jornalista Mirian Dutra sustentou:
1. que
deixou o Brasil de livre e espontânea vontade, depois de, segunda ela,
ouvir do então senador Fernando Henrique Cardoso que poderia ter o filho
de qualquer um, menos dele;
2. que quando tentou voltar ao
Brasil, antes da reeleição de FHC ao Planalto (que aconteceu em 1998)
foi aconselhada por Antonio Carlos Magalhães num almoço a não fazê-lo.
Presente ao encontro, um funcionário da Globo — que Mirian não
identificou;
3. que o favor que a emissora fez ao mantê-la
assalariada no Exterior (com carga mínima de trabalho, muito menor que a
de qualquer outro correspondente) foi recompensado por FHC com ajuda à
Globo através do BNDES;
4. que FHC, depois da morte da esposa
Ruth, fez chegar a ela a informação de que assumiria o filho, mas nunca o
fez legalmente — por exemplo, alterando a certidão de nascimento.
Quanto a este último ponto, o jornal O Dia deste sábado confirma.
Quanto
aos empréstimos do BNDES, só uma investigação da Polícia Federal — como
a pedida pelo deputado petista Paulo Pimenta — terá o poder de
requisitar e analisar todos os documentos oficiais, estabelecendo uma
cronologia com os fatos narrados por Mirian.
Porém, a análise de uma das operações revela indícios surpreendentes, que merecem uma avaliação mais aprofundada.
A
operação foi objeto do processo 005.877/2002-9, que resultou no Acórdão
183/2004 do Tribunal de Contas da União, publicado no Diário Oficial de
15 de março de 2004. Mas a operação em si aconteceu no terceiro
trimestre de 2002.
Era o final do segundo mandato de Fernando
Henrique Cardoso. Crise econômica grave. Real desvalorizado em relação
ao dólar. A Net Serviços de Comunicações S/A, ex Globo Cabo, está em
situação penosa.
O Banco Nacional do Desenvolvimento Social,
através do BNDESPar, prepara uma operação de capitalização para salvar a
empresa. O TCU acompanha.
Havia preocupação com três aspectos da
situação da Net, que poderiam implicar em perdas para o BNDES: queda no
número de assinantes, acúmulo de dívidas de curto prazo e dívidas em
moedas fortes, principalmente em dólar.
O ministro-relator
Lincoln Magalhães da Rocha, depois de estudo feito por analista do TCU,
sugere: “8.1 — Recomendar ao Diretor-Presidente do BNDES (Nota do
Viomundo: à época, Eleazar de Carvalho Filho) a adoção de providências
no sentido de promover reuniões específicas com os demais membros das
Diretorias do BNDES e da BNDESPAR para reavaliar (grifo nosso), em
conjunto, os aspectos econômicos-financeiros do plano de capitalização
da Net Serviços de Comunicação S/A (ex-Globo Cabo), manifestando-se,
conclusivamente, sobre a oportunidade da assistência pelo Banco, nos
termos previstos no Protocolo de Recapitalização e seus aditivos,
levando-se em consideração a existência de riscos de insucesso da
operação na hipótese de não vir a ocorrer”.
Ou seja, ele pregava uma detalhada revisão ANTES do fechamento do negócio.
Atendido
o pedido do ministro, preocupado com possível perda de dinheiro
público, o negócio poderia atrasar — ou nem sair. O governo FHC estava
em contagem regressiva.
Logo depois da apresentação do relatório, o ministro Marcos Vinicios Vilaça pediu vista dos autos.
“Em
seguida, a Globo Comunicações e Participações S/A (Globopar),
controladora indireta da Net Serviços e Comunicações S/A, na condição de
interessada, e por meio de procurador constituído nos autos, propôs ao
Ministro Revisor que desconsiderasse as recomendações constantes do item
8.1 da Proposta de Decisão, por entender que as cautelas nela referidas
já tinham sido observadas no processo de capitalização”, diz o
documento.
Tudo isso, obviamente, prolongou o processo. Meses se passaram.
O
Ministro Revisor pediu manifestação do Ministério Público. O procurador
Lucas Rocha Furtado disse que não via ilegalidade na ajuda da BNDESPAR à
Net, mas deu uma notícia que deve ter surpreendido os ministros do TCU:
a operação já tinha sido realizada!
Portanto, as recomendações
do ministro relator, aquelas do item 8.1, contra as quais a Globopar
havia recorrido, não poderiam mais ser implementadas!
