sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Como guardião da Constituição, o Supremo morreu




Ontem, como guardião da Constituição, o Supremo Tribunal Federal morreu. Enterrou junto com ele a presunção de inocência, uma garantia fundamental expressa literalmente, ao eliminá-la para réus condenados que recorrem às instâncias em Brasília. Em seu lugar nasceu outra coisa, outro Tribunal que merece um apelido de guardião de algo que viola.

Esse nascimento, que completou seu ciclo na sessão histórica desta última quarta, já vem se desenhando há algum tempo. O Tribunal-que-ainda-não-tem-nome-mas-certamente-não-é-guardião-da-Constituição deu suas caras no julgamento do mensalão, quando condenou dezenas de pessoas se baseando na teoria do domínio do fato, cujo seu idealizador, o alemão Claus Roxin, criticou ao dizer que a Corte aplicou-a de forma equivocada. Entretanto, como era "o maior julgamento da história", algumas pessoas deram de ombros, afinal aquilo só podia ser era um "ponto fora da curva". Os mensaleiros tinham que ser condenados. Ponto final.

Ocorre que, como bem lembrou o querido Juiz de Direito Marcelo Semer, "o mensalão não foi um "ponto fora da curva" no STF; foi o começo da curva..."; ao mostrar-se duro para a opinião pública e publicada, aqueles onze senhores e senhoras gostaram do sabor do autoritarismo e desceram ladeira abaixo com entendimentos cada vez mais duros e inconstitucionais, como quando, por exemplo, autorizou que a polícia faça buscas em residências pobres, sempre pobres, sem mandado judicial. Ou ainda quando, volta e meia, boicota o recebimento e julgamento de Habeas Corpus.

Esse gostinho de violar direitos constitucionais é saboreado lentamente, pelas bordas. Não se faz isso sem que o ministro, ou a ministra, leia um extenso voto, muitas vezes por horas. Para violar direitos, mostra-se o saber, a erudição. A vaidade tomou conta dos votos e das mentes dos ministros, que se acham no direito de rabiscar da Constituição um fundamento da república, a presunção de inocência. O diabo pode até vestir prada, mas veste toga também. 

A vaidade (ah! esse pecado delicioso) levam os ministros a, sem vergonha alguma, dizer por qual razão acordaram com vontade de riscar um artigo da Constituição. Enchem o peito, empostam a voz e em bom alemão fundamentam no "clamor popular", na "resposta à sociedade" e "fim da impunidade". Parecem políticos em busca de votos, filhos em busca da aprovação da pátria amada, ó mãe gentil. 

A corte já decidiu contra o texto da Constituição outras vezes. A mais clássica foi no casamento homoafetivo, quando interpretou que a expressão "homem e mulher" no texto era exemplificativa e não taxativa. A diferença entre aquela vez e essa é que a primeira interpretação foi para conceder direitos, beneficiar o oprimido. A lógica de ontem foi oposta: a decisão foi para retirar direitos, prejudicar mais quem já é prejudicado.

Para a população é terrível que um tribunal se comporte dessa forma. Quem defende a Constituição deveria estar justamente na trincheira, resistindo ao charme do autoritarismo. Na prática, essa decisão do Supremo manda para a cadeia pessoas que até então responderiam em liberdade com grandes chances de reverter o processo em Brasília. Segundo dados trazidos pelo ministro Celso de Mello, nada menos que 25% dos condenados revertem sua decisão em Brasília em recursos especiais, extraordinários ou Habeas Corpus

Da mesma forma, quem lida com os tribunais de justiça e tribunais regionais federais sabe bem do que vou falar agora: nada tem sido mais reacionário do que a segunda instância. As chances nos Tribunais para a defesa têm sido cada vez mais escassas - algumas muitas câmaras, inclusive, por somente condenar recebem o apelido de "câmara de gás", em alusão ao método de extermínio da Alemanha nazista. 

O farol passou do amarelo para o vermelho e o medo da pauta anti-corrupção virou realidade: na caça pelos marajás, destruímos mais e mais pobres, pretos e periféricos. Na ânsia do direito penal como solução para caça dos corruptos, o Supremo, em busca de palmas, destruiu uma das maiores garantias da Constituição Federal.

Brenno Tardelli
              Diretor de Redação


Não consigo me lembrar de um momento tão difícil para quem a defende no país.
Brenno Tardelli é diretor de redação do Justificando.
 
http://justificando.com/2016/02/18/como-guardiao-da-constituicao-o-supremo-morreu/

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