“Há
notícias de que a operação de recapitalização da empresa Net S.A. já
estaria irreversivelmente em curso… Caso essa notícia seja oficialmente
confirmada, prejudicadas estarão, no nosso entender, as propostas de
encaminhamento do Ministro-Relator que visavam a balizar o processo
decisório da diretoria da BNDESPAR”, escreveu o procurador.
Em outras palavras, a cautela recomendada pelo relator Lincoln Magalhães da Rocha foi atropelada pelos fatos.
Restou a ele analisar o desempenho da Net depois de concretizada a recapitalização com dinheiro do BNDES.
E,
surpresa!, ele encontrou intactos todos os problemas que o levaram a
fazer aquela recomendação 8.1 — contra a qual a Globopar se insurgiu:
queda do número de assinantes, preocupantes dívidas de curto prazo e
dívidas em moeda estrangeira, especialmente em dólar.
“A
participação do BNDES e de outros credores no processo de capitalização
da Companhia não conseguiu resolver os problemas enfrentados pela
beneficiária”, afirmou.
Acrescentou: “Por meio da operação de
capitalização ocorrida no terceiro trimestre de 2002 (Nota do Viomundo:
portanto, FHC ainda estava no poder), o BNDES converteu R$ 139,9 milhões
de debêntures de sua titularidade em ações da Companhia e ainda
subscreveu outros R$ 156 milhões em novas ações a R$ 0,70 cada.
Ressalte-se que esse preço foi atribuído após o grupamento de cada lote
de 10 ações em 1 ação, conforme assembléia geral extraordinária
realizada em 2 de maio de 2002. Se não fosse o grupamento, o preço da
ação adquirida/convertida seria obrigatoriamente de R$ 0,07.”
O
ministro Lincoln afirma que àquela altura o investimento na Net não
tinha sido um bom negócio para o BNDES. Informa que, em 1999, o banco
público já havia subscrito 4,8% do capital da Net, além de comprar
outros 4,1% no mercado secundário, a um preço não revelado.
Ele
escreveu que o plano inicial de recapitalização não foi cumprido: “No
plano de capitalização inicial no valor de R$ 1 bilhão, havia previsão
de que R$ 447 milhões seriam integralizados em dinheiro novo, dos quais
R$ 39 milhões pelo BNDES, acrescidos de uma garantia firme de subscrição
adicional de até R$ 117 milhões, caso houvesse sobras de ações não
adquiridas pelo público. O restante seria desembolsado pelos demais
acionistas e/ou credores. Entretanto, por meio dos aditivos número 1 e
2, essas regras mudaram e o desembolso do BNDES tornou-se exigível pelo
valor de R$ 156 milhões, independentemente de sobras, e a participação
dos demais reduziu-se a aproximadamente R$ 100 milhões”.
Porém,
os demais acionistas não entraram nem com R$ 400 milhões em dinheiro
novo, nem com R$ 100 milhões: “Observa-se nesse demonstrativo que a
parcela integralizada em dinheiro novo foi de apenas R$ 192 milhões, dos
quais R$ 156 milhões pela BNDESPAR e somente R$ 26 milhões aportados
pelos demais acionistas e/ou terceiros”.
Ou seja, mais de 80% do dinheiro novo veio do banco público!
O
ministro concluiu que o BNDES fez mais do que havia prometido no
negócio. A Net, não. A empresa da família Marinho teria “induzido este
tribunal a posicionar-se de forma passiva” diante de um negócio
arriscado.
Estávamos, então, em março de 2004.
Ao
ministro Lincoln restou recomendar, no acórdão aprovado pelo TCU: que o
BNDES, “na condição de segundo maior acionista e detentor de 22,1% das
ações da Net”, atue junto à empresa e demais acionistas pelo
reequacionamento das dívidas e substituição das operações em dólar
norte-americanos por reais; que a diretoria do BNDES, “doravante,
observe com rigor as normas operacionais da instituição financeira, em
especial as cláusulas e condições dos protocolos que firmar, antes de
efetuar liberação de quaisquer recursos financeiros ou renegociação de
créditos/direitos, com vistas a não por em risco os capitais públicos”.
Mas,
independentemente das recomendações do Tribunal de Contas da União, a
Net já tinha sido salva com dinheiro público pelo BNDES e decolaria ao
longo do governo Lula, com o crescimento do mercado de TV a cabo
impulsionado pelo boom da economia.